Wim Mertens – “Wim Mertens Em Lisboa – Brancura Wim” (concerto)

cultura >> domingo, 31.10.1993


Wim Mertens Em Lisboa
Brancura Wim


OS PASSARINHOS, tão pequenos, fazem os ninhos com mil cuidados, já dizia o poeta. Wim Mertens, qual ave canora de penugem delicada, fez o seu ninho nos nossos corações. E pôs lá dentro ovinhos brancos, com melodias lá dentro, tão brancas como os ovos, tão frágeis como a voz do cantor. Foi um concerto mimoso, o de Wim Mertens na noite de sexta-feira – repetiu no sábado -, no Teatro S. Luiz, em Lisboa.
Sentado ao piano, o pé esquerdo pendurado num balanço constante para a frente e para trás a marcar o ritmo dos sentimentos, o compositor belga que os deuses acolheram no seu regaço (di-lo ele próprio, por outras palavras) e que um dia escreveu “minimalismo” em europeu, deslizou pela parte mais romântica e instrospectiva do seu reportório, cativando os presentes (muitos, deram para quase encher a sala) com formosas melodias, muito do agrado de todos.
A voz fez-se notar sobremaneira. Aquela voz lisa, branca, macia e aguda que parece sair de um disco de 33 rotações tocado a 45. Uma espécie já não de “bel canto” mas de “gel canto”, tal é o brilho e a lisura. Diga-se que Wim Mertens não se fez rogado, usando com parcimónia os cordéis vocais que Deus lhe deu. Para nossa alegria e, passados alguns minutos, nosso constrangimento.
Claro que existe uma complexidade quase indecifrável neste canto dos anjos, não fazendo sequer sentido referir que, na aparência, a voz se limitou a uma pontuação timidamente contrapontística do fraseado do piano, o qual, por seu lado, se refugiou, com uma regularidade metronómica, na sobreposição de “clusters”, que esboçavam, mais do que desenhavam a traço firme, o esqueleto melódico dos temas.
Aos poucos, e nos melhores momentos (aqueles, poucos, em que Mertens dispensou os floreados da voz), instalou-se na sala um ambiente de melancolia que, nas notas mais húmidas (e já agora, mais humildes, como aconteceu em “Humility”, do álbum “After Virtue”) e nevoentas, evocou os universos oníricos de dois outros artistas belgas contemporâneos: Jean Ray, com a tristeza ameaçadora dos portos, casas e águas-furtadas pardacentas que matizam os seus contos (reunidos nas duas únicas e bizarras antologias do autor: “As 25 Melhores Histórias Negras e Fantásticas”, ed. Arcádia, e “Bestiário Fantástico”, ed. Morais); e Harry Kumel, cineasta de cuja imaginação doentia brotou essa obra-prima do cinema fantástico chamada “Malpertuis”, baseada não por coincidência, num romance de Jean Ray.
O pior é que mal Wim Mertens voltava a abrir a boca o sortilégio quebrava-se. Não causou assim espanto que, a meio do concerto, já o “hall” e o bar do S. Luiz se encontrassem pejados de gente, mais interessada em beber um copo do que em adormecer no embalo das vocalizações. Coisa aborrecida para alguém tão importante como Mertens que um dia compôs o excelente “Maximizing the Audience”…
Depois de o ouvirmos agora, e a tanta doçura e brancura, apetece ir a correr para casa ouvir os discos de Tom Waits. Ou ver “Garganta Funda”…

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