Pop Rock
30 de Outubro de 1996
reedições poprock
Baba de vaca
FRANK ZAPPA
Läther (10)
3xCD Rykodisc, distri. MVM
O homem continua vivo. O homem e o génio. “Läther” (sem trema, significa baba…) não é apenas mais um punhado de material desenterrado do vaso de cinzas do defunto, mas, de facto, “the great lost Frank Zappa album”, a peça que faltava no imenso “puzzle”deixado para a posteridade por um dos maiores compositores deste século.
Inicialmente pensado por Zappa para ser editado em 1977 na forma de uma caixa com quatro álbuns em vinilo, apenas agora, 19 anos após a ideia original, vê a luz do dia, num triplo compacto reunindo material inédito, entre temas e versões nunca editados e remisturas alternativas, que acabaram por surgir no mercado em quatro álbuns separados, entre 1978 e 1979.
Lá dentro, é o delírio. Nada soa a requentado ou a lixo reciclado, como é costume acontecer com frequência em projectos desta envergadura. Pelo contrário, as múltiplas vertentes da música do autor de “We’re only in it for the money” adquirem aqui um relevo ainda maior, experimentando a cada momento novas hipóteses e fórmulas. Pequenos desenhos animados alternam com ridicularias vocais na fronteira da demência, solos de guitarra iluminada cede o passo a sinfonias de complexidade quase paranóica. Está aqui tudo: as invenções e desinvenções de estilo, os contextos e a sua descontextualização, a forma e o paradoxo cultivados milimetricamente e com a distanciação dos deuses por Zappa.
Frank Zappa transformou as linguagens populares e eruditas – a “surf music”, o “hard rock”, os “blues”, a pop imbecil, o jazz, a canção de variedades, o serialismo, a música concreta, a música de câmara, a electrónica – em espectáculo, metendo-as todas no mesmo saco. Um saco sem fundo onde o seu cérebro fervilhante ia buscar alimento, moendo e deglutindo, ironizando e destruindo, desmontando e remontando de novo, até transformar toda essa matéria-prima num ser sonoro e conceptual autónomo que deixou em ruínas e sem capacidade de resposta a concorrência.
Talvez por esse motivo, Frank Zappa teve sempre a sua música arrumada num compartimento sem vizinho do lado, resguardando-se, ou protegendo-se, para construir sem entraves uma obra que até ao fim se regeu por normas que a mais ninguém se aplicavam e que apenas aproveitaram a quem tinha uma visão, pelo menos, de tão longo alcance como a sua. Frank Zappa, repetimo-lo com uma reverência aumentada e reavivada pela audição de “Läther”, era um génio.
Foram então dois grupos igualmente geniais os únicos capazes de assimilar algumas das suas regras para construírem, por sua vez, obra própria e intransmissível pelo lado das aparências: Faust e Henry Cow. Ambas as formações marcaram a música sem rótulos, mas avançada e desestabilizadora dos anos 70, fazendo escola pelas décadas seguintes (Negativland e todo um séquito de mentes bizarras, no caso dos germânicos; a imensa legião “Recommended”, no caso dos ingleses, liderada por Fred Frith e Chris Cutler).
Zappa foi o director, o professor e o contínuo da universidade. A matéria que leccionou e com a qual brincou durante toda a vida foi a música em estado puro. E é música em estado puro que percorre “Läther” da primeira à última faixa. Impossível destacar pormenores. Quando pensamos estar num lugar, já estamos sem remédio noutro. Quando pensamos poder descansar no conforto de um assento de um auditório clássico, somos abanados por uma anedota. E quando nos dispomos a rir da anedota, já o universo se modificou de novo e o cenário tanto pode ser um “blues” de alta voltagem como a visita, sem guia, pelo interior de uma construção barroca.
“Läther” exige que se lhe preste atenção. “Läther” torna banais as caganitas sonoras que, passados 20 anos, nos infestam os ouvidos a cada instante. “Läther” obriga a consultar, uma vez mais, toda a discografia do músico. “Läther” reduz a pó o tempo. “Läther” ficará, como ficou a maioria dos álbuns de Zappa (sim, porque há coisas dispensáveis, sobretudo nos anos 80…), connosco para sempre, obrigando-nos a reflectir. A capa de “Läther” é uma vaca, a mais louca das bovinas. Uma exagerada vaca de brinquedo, sobre um pasto exageradamente verde, sob um céu exageradamente azul. Porque Zappa sempre foi exageradamente Zappa.