Paris, subúrbio noroeste, edifício B. Uma táxi directamente para Katmandu. Através do vidro da janela é possível vislumbrar um grupo de gospel a cantar ao longe. Visão fugaz e enganosa. Um gospel na Amazónia? De passagem por África lá está James Brown a acenar. Boa altura para sintonizar na rádio Marraquexe. Estranhamente o aparelho debita o som de um “didgeridoo” aborígene australiano. Ou é a voz de uma das Zap Mama a imitar um “didgeridoo”? Ou é um sonho, o sonho mais bizarro da mais bizarra mutação da world music? Aliás, que música do mundo? Melhor dizendo, música de que mundo? Questões para as quais as Zap Mama se estão positivamente nas tintas.
O mundo, para este grupo vocal de raparigas belgas de ascendência africana, é em primeiro lugar a voz. Com a voz, as vozes, reais, naturalistas, virtuais, as Zap Mama entregam-se a um jogo sem objectivo nem fronteiras que em cada lance arrasta as noções de acompanhamento, solo e harmonias vocais. Uma chave para abrir o baú? Em “Locklat Africa” elas dizem: “(…) Mas onde estamos nós? Um passo em frente e um passo atrás, o regresso às raízes essenciais, às raízes humanas. Não somos robôs sociais. Ainda não acabámos de explorar e descobrir as nossas possibilidades, as nossas capacidades físicas e morais. É uma aventura magnífica…”
Com o álbum homónimo de estreia as Zap Mama provocaram o espanto. Com “Sabsylma” provocam a reflexão. À primeira audição a música e as técnicas vocais utilizadas parecem mais próximas neste disco dos cânones tradicionais, sobretudo africanos, mas também indianos como em “India”. Além disso, há o jazz e o chamamento astral de Billie Holiday, em “For no one”, e de James Brown, em “Mr. Brown”. Depois escuta-se uma e outra vez estes cânticos e percebe-se que não pertencem a nenhuma pátria demarcada. Tudo é simulação e esta simulação tem por único objectivo a obtenção de prazer. Como uma criança, a música das Zap Mama move-se por impulsos e não por encadeamentos lógicos. Não há elos cartesianos a ligarem cada tema de “Sabsylma” mas tão-só as imprevisíveis deslocações ditadas pelo tal jogo a que se acrescentam continuamente novas regras. E novos brinquedos. Neste caso e pela primeira vez percussões verdadeiras, palmas, o som de água, cães a ladrar, os vagidos de um bebé no berço.
Outra chave, para abrir o baú dentro do baú? Tentem decifrar a introdução do tema “The mamas of the mamas”: “Os nomes dos nomes cantam para os gémeos dos gémeos, para o duplo dos duplos, para os idênticos ao mesmo.” Quantas Alices do outro lado de quantos espelhos? (8)
VÁRIOS
Brazil Blue (6)
VÁRIOS
Electric & Acoustic Mali (8)
VÁRIOS
Reggae Africa (6)
VÁRIOS
Super Guitar Soukous (6)
Patience Dabany (7)
VÁRIOS
The Music of the Andes (6)
Hemispheres, distri. EMI-VC
Nos últimos anos o fenómeno da “world music” transformou-se num negócio lucrativo ao qual as multinacionais se mostram cada vez mais atentas, procurando controlar as principais correntes musicais e investindo em sons que até há alguns anos eram considerados minoritários e relegados para segundo plano nas respectivas estratégias de “marketing”. O sucesso continuado, pelo menos em termos artísticos, de um selo como a Real World ou, mais esporádico, da Earthworks, só para falar nas subsidiárias das grandes companhias, neste caso e por coincidência, ambas da Virgin, veio alertar para a necessidade de as multinacionais tomarem de assalto um mercado até então dominado pelas chamadas editoras independentes.
É neste âmbito que a EMI acaba de lançar a nova série Hemispheres, com a preocupação de pôr em evidência uma estratégia organizada que vai da própria designação, HEMIspheres, em que a sigla da editora aparece destacada no meio da palavra e sobre a gravura de um globo, até aos textos de promoção que insistem na tecla das potencialidades comerciais deste tipo de música, chamando inclusive a atenção para números de venda de alguns discos. Tudo segundo uma lógica de mercado que não deixa nada ao acaso mas que, por outro lado, dá a impressão irritante de tratar a música apenas enquanto produto (e aqui importa fazer a distinção entre a música propriamente dita, como forma de arte, e os seus suportes materiais – LP, CD, MC, etc., estes sim objectos susceptíveis de comercialização e manipulação). Daí a pergunta colocada sem subterfúgios: “Is it commercial?”
Seis volumes – embalados segundo o formato muito em voga de “série” (Made to Measure, Venture, Real World, Resource, entre tantas outras), segundo o qual a normalização e catalogação aparecem como elementos essenciais – constituem a primeira oferta discográfica da Hemispheres. Seria oportuno de resto determo-nos sobre esta preocupação com a localização precisa das origens geográficas e a classificação musicais abrangidos.
Já diziam os antigos que só detendo o nome de alguém ou de alguma coisa se pode dominar, controlar esse alguém ou essa coisa. Nominar, catalogar, arrumar numa prateleira é a forma mais prática para controlar neste caso várias músicas aprisionadas em disco. Daí a dificuldade de lidar (leia-se dominar) as músicas “estranhas”, dificilmente catalogáveis, e a necessidade de lhes arranjar rótulos ou, pelo menos, lhes situar as origens. A táctica do novo catálogo vai ao ponto de pedir a artistas de várias regiões do globo que enviem gravações com a finalidade de calcular as suas potencialidades comerciais. “Ajudem-nos e nós ajudar-vos-emos” é a palavra de ordem. Um negócio à partida com vantagens para ambas as partes.
Os seis volumes de “Hemispheres” são, segundo esta perspectiva, de uma clareza absoluta. Tudo é discriminado, analisado e situado no contexto. Os nomes que constam das fichas técnicas dos respectivos compactos foram escolhidos a dedo e em simultâneo privilegiaram-se as compilações e panoramas o mais possível aglutinadores. Também não é por acaso que a Hemispheres se propõe ser a “série de música pop internacional mais vasta de sempre”. Repare-se que se diz “pop” em vez de “world”, jogando-se na ambiguidade do termo – “pop”, “popular” –, sendo talvez hoje a “world music” a música “pop” do futuro.
“Brazil Blue” é o título do primeiro volume destes novos hemisférios da EMI. Uma compilação de temas de artistas como Djavan, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Ivan Lins, Elis Regina, Joyce, João Gilberto, Hermeto Pascoal, Wagner Tiso e Nana Caymmi, entre outros menos conhecidos. Predomina o samba, a bossa-nova, os sons mais facilmente identificáveis da MPB, segundo a estética do postal ilustrado para turista ver.
Dentro dos respectivos campos, é o que acontece nos restantes títulos da série. Por regra, uma acoplação compacta das sonoridades mais típicas, fortes e directas de cada região.
O volume seis, por exemplo, de genérico “Music of the Andes”, traz maioritariamente os figurões Inti-Illimani e Quilapayun. Tanto num como no outro caso o público a quem estes discos são endereçados será sempre o chamado “grande público” e, dentro deste, as camadas cada vez mais numerosas dos que se iniciam nas “músicas do mundo” e nunca os já iniciados, que não se contentam com estes mostruários, por mais sofisticados e de qualidade que se afigurem.
“Reggae Africa”, terceiro volume da série, divulga o “reggae” através de Harley and the Rasta Family, Alpha Blondy, Senzo, Serges Kassy, Ice T. Cool, Koko Dembele, Ismael Isaac com os irmãos Keita, etc. “Reggae” com alma negra, a “soul” noutro disco que serve sobretudo de base de investigação para procuras mais diferenciadas.
O continente africano contribui de resto com o principal quinhão de Hemispheres, até porque é lá que se encontra talvez o maior mercado potencial do planeta. A “Super Guitar Soukous” devolve-nos a música do Zaire, os calores da dança, das rumbas, dos ritmos Soukou. Com Kanda Bongo, Man, General Defao, Seliko, Dindo Yogo, Zoukunion, Patience Dabany…
Patience Dabany, cuja música tradicional da República Centro-Africana dispensa outros figurantes em “Patience Dabany”, correspondente ao volume cinco. Rumbas e ritmos “soukou” do Zaire e do Congo, cânticos de chamada e resposta e sequências de percussão por uma das grandes intérpretes africanas da actualidade que, no Ocidente, colaborou com George Clinton, Whitney Houston, Sheena Easton e Mariah Carey.
Finalmente, no volume dois, “Electric & Acoustic Mali”, encontra-se grande parte da melhor música deste primeiro pacote da Hemispheres, nas vozes, no Kora, no n’goni ou no balafone, em encontros da hipnose do batuque negro com os blues e a electricidade, por artistas do Mali como Sekouba Bambino Diabate, Kerfala Kante, as irmãs Sidibe, Djeneba Diakite, Lobi Traore, Ami Koita, Issa Bagayogo, Kadja Tangara e outros.
Cabe a cada um escolher o hemisfério, a latitude e a longitude. A Hemispheres será anfitriã de viagens interessantes e sem risco.
ALI FARKA TOURE & RY COODER
Talking Timbuktu (7)
World Circuit, import. Contraverso
RY COODER & V. M. BHATT
A Meeting by the River (8)
Water Lily Acoustics, import. Contraverso
RY COODER
Geronimo (6)
Columbia, distri. Sony Music
Não se dá por ele mas ele está, no lugar certo com os músicos certos. Ry Cooder deixou para já dois álbuns de que poucos falam mas que ficarão para sempre registados na grande enciclopédia da melhor música popular americana: “Chicken Skin Music” e “Jazz”. Tornado figura pública sobretudo após a sua colaboração como autor da banda sonora de “Paris Texas”, o filme de grandes espaços de Wim Wenders, Ry Cooder partiu à descoberta das músicas tradicionais do mundo (“Gosto do itinerário musical que sigo actualmente, Quero ter a possibilidade de reagir a estímulos variados sem ter que arrastar atrás toda a parafernália do rock & roll”, dizia numa entrevista recente à revista “Top”), sem contudo descurar uma aliança antiga com outro cineasta, Walter Hil.
“Talking Timbuktu” é, para todos os efeitos, o novo disco do guitarrista maliniano Ali Farka Toure. Com produção e participação instrumental de Cooder, resultante da admiração recíproca de longa data entre os dois guitarristas. Além de Ry Cooder, o disco conta com a colaboração da dupla de percussionistas – os Asco – habituais de Farka Toure, juntamente com o guitarrista e violinista de blues Clarence Brown, John Patitucci (baixista de Chick Corea) e o baterista Jim Keltner.
Sem a urgência dos magistrais “The River” e “The Source”, o novo álbum, cujo título se refere à região do Mali onde Toure vive, mantém uma ligação menos conflituosa com os sons tradicionais africanos. Farka Toure canta nos dialectos “peul”, “bambara”, “songhai” e “tamasheck” o quotidiano das populações rurais do Mali, apelando para a preservação dos valores ancestrais, atitude que no tema final, “Keito”, se prolonga num autêntico libelo político antimilitarista a favor da unidade de todos os povos africanos.
Cooder mantém ao longo do álbum uma postura discreta ao nível de contraponto melódico e enriquecimento dos timbres. Com uma “slide guitar” ou uma guitarra de brinquedo, uma “mbira” ou uma “tamboura”, o californiano acrescenta pequenos pormenores à execução de blues minimalistas do africano. Blues que surgem de forma declarada em “Amandrai” e “Ai du”, entre o tradicionalismo assumido de um par de temas que dispensam a presença dos ocidentais – nos quais Toure recorre a um instrumento de arco, o “njarka” –, o compromisso entre dois continentes na maioria dos temas e a cadência de “reggae” do último, “Diaraby”. Morno.
“A Meeting by the River” é, muito mais que “Timbuktu”, um verdadeiro encontro. Neste caso entre a música indiana de Vishwa Mohan Bhatt e o estilo híbrido de Ry Cooder e, em particular, entre a guitarra “bottleneck” e a “Mohan vina” inventada pelo indiano (uma espécie de “slide guitar” adaptada, sem qualquer semelhança com a “vina” tradicional), apoiadas por Sukhwinder Singh Namdhani, nas tablas, e pelo filho do americano, Joachim Cooder, no “dumbek”.
Quatro longos temas de ressonâncias cristalinas, dos quais os dois primeiros dão ênfase à música indiana, enquanto no terceiro se manifesta a mistura de blues e “tex-mex” cara a Ry Cooder, e no último a sonoridade cálida da música havaiana de “Isa lei” se enleiam num estranho ramo que ata um sonho de Donovan com o fantasma de Lili Marlene.
Finalmente, em “Geronimo”, Cooder reata o seu trabalho de composição das bandas sonoras para filmes de Walter Hill, como já o havia feito, aliás, no mesmo ano de 1993, em “Trespass”. Neste caso a biografia do famoso chefe dos índios apaches justificou a chamada de nomes famosos mas o resultado, embora não se enquadre na categoria da chamada “música de filmes” (sinónimo de música que não se aguenta sem a imagens), também não é susceptível de provocar grandes entusiasmos. Há de tudo: flautadas étnicas de um índio genuíno, R. Carlos Nakai (costuma andar associado a músicos da new age e gravou nessa onda um álbum chamado “Desert Dance”), orquestrações e direcção de orquestra de Van Dyke Parks que dão um cheirinho de John Philip-Sousa, vozes multifónicas de Tuva pelos Hoon-Hoorto, cânticos índios, o “bouzouki” e bandolim meio à toa da David Lindley (o mesmo que viajou com Henry Kaiser pelas músicas de Madagáscar nos dois volumes de “A World out of Time”), um solo de guitarra “à maneira” do compositor ou um dueto de acordeões. Destaque, entre os temas “étnicos” e os “orquestrais eruditos”, para “Cibecue”, reminiscente dos electro-ritualismos de Jorge Reyes e Steve Roach, o baile anacrónico dirigido por Parks em “The governor’s ball”, um belo solo de violoncelo assinado por Larry Corbett em “Wayfaring stranger”, um tema com vagas ressonâncias de música irlandesa, e “I have seen my power”, onde as vozes rituais de Tuva e dos índios americanos se juntam à flauta de Nakai e ao “I-bream” (mas que raio de instrumento é este, que Cooder utiliza em quase todas as faixas?) para criar um manto de sombras e mistério. Infelizmente a maior parte de “Geronimo” dispersa-se por arranjos pesadões que, acreditamos, devem fazer todo o sentido no filme.