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Ali Farka Touré – “Niafunké” + Afel Bocoum – “Alkibar”

Sons

10 de Setembro 1999
WORLD


Ditado sem erros

Ali Farka Touré
Niafunké (7)

Afel Bocoum
Alkibar (6)
World Circuit, distri. Megamúsica


ab

Nas margens do Níger, na fronteira com o Sara, no “Mali profundo, onde a música vive”, segundo as suas próprias palavras, fica Niafunké, cidade-natal de Ali Farka Touré. É aqui que o mestre dos “blues” africanos tem vivido nos últimos anos, dedicando-se em exclusivo à agricultura (“Sou em primeiro lugar agricultor e só depois músico”, diz), actividade que abandona apenas para fazer um ou outro concerto no estrangeiro, o que se vai tornando, de resto, cada vez mais raro.
Sem gravar há seis anos (“Talking Timbuktu”, com Ry Cooder, saiu em 1993), autor de dois trabalhos magníficos, “The River” e “The Source”, Ali Farka Touré regressa mais próximo das raízes do que nunca (“Conheço as escalas ocidentais mas acabam todas por não me servir”) com uma série de captações em “take” único realizadas, quase sempre ao fim da tarde, “quando as cobras e os mosquitos chegavam”, num celeiro em que a electricidade teve de ser fornecida por um estúdio móvel conduzido até ao local pelo próprio músico.
Apesar da proximidade do berço e das condições artesanais da gravação, “Nianfunké” não apresenta grandes diferenças em relação ao registo habitual do músico: cadências hipnóticas de guitarra, neste caso acompanhadas de um naipe de percussões, com as quais Ali Farka Touré nos arrasta para o coração de África. Música fora do tempo, como tal, avessa a qualquer tipo de evolução ou modificação para além das próprias transformações anímicas do intérprete, “Niafunké” reflecte pela eternidade fora os ciclos do homem e da Natureza.
Afel Bocoum é um discípulo de Ali Farka Touré, igualmente nativo de Niafunké. Nota-se. “Alkibar”, o seu álbum de estreia, para além de ter sido gravado no mesmo local, ser produzido pela mesma pessoa, Nick Gold, e ter o mesmo engenheiro de som, Jerry Boys (currículo feito nos Buena Vista Social Club), utiliza os mesmos instrumentos, além da guitarra (que Afel toca como Touré…), o njarka (violino de uma corda), o njurkçe (guitarra-ritmo) e percussões (djembé e cabaça). Imbuído (também como Touré, aliás) da tradição Sonrai, Afel Bocoum limita-se, por enquanto, a seguir as pisadas do mestre. Mais do que uma cópia, ou um ditado sem erros, um caso de (irremediável?) mimetismo.



Ali Farka Toure & Ry Cooder – “Talking Timbuktu” + Ry Cooder & V. M. Bhatt – “A Meeting by the River” + Ry Cooder – “Geronimo”

Pop Rock

27 ABRIL 1994
ÁLBUNS POP ROCK

COODER, A ÁFRICA, A ÍNDIA E OS APACHES

ALI FARKA TOURE & RY COODER
Talking Timbuktu (7)
World Circuit, import. Contraverso
RY COODER & V. M. BHATT
A Meeting by the River (8)
Water Lily Acoustics, import. Contraverso
RY COODER
Geronimo (6)
Columbia, distri. Sony Music


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Não se dá por ele mas ele está, no lugar certo com os músicos certos. Ry Cooder deixou para já dois álbuns de que poucos falam mas que ficarão para sempre registados na grande enciclopédia da melhor música popular americana: “Chicken Skin Music” e “Jazz”. Tornado figura pública sobretudo após a sua colaboração como autor da banda sonora de “Paris Texas”, o filme de grandes espaços de Wim Wenders, Ry Cooder partiu à descoberta das músicas tradicionais do mundo (“Gosto do itinerário musical que sigo actualmente, Quero ter a possibilidade de reagir a estímulos variados sem ter que arrastar atrás toda a parafernália do rock & roll”, dizia numa entrevista recente à revista “Top”), sem contudo descurar uma aliança antiga com outro cineasta, Walter Hil.
“Talking Timbuktu” é, para todos os efeitos, o novo disco do guitarrista maliniano Ali Farka Toure. Com produção e participação instrumental de Cooder, resultante da admiração recíproca de longa data entre os dois guitarristas. Além de Ry Cooder, o disco conta com a colaboração da dupla de percussionistas – os Asco – habituais de Farka Toure, juntamente com o guitarrista e violinista de blues Clarence Brown, John Patitucci (baixista de Chick Corea) e o baterista Jim Keltner.
Sem a urgência dos magistrais “The River” e “The Source”, o novo álbum, cujo título se refere à região do Mali onde Toure vive, mantém uma ligação menos conflituosa com os sons tradicionais africanos. Farka Toure canta nos dialectos “peul”, “bambara”, “songhai” e “tamasheck” o quotidiano das populações rurais do Mali, apelando para a preservação dos valores ancestrais, atitude que no tema final, “Keito”, se prolonga num autêntico libelo político antimilitarista a favor da unidade de todos os povos africanos.
Cooder mantém ao longo do álbum uma postura discreta ao nível de contraponto melódico e enriquecimento dos timbres. Com uma “slide guitar” ou uma guitarra de brinquedo, uma “mbira” ou uma “tamboura”, o californiano acrescenta pequenos pormenores à execução de blues minimalistas do africano. Blues que surgem de forma declarada em “Amandrai” e “Ai du”, entre o tradicionalismo assumido de um par de temas que dispensam a presença dos ocidentais – nos quais Toure recorre a um instrumento de arco, o “njarka” –, o compromisso entre dois continentes na maioria dos temas e a cadência de “reggae” do último, “Diaraby”. Morno.
“A Meeting by the River” é, muito mais que “Timbuktu”, um verdadeiro encontro. Neste caso entre a música indiana de Vishwa Mohan Bhatt e o estilo híbrido de Ry Cooder e, em particular, entre a guitarra “bottleneck” e a “Mohan vina” inventada pelo indiano (uma espécie de “slide guitar” adaptada, sem qualquer semelhança com a “vina” tradicional), apoiadas por Sukhwinder Singh Namdhani, nas tablas, e pelo filho do americano, Joachim Cooder, no “dumbek”.
Quatro longos temas de ressonâncias cristalinas, dos quais os dois primeiros dão ênfase à música indiana, enquanto no terceiro se manifesta a mistura de blues e “tex-mex” cara a Ry Cooder, e no último a sonoridade cálida da música havaiana de “Isa lei” se enleiam num estranho ramo que ata um sonho de Donovan com o fantasma de Lili Marlene.
Finalmente, em “Geronimo”, Cooder reata o seu trabalho de composição das bandas sonoras para filmes de Walter Hill, como já o havia feito, aliás, no mesmo ano de 1993, em “Trespass”. Neste caso a biografia do famoso chefe dos índios apaches justificou a chamada de nomes famosos mas o resultado, embora não se enquadre na categoria da chamada “música de filmes” (sinónimo de música que não se aguenta sem a imagens), também não é susceptível de provocar grandes entusiasmos. Há de tudo: flautadas étnicas de um índio genuíno, R. Carlos Nakai (costuma andar associado a músicos da new age e gravou nessa onda um álbum chamado “Desert Dance”), orquestrações e direcção de orquestra de Van Dyke Parks que dão um cheirinho de John Philip-Sousa, vozes multifónicas de Tuva pelos Hoon-Hoorto, cânticos índios, o “bouzouki” e bandolim meio à toa da David Lindley (o mesmo que viajou com Henry Kaiser pelas músicas de Madagáscar nos dois volumes de “A World out of Time”), um solo de guitarra “à maneira” do compositor ou um dueto de acordeões. Destaque, entre os temas “étnicos” e os “orquestrais eruditos”, para “Cibecue”, reminiscente dos electro-ritualismos de Jorge Reyes e Steve Roach, o baile anacrónico dirigido por Parks em “The governor’s ball”, um belo solo de violoncelo assinado por Larry Corbett em “Wayfaring stranger”, um tema com vagas ressonâncias de música irlandesa, e “I have seen my power”, onde as vozes rituais de Tuva e dos índios americanos se juntam à flauta de Nakai e ao “I-bream” (mas que raio de instrumento é este, que Cooder utiliza em quase todas as faixas?) para criar um manto de sombras e mistério. Infelizmente a maior parte de “Geronimo” dispersa-se por arranjos pesadões que, acreditamos, devem fazer todo o sentido no filme.