Pop Rock
25 MARÇO 1992
FICÇÕES MARÍTIMAS
Formaram-se há quatro anos, mas só agora se vai ouvir falar neles com mais força. São os Ficções, uma banda de “fusão” que alia a denominada “estética ECM” às influências étnicas e a uma visão particular do universalismo português. O álbum de estreia sai a 16 de Abril. Chama-se “Aqua” e tem o subtítulo de “No meio do lago da Lua”. Em homenagem aos índios e aos oceanos, de água e pensamento.
“Aqua” tem nove temas: “Rua da paz”, “Tágide”, “Finisterra”, “Atlântico”, “Aqua”, “Mil e uma noites”, “Kalimba I”, “Quetzalcoatl” e “Gonguê”. O CD tem mais um: “Ondulações”. A primeira coisa em que se repara é no virtuosismo dos músicos. Não admira, se nos fixarmos na sua lista: Rui Luís Pereira (Dudas), nas guitarras e kalimba, Yuri Daniel, no baixo, Alexandre Frazão, na bateria. Os três fazem parte dos Resistência, mas, nota-se à distância, é nestes Ficções que o gozo de tocar é maior. Jorge Reis, que substitui Paulo Curado no saxofone soprano, completa a formação da banda, por enquanto, a este nível, ainda em fase de definição.
Os convidados também ajudam ao som de “alta definição”: Quico e Alexandre Manaia, sintetizadores, Mário Laginha, piano, José Carrapa, guitarra eléctrica, Tomás Pimentel, fliscorne, João Nuno Represas e José Salgueiro, percussão, são mestres dos respectivos instrumentos e contribuam para que “Aqua” ombreie ao lado dos discos de José Peixoto (“El Fad” e “Cal Viva”) como representantes da melhor música instrumental de tendência “fusionista” que se faz hoje em Portugal.
O álbum sairá com o selo Polygram e o dedo de Carlos Maria Trindade, “a única pessoa que se mostrou realmente interessada”, nas palavras do guitarrista Dudas, para quem a reacção das outras editoras deixou bastante a desejar: “Ouviam a maqueta, diziam que era muito bom, muito giro, muito interessante, mas recusaram sempre o projecto.” Mesmo assim, a maior parte das despesas de produção foi custeada pelos próprios membros da banda e por João Pereira Nunes, irmão de Dudas, produtor executivo e grande impulsionador destes Ficções, porque “a editora teve medo de investir”.
O jazz às voltas pelo mundo
Em termos formais, “Aqua” dificilmente esconde a aproximação ao estilo de produções da ECM, a célebre editora da era pós-jazz, chamemos-lhe assim, dirigida por Manfred Eischer. Para Dudas não é assim tão claro: “O que está em causa é o facto de a ECM ser especialista num som de fusão, numa estética que, vinda do jazz ou da música improvisada, integra autores e grupos que praticam uma música mais contemporânea aberta às influências étnicas. O que de certo modo se passa connosco, se bem que o nosso som se integre até talvez mais na chamada ‘world music’.”
Temas como “Mil e uma noites”, “Kalimba I”, “Quetzalcoatl” ou “Gonguê”, os quatro que integram o segundo lado do disco, confirmam esta ideia. O lado A mantém-se mais fiel à linguagem tradicional do jazz, com exposição introdutória, desenvolvimento e solos intermédios, antes de retomar o final de cada tema. O estilo guitarrístico de Steve Tibbetts assoma por vezes em “Aqua”. Dudas, que, entre outros, já tocou com António Variações, Fausto, Rão Kyao, Sérgio Godinho e Mafalda Veiga e que actualmente divide o seu tempo entre os Ficções, os Resistência e o grupo de música antiga La Batalla, não concorda: “Não o ouvi com ouvidos de ouvir, como se costuma dizer.” Prefere citar como referências os nomes de Paco de Lucia, Egberto Gismonti ou John McLaughlin.
Mas mais importante do que todas as referências, é, para o guitarrista dos Ficções, a “coerência” do projecto e uma “estética que tem a ver com a procura de uma linguagem própria, com base nas raízes ibéricas”. Dudas fala, como não podia deixar de ser, em ano de comemorações, nas “descobertas” e num “universo musical que faz de nós, portugueses, um pouco africanos, brasileiros, etc.” No fundo, “um imaginário que ilustra o sincretismo lusíada no mundo”, como se diz no folheto promocional.
Outras águas
Dudas explica e dá exemplos: “Gonguê” parte de um ritmo brasileiro que é o “maracatu”, as “Mil e uma noites” são uma “referência à componente árabe da nossa cultura”, “Finisterra” (“dedicado à Galiza”) tem a ver com a cultura celta, “Kalimba” é uma homenagem a Moçambique, “Tágide” recria o flamenco. Em síntese, trata-se de “viagens musicais que dizem respeito ao nosso universo cultural”, mas “abertos à modernidade”, já que “vivemos, como dizia McLuhan, numa aldeia global”.
“Quetzalcoatl” é outra coisa, a “serpente emplumada” que “faz parte de um outro imaginário, o mexicano”. O mesmo imaginário citado no subtítulo “No meio do lago da lua”, que é a “tradução literal da cidade do México, como os espanhóis a encontraram, situada num lago, uma espécie de Veneza americana”. O tema é uma homenagem aos índios e aborda “o desencontro cultural que houve entre nós, europeus, e as outras culturas”. Diálogos sempre “com o mar presente”, afinal a “mensagem escondida ou, pelo menos, presente de forma não explícita em cada uma das músicas”.
Mensagem à parte, não faltam em “Aqua” bons momentos musicais: as deambulações pianísticas de Mário Laginha pela “Rua da paz”, o fervilhar das cordas de guitarra de Dudas em “Tágide”, numa homenagem às ninfas do Tejo; as percussões portuguesas e um sintetizador mascarado de gaita-de-foles na recriação mais ou menos celta de “Finisterra”; o belíssimo desenvolvimento de Tomás Pimentel no fliscorne, em “Atlântico”; os arabescos orientais do sintetizador de Alexandre Manaia em “Mil e uma noites” ou o jogo cruzado da guitarra eléctrica e da kalimba (o “piano de mão” africano) em “Kalimba I” são apenas alguns exemplos da mestria instrumental evidenciada por todos os participantes ao longo do disco.
O futuro dirá da disponibilidade das gentes consumidoras para embarcar nestas viagens de ficção.