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terça- feira, 25 Fevereiro 2003
“Ficções”, de Jorge Luis Borges, amanhã na Coleção Mil Folhas
As “Ficções” são um pequeno manual para se enfrentar a loucura como um jogo. A literatura do séc. XX ainda não saiu da armadilha-labirinto que o escritor argentino lhe montou
A literatura de Borges é como um poço. Um poço infinito e central tal como a goela da sua “A biblioteca de Babel”, um dos contos incluídos em “Ficções”, obra publicada originalmente em 1944, que definitivamente chamou a atenção do mundo para este escritor que, sem nunca ter conquistado o Prémio Nobel, foi dos que mais fez pelas letras deste século. E dos que mais as baralhou.
Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires a 24 de Agosto de 1899 e morreu a 14 de Junho de 1986. Entre dois Verões, viveu uma vida imaginária de símbolos, metáforas, equações e iluminações. O tipo de pesadelos que se tem quando se reduz a vida à literatura. O tipo de revelações que se tem quando se alarga a vida à literatura.
Borges disse certa vez pretender “destruir a realidade e converter o homem numa sombra”. O tipo de coisas ditas por um cego com pretensões a filósofo. Para Borges, o aristotélico, a cegueira física funcionou como um dos pilares do seu pensamento. Um míope vê melhor ao perto do que um homem normal, excessivamente bem, visão microscópica que toca o mais ínfimo detalhe das coisas. Um cego como Borges vê ainda mais longe – o avesso do real.
Quanto a “destruir a realidade e converter o homem numa sombra”, nem era necessário enunciar esse propósito, já que de há muito a condição humana se confinou à de espectro. Como o “Quixote” de Ménard, tudo já está escrito. Podemos apenas — Borges fê-lo — romper os véus e rebobinar o filme da memória. Existe, aliás, um livro escrito por um dos seus discípulos, Adolfo Bioy Casares, “A Invenção de Morel”, que descreve na perfeição todo o processo.
Borges limitou-se a estudar a teoria das possibilidades, aplicando a lógica e os hologramas da história, da linguística, do esoterismo e da teologia ao que, por essência, é o absurdo: o poço. A biblioteca de Babel, enciclopédia escrita por um Deus louco, tem a forma de uma torre forrada do lado de dentro (não consta que, para o escritor argentino, existisse um lado de fora) por infinitas estantes, correspondentes a infinitos andares, contendo um número infinito de livros, arrumados ao longo de uma área infinita, de forma aleatória. Nenhum igual ao outro. Alguns apenas diferentes por mais ou menos uma vírgula. Tudo o que foi dito, é dito e será dito, ao longo da eternidade, encontra-se escrito nos livros da Biblioteca de Babel. Um deles contém a explicação de todos os outros. A compreensão simultânea de tudo. Um “tudo” que o matemático Georg Cantor sintetizou numa potência e, como consequência, o levou à loucura. O mesmo “tudo” que Kafka, mais
precavido, dobrou num pequeno bilhete, fechou num envelope e, após a mensagem ser enviada ao imperador (que nunca a recebeu), pediu aos amigos para queimar. Ao centro, o eixo, abre-se o poço, onde alguns se lançam em desespero numa queda sem fim. Aconselha-se o leitor a não ir tão longe.
Para Jorge Luis Borges esse “tudo” era o Aleph, nome cabalístico que serve de título a outra das suas obras mais conhecidas, “O Aleph”, publicado em 1949. Mas o Aleph de Borges pode ser encontrado nas manchas da pele de um leopardo ou no vão de uma escada. Encontra-se, aliás, de certeza, dissimulado entre as páginas destas “Ficções”, que a Coleção Mil Folhas porá a partir de quarta-feira nas bancas.