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Annette Peacock – “Conversa Reatada”

pop rock >> quarta-feira, 08.09.1993


CONVERSA REATADA

Annette Peacock, segunda parte. Esteve entre nós já lá vão três anos. Na Aula Magna, em Lisboa, onde acendeu labaredas geladas com um canto paradoxalmente apaixonado e distante. O seu regresso, marcado desta vez para uma sala que convida ao intimismo, será, no fundo, o raetar de uma conversa interrompida.



Não se fala muito dela. Os jornais e as revistas especializadas quase esquecem que ela existe. Há quem diga que Annette Peacock é fria, que a sua voz e presença não convidam à adesão nem ao entusiasmo. Mas esta sensação de frieza, que para alguns poderá soar incómoda, sobretudo a ouvidos habituados às incandescências das vozes do jazz no feminino, transporta afinal consigo o fascínio maior da arte da cantora.
Annette Peacock começou no jazz, é verdade – no convívio com Charles Mingus e Albert Ayler. E nesse outro convívio (menos musical é certo, mas de que alguns artistas costumam extrair uma ou outra ideia interessante), com a droga. Guiada pelas teorias do guru Leary e as palavras de Ginsberg. Uma fase de escândalos e de procura que culminou com uma apresentação em “topless” na Câmara de Nova Iorque e com a descoberta do sintetizador – um modelo pioneiro que o próprio Robert Moog fez questão de lhe oferecer.
Dessa época, início dos anos 70, fazem parte as primeiras experiências com o canto declamado, filtrado pelo sintetizador, e o aperfeiçoamento de um estilo vocal sóbrio, espécie de sussurro, pausado e sensual, semelhante ao ronronar de um gato. Procura de uma via pessoal que a levou a percorrer os claustros da catedral da ECM, em companhia do seu então marido Gary Peacock, e a recusar os convites que lhe dirigiram David Bowie e Brian Eno. Tivesse a resposta sido afirmativa e talvez a cantora palmilhasse hoje as vias bem iluminadas do sucesso. Mas Annette Peacock preferiu seguir só, desinteressada dos processos que conduzem ao estrelato e à perda de identidade. Para ela, a questão do controlo sempre foi essencial. “O sucesso acarreta a perda de controlo” – disse, numa entrevista ao PÚBLICO, quando da sua primeira vinda a Portugal. Um controlo de qualidade do seu trabalho, “imprescindível para poder continua”. Mais: uma garantia de “sanidade mental”.
Mas se Bowie e Eno não conseguiram convencâ-la, o mesmo não aconteceu com o minimalista Andrew Poppy, no seu segundo (e, até à data, último) álbum, 2Alphabed” (A Mistery Dance9”, no qual Peacock introduz uma ssombração vocal na abertura do segundo lado.
No espectáculo de há três anos, na Aula Magna, ficou a recordação de uma voz que pode não ser compreendida à primeira mas cuja sensualidade deixa cicatrizes profundas, e de uma ironia suave (recorde-se que a autora montou uma editora com a designação Ironic, destinada em exclusivo à edição dos seus próprios discos), sem deixar de ser fulminante, que fulgiu em temas como “Pride”, “Lost in your speed” ou na longa declamação, em estilo de “rap” minimal, de “Elect yourself”, Um “contacto abstracto” com o cérebro e os sentidos, por onde passaram a exposição de alguns tabus sexuais (um tema caro à cantora), a crítica social e um humor corrosivo, características presentes no autobiográfico “My mama never taught me how to cook” e nos perturbantes “Memory is” e “We’re adnate”.
Jogo de gato e do rato com as palavras e as suas armadilhas, com a cumplicidade e a sedução erótica da voz, que poderá voltar a ser jogado, com um acrescento de conhecimento e de experiência, nesta segunda visita da cantora. Os preparativos poderão ser feitos através da audição dos álbuns, todos disponíveis entre nós via importação directa, “X-Dreams”, “The Perfect Release”, “Sky Skating”, “I Have no Feelings” e “Abstract Contact”.
ANNETTE PEACOCK COM FICÇÕES (NA 1ª PARTE), DIA 10, TEATRO S. LUIZ, 22H

Annette Peacock – “Conversa Reatada” (concertos)

pop rock >> quarta-feira, 08.09.1993


CONVERSA REATADA

Annette Peacock, segunda parte. Esteve entre nós já lá vão três anos. Na Aula Magna, em Lisboa, onde acendeu labaredas geladas com um canto paradoxalmente apaixonado e distante. O seu regresso, marcado desta vez para uma sala que convida ao intimismo, será, no fundo, o raetar de uma conversa interrompida.



Não se fala muito dela. Os jornais e as revistas especializadas quase esquecem que ela existe. Há quem diga que Annette Peacock é fria, que a sua voz e presença não convidam à adesão nem ao entusiasmo. Mas esta sensação de frieza, que para alguns poderá soar incómoda, sobretudo a ouvidos habituados às incandescências das vozes do jazz no feminino, transporta afinal consigo o fascínio maior da arte da cantora.
Annette Peacock começou no jazz, é verdade – no convívio com Charles Mingus e Albert Ayler. E nesse outro convívio (menos musical é certo, mas de que alguns artistas costumam extrair uma ou outra ideia interessante), com a droga. Guiada pelas teorias do guru Leary e as palavras de Ginsberg. Uma fase de escândalos e de procura que culminou com uma apresentação em “topless” na Câmara de Nova Iorque e com a descoberta do sintetizador – um modelo pioneiro que o próprio Robert Moog fez questão de lhe oferecer.
Dessa época, início dos anos 70, fazem parte as primeiras experiências com o canto declamado, filtrado pelo sintetizador, e o aperfeiçoamento de um estilo vocal sóbrio, espécie de sussurro, pausado e sensual, semelhante ao ronronar de um gato. Procura de uma via pessoal que a levou a percorrer os claustros da catedral da ECM, em companhia do seu então marido Gary Peacock, e a recusar os convites que lhe dirigiram David Bowie e Brian Eno. Tivesse a resposta sido afirmativa e talvez a cantora palmilhasse hoje as vias bem iluminadas do sucesso. Mas Annette Peacock preferiu seguir só, desinteressada dos processos que conduzem ao estrelato e à perda de identidade. Para ela, a questão do controlo sempre foi essencial. “O sucesso acarreta a perda de controlo” – disse, numa entrevista ao PÚBLICO, quando da sua primeira vinda a Portugal. Um controlo de qualidade do seu trabalho, “imprescindível para poder continua”. Mais: uma garantia de “sanidade mental”.
Mas se Bowie e Eno não conseguiram convencâ-la, o mesmo não aconteceu com o minimalista Andrew Poppy, no seu segundo (e, até à data, último) álbum, 2Alphabed” (A Mistery Dance9”, no qual Peacock introduz uma ssombração vocal na abertura do segundo lado.
No espectáculo de há três anos, na Aula Magna, ficou a recordação de uma voz que pode não ser compreendida à primeira mas cuja sensualidade deixa cicatrizes profundas, e de uma ironia suave (recorde-se que a autora montou uma editora com a designação Ironic, destinada em exclusivo à edição dos seus próprios discos), sem deixar de ser fulminante, que fulgiu em temas como “Pride”, “Lost in your speed” ou na longa declamação, em estilo de “rap” minimal, de “Elect yourself”, Um “contacto abstracto” com o cérebro e os sentidos, por onde passaram a exposição de alguns tabus sexuais (um tema caro à cantora), a crítica social e um humor corrosivo, características presentes no autobiográfico “My mama never taught me how to cook” e nos perturbantes “Memory is” e “We’re adnate”.
Jogo de gato e do rato com as palavras e as suas armadilhas, com a cumplicidade e a sedução erótica da voz, que poderá voltar a ser jogado, com um acrescento de conhecimento e de experiência, nesta segunda visita da cantora. Os preparativos poderão ser feitos através da audição dos álbuns, todos disponíveis entre nós via importação directa, “X-Dreams”, “The Perfect Release”, “Sky Skating”, “I Have no Feelings” e “Abstract Contact”.
ANNETTE PEACOCK COM FICÇÕES (NA 1ª PARTE), DIA 10, TEATRO S. LUIZ, 22H

Ficções – “Aqua”

Pop Rock

25 MARÇO 1992

FICÇÕES MARÍTIMAS

Formaram-se há quatro anos, mas só agora se vai ouvir falar neles com mais força. São os Ficções, uma banda de “fusão” que alia a denominada “estética ECM” às influências étnicas e a uma visão particular do universalismo português. O álbum de estreia sai a 16 de Abril. Chama-se “Aqua” e tem o subtítulo de “No meio do lago da Lua”. Em homenagem aos índios e aos oceanos, de água e pensamento.

ficcoes

“Aqua” tem nove temas: “Rua da paz”, “Tágide”, “Finisterra”, “Atlântico”, “Aqua”, “Mil e uma noites”, “Kalimba I”, “Quetzalcoatl” e “Gonguê”. O CD tem mais um: “Ondulações”. A primeira coisa em que se repara é no virtuosismo dos músicos. Não admira, se nos fixarmos na sua lista: Rui Luís Pereira (Dudas), nas guitarras e kalimba, Yuri Daniel, no baixo, Alexandre Frazão, na bateria. Os três fazem parte dos Resistência, mas, nota-se à distância, é nestes Ficções que o gozo de tocar é maior. Jorge Reis, que substitui Paulo Curado no saxofone soprano, completa a formação da banda, por enquanto, a este nível, ainda em fase de definição.
Os convidados também ajudam ao som de “alta definição”: Quico e Alexandre Manaia, sintetizadores, Mário Laginha, piano, José Carrapa, guitarra eléctrica, Tomás Pimentel, fliscorne, João Nuno Represas e José Salgueiro, percussão, são mestres dos respectivos instrumentos e contribuam para que “Aqua” ombreie ao lado dos discos de José Peixoto (“El Fad” e “Cal Viva”) como representantes da melhor música instrumental de tendência “fusionista” que se faz hoje em Portugal.
O álbum sairá com o selo Polygram e o dedo de Carlos Maria Trindade, “a única pessoa que se mostrou realmente interessada”, nas palavras do guitarrista Dudas, para quem a reacção das outras editoras deixou bastante a desejar: “Ouviam a maqueta, diziam que era muito bom, muito giro, muito interessante, mas recusaram sempre o projecto.” Mesmo assim, a maior parte das despesas de produção foi custeada pelos próprios membros da banda e por João Pereira Nunes, irmão de Dudas, produtor executivo e grande impulsionador destes Ficções, porque “a editora teve medo de investir”.

O jazz às voltas pelo mundo

Em termos formais, “Aqua” dificilmente esconde a aproximação ao estilo de produções da ECM, a célebre editora da era pós-jazz, chamemos-lhe assim, dirigida por Manfred Eischer. Para Dudas não é assim tão claro: “O que está em causa é o facto de a ECM ser especialista num som de fusão, numa estética que, vinda do jazz ou da música improvisada, integra autores e grupos que praticam uma música mais contemporânea aberta às influências étnicas. O que de certo modo se passa connosco, se bem que o nosso som se integre até talvez mais na chamada ‘world music’.”
Temas como “Mil e uma noites”, “Kalimba I”, “Quetzalcoatl” ou “Gonguê”, os quatro que integram o segundo lado do disco, confirmam esta ideia. O lado A mantém-se mais fiel à linguagem tradicional do jazz, com exposição introdutória, desenvolvimento e solos intermédios, antes de retomar o final de cada tema. O estilo guitarrístico de Steve Tibbetts assoma por vezes em “Aqua”. Dudas, que, entre outros, já tocou com António Variações, Fausto, Rão Kyao, Sérgio Godinho e Mafalda Veiga e que actualmente divide o seu tempo entre os Ficções, os Resistência e o grupo de música antiga La Batalla, não concorda: “Não o ouvi com ouvidos de ouvir, como se costuma dizer.” Prefere citar como referências os nomes de Paco de Lucia, Egberto Gismonti ou John McLaughlin.
Mas mais importante do que todas as referências, é, para o guitarrista dos Ficções, a “coerência” do projecto e uma “estética que tem a ver com a procura de uma linguagem própria, com base nas raízes ibéricas”. Dudas fala, como não podia deixar de ser, em ano de comemorações, nas “descobertas” e num “universo musical que faz de nós, portugueses, um pouco africanos, brasileiros, etc.” No fundo, “um imaginário que ilustra o sincretismo lusíada no mundo”, como se diz no folheto promocional.

Outras águas

Dudas explica e dá exemplos: “Gonguê” parte de um ritmo brasileiro que é o “maracatu”, as “Mil e uma noites” são uma “referência à componente árabe da nossa cultura”, “Finisterra” (“dedicado à Galiza”) tem a ver com a cultura celta, “Kalimba” é uma homenagem a Moçambique, “Tágide” recria o flamenco. Em síntese, trata-se de “viagens musicais que dizem respeito ao nosso universo cultural”, mas “abertos à modernidade”, já que “vivemos, como dizia McLuhan, numa aldeia global”.
“Quetzalcoatl” é outra coisa, a “serpente emplumada” que “faz parte de um outro imaginário, o mexicano”. O mesmo imaginário citado no subtítulo “No meio do lago da lua”, que é a “tradução literal da cidade do México, como os espanhóis a encontraram, situada num lago, uma espécie de Veneza americana”. O tema é uma homenagem aos índios e aborda “o desencontro cultural que houve entre nós, europeus, e as outras culturas”. Diálogos sempre “com o mar presente”, afinal a “mensagem escondida ou, pelo menos, presente de forma não explícita em cada uma das músicas”.
Mensagem à parte, não faltam em “Aqua” bons momentos musicais: as deambulações pianísticas de Mário Laginha pela “Rua da paz”, o fervilhar das cordas de guitarra de Dudas em “Tágide”, numa homenagem às ninfas do Tejo; as percussões portuguesas e um sintetizador mascarado de gaita-de-foles na recriação mais ou menos celta de “Finisterra”; o belíssimo desenvolvimento de Tomás Pimentel no fliscorne, em “Atlântico”; os arabescos orientais do sintetizador de Alexandre Manaia em “Mil e uma noites” ou o jogo cruzado da guitarra eléctrica e da kalimba (o “piano de mão” africano) em “Kalimba I” são apenas alguns exemplos da mestria instrumental evidenciada por todos os participantes ao longo do disco.
O futuro dirá da disponibilidade das gentes consumidoras para embarcar nestas viagens de ficção.

a partir daqui