Arquivo mensal: Julho 2011

Fairport Convention – “Liege & Lief”

02.08.2002

Fairport Convention
Liege & Lief
Island, distri. Universal
10/10

Fairport Convention – Convenção Dos Deuses

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Há álbuns que alteram o rumo da história da música. Álbuns como “Velvet Underground & Nico”, “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” ou “Bitches Brew”. Álbuns que são sementes, escândalo, choque, maravilha. “Liege & Lief”, é um deles. Charneira entre o folclore de velhos desdentados e velhas gaiteiras, mas ainda assim gloriosos na forma como foram transmitindo, ao longo dos séculos, a tradição oral, e a folk saída da imaginação de jovens urbanos e visionários, foi determinante na transição das sonoridades arcaicas da velha Albion para novos modelos em que a ruralidade se electrificou e revestiu dos ritmos, da atitude e, já agora, das paranóias do rock.
“Liege & Lief”, em resumo, inventou o “folk rock”. A presente reedição, comemorativa dos 25 anos do grupo, depois de idêntica operação levada a cabo com “Full House”, faz finalmente justiça a esta obra-prima da música popular inglesa, limpando e remasterizando o som do original de 1969 e acrescentando-lhes um par de inéditos, dos quais se destaca a vocalização de Sandy Denny num tema que ressurgiria oficialmente no álbum seguinte, “Full House”, na voz de Dave Swarbrick.
Para trás tinham ficado o fascínio pelo psicadelismo “west coast” de grupos como os Jefferson Airplane, evidenciado no álbum de estreia “Fairport Convention”, mas também a vénia a Bob Dylan e já uma dose considerável de curiosidade pelas velhas danças “morris”, resultantes do interesse de um dos elementos fundadores do grupo, Ashley Hutchings, por esta forma de dança ritual, entretanto caída em desuso, nos dois álbuns seguintes, “What We Did On Our Holidays” e “Unhalfbricking”.
“Liege & Lief” nasceu de condições excepcionalmente favoráveis. Congeminado no ambiente bucólico de uma mansão no Hampshire, em regime comunitário e ao abrigo do ambiente de criatividade e utopia característicos do final dos anos 60, beneficiou ainda da confluência de um “line-up” de excepção, onde pontificavam, além de Hutchings, o mais ortodoxo delegado da convenção, Richard Thompson, fenomenal guitarrista e compositor, Dave Swarbrick, violinista “virtuose” cujo estilo influenciou as gerações posteriores folk rock inglês e, acima de todos eles, a figura mágica e trágica de uma cantora que se tornaria num dos ícones da música inglesa: Sandy Denny – uma voz tão tocada pela graça de Deus como macerada pela personalidade tímida e insegura da sua dona.
Em “Liege & Lief” tudo bate certo. Swarbrick e Thompson são os arquitectos do templo. Foram eles que transportaram para a folk um lado hipnótico equivalente ao que os Velvet introduziram no rock. “Come all ye”, “Matty groves” e “Tamlin” potenciaram tudo o que a folk tinha de dança ritual em cadências marcadas por crescendos épicos dos instrumentos electrificados, o que deixou os frequentadores mais empoeirados da ilustre Cecil Sharp House à beira de um ataque de nervos mas, por outro lado, deu a conhecer ao público mais vasto do rock uma música tão forte e capaz de aguentar a pedalada do “show business” e dos tops de vendas, como qualquer outra. Mas se o violino e a guitarra comandavam os ímpetos incontroláveis do corpo, era a voz de Denny que provocava os arrepios da alma. Três canções de “Liege & Lief” raiam o sublime, trazendo à luz uma tristeza sem fim e uma beleza cuja intensidade se torna difícil de suportar: “Farewell farewell”, “The Deserter” e “Crazy man Michael2. Qualquer delas expondo o íntimo de Denny na mais completa nudez.

Issa Bagayogo – “Timbuktu”

14.06.2002

Issa Bagayogo
Timbuktu
Six Degrees, distri. Symbiose
7/10

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“Timbuktu” é sinónimo de transe. Ali Farka Touré, o mago do “blues” africano, gravou com o transviajante da “world music” Ry Cooder o álbum “Talking Timbuktu”. “Timbuktu” afina pelo mesmo diapasão. É uma música elaborada exclusivamente para fazer dançar, com raiz no Mali e nos rendilhados tímbricos do kamélé n’goni, mas que não dispensa o reforçozito rítmico emanado das programações electrónicas. A pose e a atitude não são novas. Nos anos 80, Hector Zazou e Boni Bikaye foram dos primeiros a aplicar o transe ao “software”, em trabalhos como “Noir et Blanc” e o mais acessível “Mr. Manager”. “Timbuktu” soa, todavoa, mais étnico e “natural”, mas é perceptível que a encenação deste baile ao ar livre é fruto de meticuloso trabalho laboratorial levado a cabo em estúdio. Mas quer Issa Bagayogo vista a bata de técnico ou roupagens tribais, o efeito “dança” chega a ser avassalador.

Biosphere – “Shenzhou”

14.06.2002

Biosphere
Shenzhou
Touch, distri. Matéria Prima
8/10

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Na capa: as águas calmas e escuras de um lago profundo sobre as quais se reflecte o azul do céu no crepúsculo. As ondulações da água são mínimas, quase subliminares. É assim a música de “Shenzou”, o mais recente trabalho do norueguês Geir Jenssen, o inventor do “chill out” que aos poucos construiu o seu castelo no alto de um icebergue que chega às estrelas. “Shenzou” é música sedativa no bom sentido. Faz adormecer e sonhar. Com lugares distantes, amplos e desérticos.. Do anterior “Cirque” para a presente meditação zen, as batidas desceram o centro de gravidade, pulsando num espectro de ondas de baixa frequência delta que atiram o cérebro para estados profundos de relaxamento. A partir daí, é só escolher o roteiro de viagem. O efeito geral é semelhante ao de um álbum que, de forma quase secreta, fez escola na “chill out” de contornos mais esotéricos – “Pop”, dos Gas. Só que, ao contrário desta, a música de Geir Jenssen é atravessada por uma imensa paz.