Arquivo mensal: Novembro 2009

Blood, Sweat & Tears – Child is Father to the Man (conj.)

05.01.2001
Reedições
Parque Jurássico Remasterizado
Em tempo de MP3, as editoras suam para “oferecer” objectos apelativos, com as remasterizações a ganharem espaço num fenómeno de reciclagem que não tem fim. Os “dinossauros” agradecem.

Com o advento do MP3 e a possibilidade de qualquer um poder adquirir música gratuitamente através da Internet, as editoras procuram a todo o custo rentabilizar os seus produtos, tentando tornar o mais possível apetecível o objecto CD. Ao nível das reedições, aposta-se na melhoria do som (nalguns casos mais aparente do que real…) através de gravações remasterizadas, enquanto no capítulo da apresentação, tendo em mira o coleccionador, se socorre de embalagens cartonadas que são réplicas em miniatura das capas dos discos em vinilo. O impacte, a nível psicológico, destas últimas, é indesmentível. Velhos álbuns dos King Crimson, Genesis ou Roxy Music ganharam nova vida, visual e sonora, e mesmo os velhos melómanos na posse das edições originais não terão ficado insensíveis aos “brinquedos”, voltando a investir nos mesmos títulos.
É o cada vez mais forte fenómeno da reciclagem a fazer-se sentir, impelindo o consumidor a comprar o que já tinha em casa, sob o pretexto da melhoria de um produto que é apresentado como a “versão definitiva”, possuidora do “melhor som possível”, sem dúvida um objecto estimável até à eternidade. Até o novo e “definitivo” “melhoramento” surgir para o desmentir. Depois das edições remasterizadas e re-remasterizadas, dos “digipaks” e das capas em miniatura, teremos a seguir, quem sabe, as edições desremasterizadas, com a garantia de que, afinal, os ruídos e estalidos do vinilo (devidamente digitalizados e contextualizados, como é evidente…) é que são o “it” na sua forma mais pura e genuína.

Pacotes para fetichistas. Em matéria de MP3, confesso que não uso. Enquanto coleccionador, fetichista, a quem, ainda por cima, os discos saem à borla, prefiro o objecto físico – passível de ser tocado, lido e mesmo estragado – ao virtual. Mas também acho que as editoras e a indústria em geral, que durante anos tem inflacionado os preços dos CDs, merecem sofrer e ter um bocadinho de prejuízo.
Passemos então em revista algumas das reedições remasterizadas (lojas há que exibem escaparates inteiros preenchidos por elas…) lançadas no últimos meses em Portugal.
Cat Stevens, o velho Gato Esteves, que há bastante tempo abandonou a música para pregar o islamismo, voltou remasterizado e remoçado, com as reedições de “Catch Bull at Four” (1972), “Foreigner” (1973) e “Buddha and the Chocolate Box” (1974). Os três posteriores aos bem melhores “mona Bone Jakon” (1970, o seu melhor de sempre), “Tea for the Tillerman” (1971) e “Teaser and the Firecat” (1971) que, estranhamente, ficaram de fora do pacote nacional.
Se “Catch Bull at Four” condensa os tiques vocais do cantor em canções bem pouco inspiradas, como a agoniativa “O Caritas”, também “Foreigner” não ganha com a inclusão de uma longa “Foreigner Suite” pseudo-progressiva que não é mais do que uma colagem, enfeitada por orquestrações inócuas e pretensamente exóticas, de canções mal amanhadas. Já “Buddha and the Chocolate Box” recupera uma parte da magia perdida.
Outro “remasterizado” ilustre é Mike Oldfield, este sim, digno de figurar no quadro de honra dos anos 70. A totalidade da sua obra compreendida entre a estreia “Tubular Bells”, de 1973 – e da qual já existia uma anterior versão remasterizada na edição especial do seu 25º aniversário – e a colectânea “Elements”, está de volta, agora em “High Definition Compatible Digital”. E se o som faz justiça à qualidade de obras como o já citado “Tubular Bells”, “Hergest Ridge”, “Ommadawn”, “Incatations”, “Five Miles Out” e “Amarok”, é pena a impressão das capas não estar ao mesmo nível (cores mais esbatidas, tonalidades deturpadas) e a informação não primar pela abundância. O destaque vai para “Amarok”, por ser um álbum dos anos 90 que constitui excepção ao período de maior criatividade – os anos 70 – deste multinstrumentista inglês que encheu os bolsos a Richard Branson e permitiu o nascimento do império Virgin.
Os The Who merecem todas as melhorias, eles que tiveram fama de ser do “piorio”, “enfants terribles” dos anos 60 e 70. Os álbuns andavam por aí perdidos em edições rascas. Depois de “Who’s Next” já circular remasterizado desde há dois anos, são as óperas-rock “Tommy” e “Quadrophenia”, correspondentes à fase conceptual e megalómana do seu líder, Pete Townshend, que ressurgem como objectos de luxo, aqui sim, com embalagens à altura e livretes informativos, profusamente ilustrados.
Mais dispensável, mas mesmo assim interessante, é a aglutinação no formato “dois em um” dos dois primeiros álbuns do supergrupo inglês Humble Pie, “As Safe As Yesterday Is” e “Town and Country”, ambos de 1969 e os únicos editados no selo Immediate por este grupo do qual faziam parte Peter Frampton, ex-The Herd e futuro herói da guitarra, Steve Marriott, ex-Small Faces, e Dave Clempson, ex-Colosseum. Excelentes desempenhos instrumentais para uma música que só esporadicamente foge aos lugares comuns do rock e rhythm ‘n’ blues, quando pega em “sitars” e brinca ao psicadelismo.
Óptimos músicos eram também os norte-americanos Blood, Sweat and Tears, uma das primeiras bandas a integrar uma secção de metais. “Child is Father to the Man”, ábum de estreia de 1968, não era ainda o rock-jazz festive que os viria a catapultar para os tops mas um híbrido de psicadelismo, pop e soul, tingido por referências clássicas e pelo talento do singer-songwriter Al Kooper.

Cat Stevens
Buddha and the Chocolate Box
Island, distri. Universal
7/10
Não tem o charme “hippie” dos primeiros discos e tresanda já ao misticismo que transformaria Cat Stevens de músico em profeta, mas estas eram ainda canções que falavam de amor como se fosse possível acreditar nele, num bouquet de sonoridades subtis dedicadas a Buda e a Jesus, onde a pop e a folk percorrem de mãos dadas uma cidade-fantasma.

Mike Oldfield
Amarok
Virgin, distri EMI-VC, import. FNAC
8/10
20º album de studio do compositor, “Amarok”, editado em 1990, é uma peça de 52 minutos pioneira da vaga “world” e fusionista que caracterizaria a década agora finda. Percussionistas zulu, as uillean pipes de Paddy Moloney, dos Chieftains, uma comediante a fazer as vezes de Nargaret Tatcher e o ruído do compositor a lavar os dentes, juntam-se numa obra complexa que nada deve ao aclamado “Tubular Bells”.

The Who
Quadrophenia
2XCD Polydor, distri. Universal
8/10
Como os Kinks, os The Who forma sinónimo da Londres dos anos 60, sufocada entre as pulsões da moda, a nostalgia vitoriana e o muro cinzento de uma classe operária sem horizontes. “Quadrophenia” é a alucinação hiper-realista e duplamente esquizofrénica de um mod de Brighton,. Aliás Pete Townshend, o punk anterior a todos os punks que almejava compor uma sinfonia.

Humble Pie
Natural Born Bugie
2XCD Immediate, distri. Universal
6/10
Intitulado a partir do “hit” de 1969, “Natural Born Bugie” (e não “boogie” como poderia parecer…) junta “As Safe as Yesterday is” e “Town and Country”. Apesar do rótulo de supergrupo e do virtuosismo dos seus elementos, os Humble Pie raramente conseguiram escapar à mediania de um rock mainstream em contradição com o brilhantismo pop da banda que acolhera antes Peter Frampton, The Herd.

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Blood, Sweat & Tears
Child is Father to the Man
Columbia, import. Lojas Valentim de Carvalho
7/10
Das primeiras pequenas big-bands da música pop, os Blood, Sweat & Tears trouxeram para os finais dos anos 60 a fanfarra, com a inclusão de uma secção de sopros que procurava honrar os ensinamentos do trompetista canadiano Maynard Ferguson. Ainda hesitantes quanto ao caminho que os haveria de conduzir ao sucesso, “Child is Father to the Man” cruza, entre a exaltação e a devoção, a herança dos blues e da soul com o psicadelismo em voga, revelando Al Kooper como um notável escritor de canções.

Mola Dudle – Homens Da Casa

19.01.2001
Homens Da Casa

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Mobília. Os objectos do quotidiano. Entre o visionário e a patine retro, é o tempo de esculpir o mistério na casa – lugar de todos os encontros e experiências para os Mola Dudle, no seu álbum de estreia.

Um vive em Faro. O outro em Sintra. Conheceram-se em Lisboa e tocaram pela primeira vez juntos ao vivo no Bairro Alto. “Uma coisa experimental, sem ensaios, sem nada”. O telefone fazia, já então, parte dos seus utensílios de trabalho. “trocámos impressões”.
Mas na gravação de “Mobília”, álbum de estreia dos Mola Dudle (ver crítica no “Y” de 12/1), editado pela Ananana, Nanu e Miguel Cabral foram ainda mais longe. Uma das faixas, “300km” (a distância entre os respectivos locais de residência) foi totalmente composta por telefone. Nos restantes 24 temas o processo de composição resultou da troca de cassetes e CD por correio, em que cada um apresentava material pré-gravado para ser posteriormente tratado pelo outro.
“Criámos algumas regras, a primeira das quais foi a de cada um de nós restringir-se a apresentar um número certo de 12 temas, inacabados. A ideia era surpreender o outro”. Mais tarde, na casa de Nanu, em Sintra, encontraram-se para ver o que cada um “tinha espatifado”.
O resultado final é um dos mais originais álbuns de música, digamos electrónica, de que há memória em Portugal. Chama-se “mobília” e na sua feitura Miguel e Nanu utilizaram, além de instrumentos convencionais (teclados, guitarras, sampler, programações, banjo, flauta, bateria), objectos e fontes sonoras como panelas, água, janela, telefonias, televisão, atendedor de chamadas, bule, relógio de cuco, escova de dentes, garrafas de plástico, gira-discos, caldeira, lâminas, moinho de pimenta… Ainda gravações de campo recolhidas na cozinha e no Bairro Alto e a presença dos convidados Miguel Pereira (contrabaixo), Cristina Parreira, Fernanda Rodrigues, Filipa Sousa e Patrícia Tello (vozes).
Nanu e Miguel têm sensibilidades musicais diferentes. Nanu tem trabalhado no teatro e feito “música experimental” embora antes tenha “estado muito ligado ao rock alternativo dos anos 80, da 4AD e Rough Trade” e, nos anos 70, à música de Frank Zappa, Genesis, Gentle Giant – “com os quais cada vez me identifico mais, é curioso…”.
Miguel inclina-se mais para a construção e utilização de instrumentos artesanais e para a tecnologia. “Cresci a ouvir rock-lixo, tipo Iron Maiden, Faith No more”. Mas cedo o heavy-metal deixou de figurar nos meus hábitos, sendo substituído por John Zorn. “o lado experimental é a única coisa que temos em comum”, diz.
Compõem e gravam ambos em casa. Nanu com o programa Q-Base, sampler Akai e módulos Midi, além de fazer captação de exteriores. Miguel utiliza o computador “como um gravador”. Não usa Midi. Os dois trabalham também com programas “com quem mais ninguém trabalha, incluindo alguns ‘roubados’ na internet”.

Espaços
Um “affaire” doméstico. Arrumação de mobília em moldes inusitados. Colagens. De sensibilidades. De exteriores com interiores. Da vanguarda com o retro. As gravuras de móveis e electrodomésticos da contracapa de “Mobília” ostentam design antigo, quase barroco, metamorfose do funcional em objecto de arte.
Nanu chama a atenção para o facto de haver “ambiências sempre relacionadas com o espaço da casa”. Quer “espaços interiores, psicológicos, quer espaços interiores, quer espaços físicos”. E para a importância da dialéctica “contemporâneo” vs. “retro”.
“gostamos de música que não se pode datar muito bem e por isso vamos buscar referências um bocado fora de prazo para dar ao som um ar bolorento”, diz Miguel. Nanu alude por sua vez ao fascínio que desde sempre sentiu pela rádio, os meus aparelhos, “a má rádio”: “É curioso, quando ouço as coisas distorcidas dá-me a impressão que elas ganham a patine do tempo e um valor que as outras não têm. Só as coisas meio escondidas, meio alteradas é que são verdadeiramente novas e causam alguma surpresa. Por isso conservámos na música uma certa sujidade. Queremos manter o mistério”.
“E a distância”, acrescenta Miguel. “Casa” e “distância” são dois conceitos-chave que permitem entender a peculiar arrumação de “Mobília”. Numa casa há de tudo: “vivências, histórias, vidas, tempo, interiores…”. As palavras são como os “bibelots”. Sampladas ou em tempo real. “Aí já não havia regras”, diz Miguel. Ou, como Nanu contrapões, “existia a regra de ter sempre que trabalhar em casa”. Um dos temas, “Jefferies!”, ouve-se “como se estivéssemos a ler as legendas de um filme”. No caso, um trecho da “Janela Indiscreta” de Hitchcock. O tal mistério e suspense que os Mola Dudle pretendem conservar. Em “O postal” a letra foi mesmo tirada do cartão: “Acabo de receber o teu postal, muito estimando que continuem bem…”.
Os Mola Dudle estimam os objectos. E, como mágicos, extraem deles música.
O próximo álbum poderá bem ser “um projecto só sobre telefones”.

Trans AM – Transe Americano

06.04.2009
Trans AM
Transe Americano

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Na primeira passagem dos Trans AM por Portugal, em Janeiro do ano passado, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, havia quem estivesse à espera de uma sessão de electrónica servida em sintetizadores analógicos, com o rock a servir de muleta. As contas saíram furadas.
Desta banda de Washington D.C. eram conhecidos álbuns como “Surrender to the Night” (juntamente com “Millions Now Living Will Never Die”, dos Tortoise, um dos clássicos da primeira geração do pós-rock), “The Surveillance” e “Future World”, exercícios de electrónica de corrida, feita de sintetismos, vozes vocoderizadas e batidas kraftwerkianas. É verdade que as guitarras e a bateria estiveram presentes, mas nada fazia prever uma sessão tão punk como aquela que o trio ofereceu nessa noite na ZDB, uma das muitas de suor, apertos e pouca visibilidade.
Desta vez já se vai avisado, pensarão vocês. Leva-se o blusão de cabedal, os “piercings” e as matracas. Alto aí! Não se precipitem e vão lá mudar o vestuário, porque os Trans AM têm em carteira uma coisa diferente. Em primeiro lugar, a sala é o Café Luso. Fica também no Bairro Alto, em Lisboa, mas o ambiente e a decoração prestam-se a outro tipo de “performances”. Que não incluem matracas. Foi no Café Luso, no ano passado, que Felix Kubin rubricou uma actuação memorável que juntou kitsch, teatro, humor e futurismo. E se é certo que os Trans AM não são propriamente adeptos do “camp” e da electrónica circense típicos do excêntrico alemão, a verdade é que a noite poderá ser de novo – como dá a entender a organização, a Major Eléctrico, do capítulo 6 da saga de eventos alternativos com a designação Blaast – de surpresas e acontecimentos extraprograma.
Ao contrário do rock, das guitarras e do fumo que intoxicaram a noite da ZDB, a música dos Trans AM será, no domingo, inteiramente preenchida pela electrónica. Em transe. E em trânsito, já que está prevista a interacção com a segunda banda em cartaz, os Iso68, uma das novidades mais refrescantes que o ano 2000 ofereceu em matéria de “electrónica suave” com origem na Alemanha, através do álbum “Mizoknek”. Interessante será presenciar a forma como esta interacção se processará, tendo em conta que os Trans AM são, apesar de tudo, guerrilheiros, como atesta o seu último álbum, “Red Line”, e os Iso68 uma agremiação ambiental/minimalista com férias pagas nas praias paradisíacas do “easy listening”. Faísca ou diluição, algo de incomum acontecerá de certeza.
Os Trans AM formaram-se em 1992 em Washington D.C., com Philip Manley (guitarras e teclados), Nathan Means (baixo e teclados) e Sebastian Thompson (bateria e percussão). Influenciados por bandas rock como os Van Halen e ZZ Top (embora não descurassem a audição das metalurgias Chrome, Suicide ou Throbbing Gristle…), retiveram destas a energia, canalizada em formato de “power trio”, ao mesmo tempo que aprenderam com os Kraftwerk a melhor forma de pôr a funcionar em regime de “Groove” automático os sintetizadores.
Não os confundam, todavia, com uma vulgar banda de electropop, apesar de na sua música ser possível detectar resíduos dos Human League ou dos Tubeway Army. Os Trans AM serão electrónicos, serão mesmo pop, mas têm uma consciência política. “The Surveillance” era uma metáfora sobre a era da comunicação global e a paranóia urbana, através do olhar totalitário do “big brother” americano, e “Future World” (síntese de “Future Days” dos Can e “Computer World” dos Kraftwerk), uma panorâmica do vazio contemporâneo desenhado nos pixels de um ecrã de computador. O novo “Red Line” é o olho vermelho da vingança.
Como vão os Iso68 – Thomas Leboeg e Florian Zimmer – reagir ao furacão, eis a incógnita que será interessante ver desvendada no Café Luso. Nos Isso 68 não existe sociologia – não, não é nenhuma menção subliminar ao Maio de 68 – nem o mínimo vestígio de rock’n’roll. A sua música tem a consistência de um aspersor de jardim, com um microscópio auditivo afixado ao interior de cada gota.