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Entrevista: Rio Grande – “Onde Vais Rio Que Eu Canto”

Pop Rock

4 dezembro 1996

João Gil, Rui Veloso e Tim explicam “Rio Grande”

“ONDE VAIS RIO QUE EU CANTO”

Com um discurso mais poético do que ideológico, “Rio Grande” é um projecto discográfico que juntou os textos de João Monge à música de João Gil, Tim, Rui Veloso, Jorge Palma e Vitorino.


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“Rio Grande” é um disco que é um filme que é uma contra-iniciação. João Monge escreveu a história de uma vida. Um alentejano emigra para a margem esquerda do Tejo, trocando as suas raízes pelo trabalho na fábrica e o quotidiano no subúrbio. A história tem um final feliz. E um início também. João Gil compôs a banda sonora, com base na sua própria vivência de Almada. Tim, Rui Veloso, Vitorino e Jorge Palma são os actores de um argumento com mais do que um sentido que fizeram suas a história de um personagem principal com muitos e nenhum nome. Um “álbum conceptual” em viagem para o Natal. Rui Veloso, Tim e João Gil contaram ao PÚBLICO algumas fases da “rodagem”.
PÚBLICO – Qual foi o percurso, da nascente até à foz, das canções de “Rio Grande”?
JOÃO GIL – O João Monge deu o pontapé de saída. Ele vive em Almada, observando diariamente uma sucessão de acontecimentos da sua casa que fica quase virada para o Terreiro do Paço e com a Lisnave por trás. O Sul começa ali. Assiste ao toque de entrada e saída dos operários, uma coisa impressionante. Por outro lado, a sua própria família veio do Sul para se estabelecer ali. Há um misto de observação e algo de autobiográfico. A partir daí, peguei na história do Monge e parti do zero. Quando encontrei o fio da narrativa e o registo musical adequado, disparei à velocidade da luz, sem ter, porém, ainda, qualquer ideia do formato. O primeiro cantor que contactei foi o Vitorino. Depois surgiu o Tim e o Jorge. E senti que era preciso alguém com um ouvido exterior, um gajo bom, que fosse exigente, que nos balizasse as cenas todas, como o Rui Veloso.
TIM – Achei uma boa ideia juntar estas pessoas todas, como senti que se podia cair numa certa facilidade. Porque éramos todos pessoas um bocado imediatistas a trabalhar. Estava com medo que houvesse uma reunião de esforços que resultasse numa coisa sem profundidade musical suficiente. Aí, saltou o nome do Rui. Acho que é uma pessoa muito meticulosa, ordenada, talvez de cabeça não, mas em termos de trabalho!… Ele aceitou e entrou numa de organização.
P. – Como é que se processou essa organização?
RUI VELOSO – Para já, as canções tinham um minuto cada uma. É impossível fazer um álbum com canções de um minuto. Não havia partes musicais. Foi preciso estruturar, organizar, decidir quem e como é cada um de nós iria gravar. Por exemplo, “A fisga” começou por ser uma coisa pesada, para ser cantada em baixo, acabando a voz por ir lá para cima. Tivemos todos que fazer os arranjos, sem fazermos maquetas, gravámos logo para ser definitivo.
J.G. – Apresentei as canções aos outros no estado mais bruto, de maneira a não correr o risco de parecer um trabalho de encomenda, ou de autor.
R.V. – Cozinhámos os três aquilo tudo. O Jorge Palma foi lá uma ou outra vez meter um piano. Quando ele e o Vitorino chegaram lá para cantar, já tinham tudo pronto.
P. – Houve um lado laboratorial em todo esse processo?
R.V. – Teve a ver com a maneira como cada qual trabalha. Nós os três somos capazes de ficar oito horas seguidas amarrados num estúdio. O Jorge tem mais dificuldade…
T. – E o Vitorino só aguenta umas três horas…
J.G. – Juntar cinco personalidades, cabeças diferentes, exige uma arrumação prévia. O que não impediu que este trabalho fosse um filme no qual cada interpretação dos actores constituiu o principal chamariz.
P. – O título remete de imediato para um certo imaginário do cinema clássico americano…
T. – Foi escolhido por mim. Pareceu-me sempre que esta obra, para ser entendida pelas pessoas, tinha de ter uma aproximação cinematográfica. Quando cantávamos, tínhamos sempre presente as imagens de um filme. A música dava-nos as paisagens, os ambientes.
P. – O som também evoca algo americano, um certo balanço “country”, por exemplo…
R.V. – Tem a ver com o facto de um gajo ter boas guitarras, a soar bem, bons microfones. Pessoalmente, detesto os estereótipos da “country music”. Mas boas guitarras mudam logo o som.
P. – As canções vocalizadas pelo Tim aproximam-se bastante do som “Unplugged” dos Xutos.
T. – Tenho uma maneira de cantar muito definida, típica, que resulta de um trabalho de grupo há uma série de anos. Enquanto o Palma, o Rui ou o Vitorino, por serem cantores solistas, têm um domínio da interpretação e da voz mais alargada, eu tenho feito as coisas de uma forma mais específica. Quando tento fazer outras coisas sinto-me ainda numa fase de estudo, não posso arriscar muito.
R.V. – Há uma sensação de espaço, de liberdade. Parece que o disco foi gravado ao ar livre.
J.G. – Uma sensação que nos liga à infância.
R.V. – Ainda ontem estávamos juntos numa camioneta e parecíamos putos, a tocar!
P. – “Rio Grande” tem uma carga poética mais romântica do que politicamente empenhada e, ao contrário do que muitas vezes acontece na vida real, tem um final feliz. Será que não quiseram agitar em demasia o público, até porque o disco vai sair no Natal?
T. – O espírito que eu trago do outro lado, de quando vivi no subúrbio, em Almada, é romântico. O espírito das pessoas que estão ali, dos pais aos filhos, o espírito que trouxeram do Sul – embora isso não exclua as lutas sociais – é uma boa onda, embora, claro, seja apenas o lado positivo. O que se ganhou com a troca da terra natal por Almada ou pelo Barreiro foram sacrifícios, com certeza, épocas difíceis, mas houve também o 25 de Abril, que trouxe um florescimento intenso, tanto cultural como de convívio entre as pessoas. Essas pessoas puderam pôr os seus filhos a estudar. O fosso que por vezes se sente entre duas gerações é que os pais trabalharam muito mas não são letrados, enquanto os filhos já têm um nível de cultura superior, de cidade.
R.V. – Agressões já todos nós sofremos diariamente, quando lemos os jornais e somos agredidos por tudo o que é lixo. As pessoas também têm direito a ter momentos de “relax”. Lisboa é feita por pessoas que querem voltar à terra.
J.G. – Esta história é uma história, de facto, com um final feliz. Não tem uma estética suburbana, agressiva.