Arquivo de etiquetas: Softcore

Uwe Schmidt – “Atom Heart Father” (artigo de opinião)

Y 2|FEVEREIRO|2001
música|remisturas


Atom Heart Father

Sob as máscaras, um coração atómico. Atom Heart, mago do artifício, engendra novos disfarces em Vs Rather Interesting, álbum de remisturas em que manipula e é manipulado.



Pentatonic Surprise, Dropshadow Didease e Fonosandwich são os mais recentes alter-egos/heterónimos do alemão Uwe Schmidt, para juntar a Atom Heart (incluindo as variantes Atom™, Atomu Shinzu e Coeur Atomique…), I, Bi-Face, Mike McCoy, Lassigue Bendthaus, Softcore, Orange, Datacide, Señor Coconut, Erik Satie, Lisa Carbon, Schnittstelle e Los Samplers. As novas adições podem ser encontradas na recente coletânea “Versus Rather Interesting” (R. I.), mescla de misturas, remisturas e re-remisturas em forma de “combate” entre artistas das editoras Quatermass, como os Pram, Plaid e Pole, e da Rather Interesting, de quem Schmidt é fundador e proprietário. Sendo que do lado da R.I. os “artistas” são ainda o próprio Schmidt, sob vários disfarces.
Sem ser dos projetos mais interessantes do alemão – é difícil achar estimulante esta coleção de grooves minimalistas para dançar aos bochechos – “Versus Rather Interesting” acaba por ter graça pelos malabarismos de manipulação em que Schmidt se tornou mestre, com a curiosidade de neste caso ser também ele quem está na mesa de dissecação.
Já apelidado de “the hardest working man in show-business”, pela prolixidade da sua obra, apenas comparável aos “outputs” igualmente quilométricos de Bill Laswell e Pete Namlook, Uwe Schmidt concentra em si algumas das características artísticas às quais se convencionou colar o rótulo das pós-modernidade – a saber, a fusão, síntese ou colagem de elementos estilísticos díspares, veiculados pela eletrónica, tornando supérfluos os conceitos de geografia e temporalidade.
Ou, dito de outra maneira: o homem arranjou uma maneira original de ganhar dinheiro, editando uma quantidade enorme de discos a coberto de edições limitadas para as quais o mais difícil será a atribuição de designações convincentes aos novos “autores”. Livres de impostos.
Tendo em conta que Uwe Schmidt encetou as suas atividades há pouco mais de uma década, é lícito pensar estarmos em presença de uma formiga da música. Muito provavelmente uma térmita que aos poucos, e com os dentes afiados, vai roendo as fundações, ainda mal solidificadas, da música eletrónica popular dos últimos dez anos.
No início, as ferramentas são parcas: uma bateria, uma “drum-machine”, teclados analógicos e a ânsia de experimentar, de meter o medo na música para ver como funciona. Era mais fácil começar pelo tecno industrial, género com tradição e obra feita na década de 80, de imediato nascendo para este fim “os”Lassigue Bendthaus. A cultura rave e acid-house são devoradas num ápice. A partir daí, o apetite torna-se insaciável. Onde quer que eclodisse um novo género ou sub-género de eletrónica, lá estava o alemão a espetar-lhe a garfada, chupando-lhe as vísceras e os ossos para encher os invólucros vazios com material sintético, coser-lhes uma pele nova, e transformar corpos frescos em manequins para coleção.
Duas fases de um mesmo processo: no álbum duplo “Cloned”, de 1992, faz 12 remisturas do mesmo tema num dos discos enquanto no outro atira para o ar os retalhos de sons que serviram para o trabalho de montagem. Em “Pop Artificielle”, assinado por Lassigue Bendthaus, coloca numa montra réplicas sintéticas de temas pop de David Bowie, John Lennon, Donovan, Prince, ABC, Rolling Stones ou Duran Duran.
Ambient, jazz digital, funk, eletro, easy-listening, eletrónica psicadélica. Uwe Schmidt vai a todas. Como Atom Heart assina uma série de trabalhos de parceria com o seu irmão espiritual Pete Namlook, na editora Fax, deste último, com sede em Frankfurt, fábrica de eletrónica a metro – o cliente pede nós servimos! – onde é possível encontrar a retalho desde kosmischemuzik com Klaus Schulze, a trance, de tecno-pimba a obras-primas de “ambient”, de drum ‘n’ bass a etnoseca intelectual.
À luz das velas e de um romantismo deliciosamente kitsch, rubrica como Erik Satin “Light Music”, incursão noturna no easy-listening e um dos seus melhores álbuns de sempre.
O humor é outra das componentes da obra multidisciplinar de Uwe Schmidt, o que, juntamente com a mudança de residência para Santiago do Chile, se traduz em álbuns em que a ironia se mistura com a anedota. “Descargas”, com a assinatura Los Samplers, devassa a música latino-americana. O samba é ruminado por Lisa Carbon, em “Trio de Janeiro”. Como Señor Coconut Y su Conjunto, em “El Gran Baile Alemán”, transforma em boleros e cha-cha-chas a eletrónica maquinal dos Kraftwerk. “XXX”, com o rapper chileno Tea Time, cola hip-hop e linguagem obscena, com direito ao carimbo “Parental Advisory – Explicit Content”. Numa das faixas, um tal padre O’Riley congratula-se pela televisão chilena não passar pornografia ao mesmo tempo que refere, com o desprendimento de um “fait divers”, o facto de uma em cada duas raparigas chilenas ser violada pelo pai. Sobre a banda sonora de “Love Story” vozes masculinas exclamam “I wanna fuck you!” e “Preciosa!”.
Para se redimir, grava “Geeez’n’Gosh: My Life with Jesus”. Encontro da deep-house com o gospel em louvor de um deus de plástico. Mas séria e a colaboração com Bernd Friedmann no projeto Flanger, em “Templates”, para a editora Ninja Tune.
Há solução, um fio de Ariadne que permita sair deste labirinto?
Não faz mal perder o nome, pouca importância tem ficar sem rosto, mas nunca, mesmo nunca, deixar cair a máscara. É o conselho deste alemão que decidiu colocar o coração dentro de um átomo. Partícula constitutiva da matéria a partir da qual são criadas todas as formas.

Uwe Schmidt/Atom Heart/Padre O’Riley congratulando-se pelo facto da televisão chilena não passar pornografia