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Sam Rivers + Jason Moran + Kenny Werner + Quarteto de Pedro Madaleno + outros – “‘Play It Again, Sam’ – Seixal Jazz 2003” (concertos / jazz / festivais / antevisão)

(público >> cultura >> jazz >> concertos / festivais)
quinta-feira, 23 Outubro 2003


“Play it again, Sam”

SEIXAL JAZZ 2003

Sam Rivers com o trio de Jason Moran e Kenny Werner abrem hoje à noite a programação internacional do festival


O Seixal Jazz 2003 arranca hoje com os concertos internacionais. A abertura não poderia ser mais excitante. O programa anuncia como concerto de abertura Jason Moran Trio com Sam Rivers. Muitos, porém, preferirão alterar a ordem dos fatores e dizer Sam Rivers com Jason Moran. Porque, quer se queira quer não, há uma diferença de estatuto. Moran, de 28 anos, é uma das atuais coqueluches do piano. Rivers, de 73, saxofonista e flautista, é uma lenda do jazz. Moran tem técnica, bom gosto e, no novo álbum, “The Bandwagon”, a ousadia de inserir citações electro dos Kraftwerk, via Afrika Bambaataa, no jazz. Rivers tem o “blues” no sangue e outro tipo de ousadia, que o levou a criar uma topologia e lógica próprias dentro do “free jazz”, conferindo-lhe uma ordem apenas possível para quem viveu por dentro e por inteiro a tradição.
Rivers tocou com Gigi Gryce, Billie Holiday, gente da “soul”, como Wilson Pickett, dos “blues”, como B. B. King, e deuses, como Miles Davis. Gravou com Dizzy Gillespie, Tony Williams, Cecil Taylor, Andrew Hill, Bill Evans, George Russell, Dave Holland, Barry Altschul e Larry Young, entre outros. A sua entrada, no saxofone tenor, na obra-prima “Dialogue” (1965, com Andrew Hill, Freddie Hubbard, Joe Chambers…)”, do vibrafonista Bobby Hutcherson, como que projeta a música num futuro até aí inimaginado pelo “free”, numa antecipação do jazz que hoje se ouve, e a confirmar o lado mais visionário e inovador deste extraordinário intérprete e executante. Rivers – que já atuara em Portugal no final dos anos 70 no Festival de Jazz de Cascais e, há dois anos, no de Matosinhos – e Moran encontraram-se em 2001 no álbum “Black Stars”. Dois “sets”, como é hábito no Seixal Jazz, às 21h30 e 23h30, prometem dar muito bom jazz a ouvir e muito que falar.
Amanhã, o guitarrista português Pedro Madaleno apresenta-se em quarteto com Wolfgang Flur (sax tenor), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Dejan Térzic (bateria). Jazz na fronteira da fusão. Madaleno estudou, entre outros, com o pianista Kenny Werner, que amanhã, de novo em “set” duplo, atua em trio com Johannes Weidenmueller (contrabaixo) e Ari Hoenig (bateria).
Werner interpretou Duke Ellington e Bix Beiderbecke no álbum de estreia de 1977, mas na década seguinte encontramo-lo já a dar lições de piano na New School of Music, de Nova Iorque. Para trás ficavam gravações com Mingus, Archie Shepp, Chico Freeman, Lee Konitz, Joe Lovano e Maria Schneider, entre outros. Melodista imaginativo (o que terá a ver com a sua estadia na banda do baterista Mel Lewis), abrangente na assimilação quer de uma linguagem de rigor na qual alguns veem o legado de Lennie Tristano, quer nas fraturas e descontinuidades rítmicas herdadas do “free”, Werner é um dos pianistas incontornáveis do jazz atual. Álbuns como “A Delicate Balance” e “Beauty Secrets” fazem-lhe justiça.
A partir das 23h, e às 24h, nos refeitórios da antiga Fábrica Mundet, haverá mais concertos, pelo trio do pianista Filipe Melo (hoje), trio do pianista Rodrigo Gonçalves e Quarteto Politonia (ambos amanhã). A entrada é livre.
Amanhã, entre as 15h e as 18h, nos refeitórios da antiga Fábrica Mundet, o trio de Kenny Werner efetua um “workshop” de piano, contrabaixo e bateria. No sábado, à mesma hora e no mesmo local, será a vez de Sam Rivers revelar os segredos dos saxofones tenor e soprano e da flauta.

Seixal Jazz 2003
Sam Rivers + Jason Moran Trio

Hoje, às 21h30 e 23h30
Quarteto de Pedro Madaleno
Amanhã, às 21h30
Kenny Werner Trio
Sábado, às 21h30 e 23h30.
SEIXAL Auditório Municipal do Fórum Cultural.
Tel. 212226411.
Bilhetes a 10 euros.

Sei Miguel – “Ra Clock” + Telectu – “Quartetos” + Jacinta – “A Tribute To Bessie Smith” + Pedro Madaleno – “Fast Living”

(público >> mil folhas >> portugueses >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 22 Março 2003

O jazz tanto pode ser um bunker de metal como um canteiro de flores. Sei Miguel e Jacinta exemplificam, em Portugal, estes dois extremos do jazz. A sabedoria louca de um contrasta com a felicidade aos caracóis da outra.


Com a felicidade estampada nos ‘blues’


Sei Miguel
Ra Clock
Ed. e distri. Headlights
8 | 10

Telectu
Quartetos
3xCD Clean Feed, distri. Trem Azul
6 | 10

Jacinta
A Tribute to Bessie Smith
Blue Note, distri. EMI-VC
7 | 10

Pedro Madaleno
Fast Living
Edição de autor
6 | 10



Jazz além. Mas além de que lugar? Segundo as coordenadas de Sei Miguel, ir pelo jazz é arriscar-se numa aventura interior sem retorno, de transmutação, transcendência e transferência da personalidade para uma máscara de enigmas. “Ra Clock” é, na forma, uma homenagem a Sun Ra, que o trompetista português considera como avatar da música contemporânea, nomeadamente através da suite com o mesmo título, espécie de livro de horas que ilustra o percurso musical e espiritual do autor de “It’s after the End of the World”. Disco diluviano, no sentido de precipitação e revelação, transporta consigo os mesmos estigmas e a imagética mitológicos que ilustravam a obra do teclista americano, na reapropriação de uma ancestralidade por onde passa, afinal, a decifração do labirinto tecido em “Astérion” ou do microclima de 33 segundos intitulado “Isobel”.
Não há madeiras, apenas metal: trompete de bolso, trombone, guitarra, gongos, piano, percussões e água elementar. E, em “Astérion”, uma “drone” de órgão Hammond a calcar a pedra e o cristal. Pressente-se aqui algo carregado com a mesma energia mágica das florestas virtuais do quarto mundo de Jon Hassell, os mesmos rituais de utilização dos sonhos como via de acesso ao interdito. E o espectro de Miles a espreitar nesta transmigração.
“Ra clock”, da “viagem da alma até ao planeta Terra” até ao “caminho de regresso para as estrelas”, instala-se no âmago desse tal “além” situado entre as cinzas do jazz e a música concreta, com citações, pelo meio, às sonoridades siderais de Sun Ra. Um disco difícil, como são todos os de Sei Miguel, exercício de sublimação da loucura em discurso do método.
Nos antípodas de “Ra Clock” está o novo e triplo álbum dos Telectu, de Jorge Lima Barreto e Vítor Rua. A dupla, que, curiosamente, nos últimos anos cultivou processos vários de clonagem e mimetismo de géneros musicais que iam da eletrónica lúdica à eletroacústica, retoma em “Quartetos” a estética do “free jazz” e da livre improvisação que marcaram os primeiros anos do coletivo.
Com Lima Barreto ao piano (incluindo o preparado), Vítor Rua na guitarra de 18 cordas e eletrónica, e Tom Chant no saxofone soprano, cada um dos três CD conta com um convidado de peso, na bateria: Sunny Murray, protótipo da bateria “free”, no primeiro, Eddie Prévost, elemento da mítica formação AMM, no segundo, Gerry Hemingway, “avant-gardista” e “sideman” de Anthony Braxton e Marilyn Crispell, entre outros, no terceiro.
Nada de novo nem de particularmente excitante acontece nesta ressurreição do espírito libertário dos anos 60, um “tour de force” que, para além de mostrar Lima Barreto em arroubos de lirismo pianístico (no intervalo dos omnipresentes “clusters”), tem como principais focos de interesse as conversas travadas entre o saxofone de Chant e as percussões livres de Murray, Prévost e Hemingway. Chant que, no disco 3, chora encostado ao piano, com Hemingway a desmultiplicar-se nos efeitos percussivos, naquele que será um dos momentos mais conseguidos de “Quartetos”.
Mas o “free” era uma guerra. A luta pela liberdade em nome de uma causa. É difícil descortinar nestes “Quartetos” mais do que cicloturismo ao redor do parque dos clichés em que certa música improvisada é fértil. No jazz grande, o gesto vale enquanto manifestação ou manifesto de uma necessidade ou motivação profunda. “Quartetos” é grande na luta contra o tempo, esperando que o milagre aconteça.
Comparada com as de Sei Miguel e dos Telectu, a música de Jacinta é um refresco. A nova “coqueluche” do canto jazzístico português, senhora de uma voz grave e com razoável controlo de modulações, presta no seu álbum de estreia — impressa na subsidiária nacional do prestigiado selo Blue Note — homenagem à
rainha dos “blues”, Bessie Smith.
“A Tribute to Bessie Smith”, com produção de Laurent Filipe, mostra uma voz empenhada em revitalizar e recriar com sucesso (“Outro segredo de Jacinta: ser intérprete, logo autora”, escreve José Duarte nas notas de apresentação) o “jazz” na sua costela mais emotiva — com um ou outro sopro “lounge”, uma corrida pelo rhythm’n’blues e a assunção dos “blues”, mesmo, numa balada tão tocante como “Baby won’t you please come home”. Conta com notáveis participações instrumentais, nomeadamente de Mário Santos, nos saxofones e clarinete baixo, Greg Moore, no trombone, e de um Rodrigo Gonçalves capaz de percorrer ao piano uma gama larga de subtilezas e contrastes.
A “A Tribute to Bessie Smith” só faltará o drama que apenas a vida concede ou retira a cada um. Mas como desejar um fado e um fardo assim a quem, como Jacinta, coloriu desta maneira o jazz feito em Portugal, com a felicidade do seu sorriso e uma alma aos caracóis?
De volta ao jazz mais urbano depara-se-nos “Fast Living”, com assinatura do guitarrista Pedro Madaleno (também nos sintetizadores), em quarteto com Ruben Alves (piano e teclados), Yuri Daniel (baixo acústico e elétrico) e Dejan Terzic (bateria). Não será por aqui que se encontrarão motivos que permitam descortinar novos sons e novas terras para o jazz, mas o que o guitarrista e os seus companheiros fazem fazem-no bem. Trata-se de “jazz rock”, inspirado nos mestres americanos como Weather Report ou Return to Forever, mas também na abordagem mais “snob” e progressiva da corrente inglesa de Canterbury personificada por grupos como os Soft Machine, Hatfield and the North ou National Health (temas como “Alien visitor” ou “What intelligent thing?” são bem ilustrativos desta tendência).
Já em “Spirit of the world” e “Late night in Hamburg” o estilo guitarrístico de Madaleno lembra o do holandês Jan Akkerman, dos Focus, enquanto “Different places to go” denota a influência de John Scofield. Mesmo não estando isento da “comercialite” fácil, que é pecado em que amiúde incorre o “jazz rock”, “Fast Living” pertence àquela categoria de discos que não magoa nem maltrata o jazz, mais preocupado em distrair e provocar boas vibrações do que em deitar as garras de fora.