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Jason Moran Trio com Sam Rivers + Kenny Werner Trio – “Pianos, Para Que Vos Querem” (concertos / festivais / jazz / seixal jazz 2003)

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terça-feira, 28 Outubro 2003


Pianos, para que vos querem


Jason Moran Trio com Sam Rivers
SEIXAL Auditório Municipal
23 Outubro, às 21h30
Lotação esgotada

Kenny Werner Trio
SEIXAL Auditório Municipal
25 Outubro, às 21h30
Sala quase cheia

Cumpriu-se o primeiro fim-de-semana internacional do Seixal Jazz, mas ficaram por cumprir promessas de melhor jazz. Na quinta-feira, Sam Rivers, o mestre, não teve nos jovens músicos que o acompanharam parceiros musicais à altura das circunstâncias. Jason Moran e o seu trio deram mostras de um entusiasmo que, amiúde, se traduziu em despropósito, praticamente abafando o discurso do músico convidado. Rivers sorriu, encolheu os ombros, adaptou-se e, embora já sem o pulmão de outros tempos, desencantou mesmo assim sortilégios. Em compensação, Kenny Werner mostrou que o seu piano sabe fazer a distinção entre o essencial e o supérfluo, bem apoiado por uma secção rítmica onde a subtileza imperou sobre a espetacularidade.
Jason Moran veio ao Seixal com Tarus Mateen (baixo) e Nasheet Waits (bateria). Para distribuir um mostruário de poses de “jovens leões” modernaços e tecnicamente dotados. Mateen a cultivar um ar desleixado e a mostrar que velocidade de dedos – assim a modos como um Alvin Lee do jazz – é com ele. Waits a bater com força e a fazer transbordar os tambores e os pratos, assumindo um protagonismo nervoso. Moran é um bom decorador. Desenhou arabescos, núcleos melódicos, timbres aquáticos, cores berrantes, o problema está em que estes se enquadraram com dificuldade na lógica do “3 mais um”. Um solo romântico teve a adorná-lo o tipo de fraseados neoclássicos que das lições de Bill Evans retiveram um lado de “rock progressivo” à maneira dos Renaissance… Um catálogo de moda, pronto a folhear.
Que fez Sam Rivers, convidado de honra, no meio de tudo isto? Fez o que pôde, abdicando de submeter ao sufrágio do coletivo as suas ideias para, ao invés, se resignar aos delírios e sofreguidão do trio. Foi vê-lo sorrir com ar travesso, como quem diz, “são novos, perdoa-se-lhes a distração”. No saxofone tenor mostrou, mesmo assim, que na sua cabeça se entrecruzam, em simultâneo, mais ideias por segundo do que todas as que ficaram asfixiadas debaixo do chapéu de Jason Moran ao longo das mais de duas horas que durou o duplo “set”. O soprano girou suavemente em módulos circulares e acabou por ser na flauta que a imaginação se apoderou de mais espaço para respirar e improvisar com outra liberdade. Seja como for, a ligação Moran/Rivers soou a diálogo mal ensaiado. Mais por culpa do centralismo do primeiro do que por falta de empenho do segundo.

A voz essencial de Kenny Werner

Dois dias mais tarde, o piano teve a sua “vingança” com Kenny Werner. Tudo o que em Moran é artifício, em Werner transmuta-se em voz essencial. Num “Amonkst” de homenagem ao mítico bopper Thelonious Monk ou nas divagações em torno de uma “Siciliana” de Bach, Werner personificou a concentração, a clareza e a arte de navegar. Como em Moran, foram recorrentes as “saídas” e as viagens para o exterior dos temas centrais, com a diferença de que nunca soaram extemporâneas ou artificiais, como se um cordão invisível impedisse a imaginação de cortar os fios que a ligam à razão. Fluência, uma noção do ritmo próprio de um construtor de catedrais e um swing omnipresente criaram as bases sólidas sobre as quais foram edificadas imagens de extraordinária beleza, a uma escala mais evidente do que no último álbum do trio, “Beat Degeneration”. A dupla rítmica alemã formada por Johannes Weidenmueller (contrabaixo) e Ari Hoenig (bateria) evidenciou, por seu lado, uma leveza e subtileza extremas, nos antípodas da dupla de apoio a Moran. Filigranas, variações de compasso e pontuações milimétricas no caso do baterista. Pulsação orgânica, discrição e controle de velocidade no caso do contrabaixista.
Noutro local do festival, músicos portugueses em ação, um balcão de venda de CDs que foi a perdição de muita gente e uma exposição de cartazes pedagógico alusivos à história do jazz com enfoque na editora Blue Note criaram um ambiente acolhedor, ideal para se saborear o jazz. No sábado, mal se deu pela chuva e pelos trovões que ribombaram pela noite fora.

EM RESUMO
No duelo de pianos, Kenny Werner levou a melhor sobre Jason Moran. A vitória do essencial sobre o acessório. Sam Rivers fez parte de outra história.

Sam Rivers + Jason Moran + Kenny Werner + Quarteto de Pedro Madaleno + outros – “‘Play It Again, Sam’ – Seixal Jazz 2003” (concertos / jazz / festivais / antevisão)

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quinta-feira, 23 Outubro 2003


“Play it again, Sam”

SEIXAL JAZZ 2003

Sam Rivers com o trio de Jason Moran e Kenny Werner abrem hoje à noite a programação internacional do festival


O Seixal Jazz 2003 arranca hoje com os concertos internacionais. A abertura não poderia ser mais excitante. O programa anuncia como concerto de abertura Jason Moran Trio com Sam Rivers. Muitos, porém, preferirão alterar a ordem dos fatores e dizer Sam Rivers com Jason Moran. Porque, quer se queira quer não, há uma diferença de estatuto. Moran, de 28 anos, é uma das atuais coqueluches do piano. Rivers, de 73, saxofonista e flautista, é uma lenda do jazz. Moran tem técnica, bom gosto e, no novo álbum, “The Bandwagon”, a ousadia de inserir citações electro dos Kraftwerk, via Afrika Bambaataa, no jazz. Rivers tem o “blues” no sangue e outro tipo de ousadia, que o levou a criar uma topologia e lógica próprias dentro do “free jazz”, conferindo-lhe uma ordem apenas possível para quem viveu por dentro e por inteiro a tradição.
Rivers tocou com Gigi Gryce, Billie Holiday, gente da “soul”, como Wilson Pickett, dos “blues”, como B. B. King, e deuses, como Miles Davis. Gravou com Dizzy Gillespie, Tony Williams, Cecil Taylor, Andrew Hill, Bill Evans, George Russell, Dave Holland, Barry Altschul e Larry Young, entre outros. A sua entrada, no saxofone tenor, na obra-prima “Dialogue” (1965, com Andrew Hill, Freddie Hubbard, Joe Chambers…)”, do vibrafonista Bobby Hutcherson, como que projeta a música num futuro até aí inimaginado pelo “free”, numa antecipação do jazz que hoje se ouve, e a confirmar o lado mais visionário e inovador deste extraordinário intérprete e executante. Rivers – que já atuara em Portugal no final dos anos 70 no Festival de Jazz de Cascais e, há dois anos, no de Matosinhos – e Moran encontraram-se em 2001 no álbum “Black Stars”. Dois “sets”, como é hábito no Seixal Jazz, às 21h30 e 23h30, prometem dar muito bom jazz a ouvir e muito que falar.
Amanhã, o guitarrista português Pedro Madaleno apresenta-se em quarteto com Wolfgang Flur (sax tenor), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Dejan Térzic (bateria). Jazz na fronteira da fusão. Madaleno estudou, entre outros, com o pianista Kenny Werner, que amanhã, de novo em “set” duplo, atua em trio com Johannes Weidenmueller (contrabaixo) e Ari Hoenig (bateria).
Werner interpretou Duke Ellington e Bix Beiderbecke no álbum de estreia de 1977, mas na década seguinte encontramo-lo já a dar lições de piano na New School of Music, de Nova Iorque. Para trás ficavam gravações com Mingus, Archie Shepp, Chico Freeman, Lee Konitz, Joe Lovano e Maria Schneider, entre outros. Melodista imaginativo (o que terá a ver com a sua estadia na banda do baterista Mel Lewis), abrangente na assimilação quer de uma linguagem de rigor na qual alguns veem o legado de Lennie Tristano, quer nas fraturas e descontinuidades rítmicas herdadas do “free”, Werner é um dos pianistas incontornáveis do jazz atual. Álbuns como “A Delicate Balance” e “Beauty Secrets” fazem-lhe justiça.
A partir das 23h, e às 24h, nos refeitórios da antiga Fábrica Mundet, haverá mais concertos, pelo trio do pianista Filipe Melo (hoje), trio do pianista Rodrigo Gonçalves e Quarteto Politonia (ambos amanhã). A entrada é livre.
Amanhã, entre as 15h e as 18h, nos refeitórios da antiga Fábrica Mundet, o trio de Kenny Werner efetua um “workshop” de piano, contrabaixo e bateria. No sábado, à mesma hora e no mesmo local, será a vez de Sam Rivers revelar os segredos dos saxofones tenor e soprano e da flauta.

Seixal Jazz 2003
Sam Rivers + Jason Moran Trio

Hoje, às 21h30 e 23h30
Quarteto de Pedro Madaleno
Amanhã, às 21h30
Kenny Werner Trio
Sábado, às 21h30 e 23h30.
SEIXAL Auditório Municipal do Fórum Cultural.
Tel. 212226411.
Bilhetes a 10 euros.

Improvisors Pool – “Backgrounds For Improvisors” + Hans Ulrik, Steve Swallow, Jonas Johansen – “Trio” + Ahmad Jamal – “In Search Of Momentum (1-10)” + Buster Williams Quartet – “Lost In A Memory” + Angelica Sanchez – “Mirror Me” + Jason Moran – “The Bandwagon”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 6 Setembro 2003

O calor do sol volta a apertar neste final do Verão. O do jazz, idem. O piano de Ahmad Jamal queima. O de Angelica Sanchez refresca. E o de Jason Moran exibe-se. Um mergulho na piscina da improvisação pode ser uma boa opção.


Improvisação a banhos na piscina

IMPROVISORS POOL
Backgrounds for Improvisors
FMP, distri. Trem Azul
8 | 10

HANS ULRIK, STEVE SWALLOW, JONAS JOHANSEN
Trio
Stunt, distri. Multidisc
8 | 10

AHMAD JAMAL
In Search of Momentum (1-10)
Dreyfus, distri. Megamúsica
7 | 10

BUSTER WILLIAMS QUARTET
Lost in a Memory
AGB, distri. Dargil
7 | 10

ANGELICA SANCHEZ
Mirror me
Omnitone, distri. Trem Azul
8 | 10

JASON MORAN
The Bandwagon
Blue Note, distri. EMI-VC
7 | 10


Quem se dispuser a mergulhar na piscina da improvisação, caso não saiba nadar, deverá averiguar em primeiro lugar se tem ou não tem pé. É que não são poucos os casos de afogamento de incautos bem intencionados mas pouco previdentes. Nem dos que se esmagaram contra o fundo da piscina por não terem reparado que estava vazia. A Improvisors Pool é uma piscina de jazz alemã criada em Berlim em 1992 na sequência de uma série de aulas lecionadas por Alexander von Schlippenbach a uma classe de alunos da Hochschule der Künste (“escola de arte”), interessada no estudo e na interpretação de obras do pianista, compositor, arranjador e fundador, nos anos 60, da Globe Unity Orchestra. A relação entre composição e improvisação esteve desde o início no centro das atenções desta orquestra de “free jazz”. Sabe-se, ou há quem saiba, que quanto mais sólida é a arquitetura de uma peça musical, mais liberdade é concedida a um bom improvisador. Isto mesmo defende o saxofonista Sam Rivers, convidado do grupo, quando afirma que “a good jazz composition creates a framework for the improvisation” e que “given the strenght of their rhythmical moment, the themes can actually propel the improviser”. Sete composições servem para demonstrar a validade deste princípio que levou o saxofonista a subintitular a presente gravação de 1995 “Backgrounds for Improvisors”. Sam Rivers é um músico/improvisador que durante décadas viveu fora – ou antes – do seu tempo e, mesmo aos 71 anos, foi difícil ao coletivo de jovens músicos alemães assimilarem a liberdade de discurso e os seus modos de articulação com uma banda de maiores dimensões. Rivers é o visionário para quem o tempo nunca é linear (algo que terá apreendido com Cecil Taylor) mas matéria subjetiva de e em distensão contínua, como se pode comprovar pela composição de 29 minutos, da sua autoria, aqui incluída, “Background”, onde a métrica se alarga através da multiplicação pelos quatro saxofonistas da Pool. Schlippenbach limpa a piscina de detritos, renova a água e faz as contas para que no final tudo bata certo (o solo de piano que jorra a meio do tema é um teste à resistência e economia dos materiais de construção). Sem afogamentos nem inundações. Com ou sem boia, vale a pena lançarmo-nos nos remoinhos e correntes destes “Backgrounds for Improvisors”, um banho estimulante de arrojo e criatividade.
Mais domesticada mas não menos possuída pela energia é a música de “Trio”, com Hans Ulrik, nos saxofones soprano e tenor, Steve Swallow, no baixo elétrico, e Jonas Johansen, bateria e pandeiro. Bastaria o prazer de reescutar o “drive” de um dos mestres do baixo elétrico, Steve Swallow, para recomendar a audição. Swallow mostra-se imparável, desenhando com insuperável clareza incessantes motivos rítmicos e melódicos que Ulrik aproveita da melhor maneira para colocar por cima os timbres, roucos e quentes, e os fraseados, por vezes de cepa rollinsoniana, dos seus sopros. Jazz de grande solidez, assente na tradição, imbuído de urgência e da exploração de novas ideias.
Quem não se pode queixar de falta de energia e de capacidade de “ataque” é o veterano pianista (72 anos) Ahmad Jamal, na liderança de outro trio, no caso formado por Idris Muhammad (bateria) e James Camack (baixo), em “In Search of Momentum (1-10)”. O modo como o pianista “ataca” as notas e articula acordes e harpejos no tema de abertura indicia inquietação e o desejo de “falar alto”, arrancando de cada sequência de notas principalmente as suas potencialidades rítmicas. Não há sombras, nem manchas nem nevoeiros impressionistas, mas a vontade de exprimir com máxima clareza as “nuances” da inspiração. Nem a ternura de “I’ve never been in love before” resiste ao clamor dos “clusters”.
Miles Davis, os Jazz Messengers e McCoy Tyner fazem parte do currículo do contrabaixista e compositor Buster Williams. E Herbie Hancock, com quem colaborou, nos anos 70, em três obras importantes deste pianista, “Mwandishi”, “Crossings” e “Sextant”. “Lost in a Memory” apresenta-o em quarteto com o vibrafonista Stefon Harris, a pianista Geri Allen e o baterista Lenny White. Em equilíbrio “entre a disciplina e a criatividade”, a escrita e o aproveitamento do instante, Buster assina a maioria das composições num registo próximo do “hard bop”, apoiado nas linhas de “walking bass” que caracterizam o seu estilo. O piano de Geri Allen e o vibrafone de Stefon Harris (regra geral, com a caixa de ressonância aberta ao máximo) conferem colorido tímbrico e delicadeza a um álbum marcado pela competência mas que só teria a ganhar com um pouco mais de arrojo. A balada “Deja”, dedicada a um neto, e “I thought about you”, em andamento inicial de valsa, versão de um tema anteriormente tocado por Miles Davis (atenção ao swingante solo de vibrafone), são genuinamente tocantes, enquanto “Why should I pretend”, estreia de Buster como vocalista, não resistiu a socorrer-se do melaço de cordas sintéticas para acentuar os gemidos de solidão de um coração partido.
Começar por ouvir Elton John e Boy George poderá não ser o melhor caminho de aprendizagem para um pianista de jazz. Mas foi assim que aconteceu com Angelica Sanchez, jovem de ascendência mexicana cujo primeiro instrumento foi o clarinete. Seguiram-se as audições de Tito Puente, Willie Bobo, Dave Brubeck, os Modern Jazz Quartet e o Miles de “Miles Smiles”. No fim, aproveitou tudo para desenvolver um estilo discreto de execução e uma ausência de preconceitos que lhe permitem tocar tanto a música sacra de Olivier Messiaen como a “country” de Merle Haggard ou fazer a reconversão de um velho “boogie pop” dos T. Rex. “Mirror me”, porém, é jazz ao mais alto nível, tendo a pianista criado, à semelhança dos Improvisors Pool, uma série de “environments” dirigidos à criatividade dos solistas, aspeto que tanto confirma o excecional talento do algo menosprezado Michael Formanek, no baixo, como revela um notável saxofonista tenor e improvisador, na pessoa de Tony Malaby. O seu diálogo, terno e ferrugento, com a conjunção de metal e água da pianista, no título-tema, é um dos pontos altos e de maior extravagância de “Mirror Me”.
É, a par de Matthew Shipp e Uri Caine, um dos pianistas da moda. Chama-se Jason Moran, “nasceu” com o grupo de Greg Osby e tenta aproveitar da forma que mais lhe convém a onda que lhe é favorável. No novo “The Bandwagon”, gravado ao vivo no Village Vanguard, tendo a secundá-lo Tarus Mateen, no baixo, e Nasheet, na bateria, Jason dá “show”. De técnica, bem entendido. E de “musical awareness”, como deixa a entender a inclusão de um “Intermezzo, op.118, no.2”, de Brahms, capaz de colocar o rapaz na mesma fila do conservatório de Keith Jarrett mas, infelizmente, desfeito por um despropositado acompanhamento de baixo “ó-pra-mim-como-sou-rápido”. “Ringing my phone” aposta no uníssono piano/voz e nas onomatopeias, “Out front” é bom trabalho a três e “Gentle shifts south” um inusitado monólogo. Neste, como noutros temas, Jason “scata” alto e bom som sobre as notas do piano mas a precipitação de música sem a preocupação de exibir um estilo moderno e abrangente chega, paradoxalmente, com “Planet rock”, repleto de citações, incluindo “Trans Europe Express”, dos… Kraftwerk! Tudo se transforma. A vivacidade, a sensibilidade, a entrega e o humor dão a mão às mãos e – “helas” – Jason Moran, esquecendo-se de o publicitar, mostra que é mesmo um grande pianista.