Arquivo da Categoria: Críticas 1989

Biota + Mnemonists – Discografia de Álbuns

LP

9 DE MARÇO DE 1989
EXPRESSO

BIOTA/MNEMONISTS

DISCOGRAFIA DE ÁLBUNS

BIOTA
– VAGABONES & RACKABONES (duplo)
– BELOWING ROOM
– TINCT

rackabones

MNEMONISTS
– HORDE
– GYROMANCY
– NAILED

horde

Há música e músicos deveras estranhos. Os BIOTA exageram na estranheza. Não fazem música, na acepção usual do termo; os sons produzidos em cada disco deste grupo são a manifestação primeira, emergente do caos primordial. Com os BIOTA assistimos ao próprio nascimento da música, à formação das formas originais, anteriores a qualquer separação de géneros ou estilos. Ou então, dependendo da perspectiva em que nos colocarmos, trata-se da síntese definitiva. A unificação de todos os sons, todos os ritmos e melodias. O ruído final. Uma nova noção de harmonia.
Se quisermos pôr a questão em termos de energia, os BIOTA são a convergência de todas as energias telúricas, subterrâneas. Há na sua música uma pulsação quase monstruosa, como se o coração e as entranhas da terra se derramassem para o exterior através de sons brotando com contínua torrente de lava. Estas as imagens, as aproximações possíveis. Passemos aos factos e às certezas (poucas) que os BIOTA condescendem em nos revelar.
Facto 1: BIOTA é uma das duas designações para um projecto estético global, único, sendo a outra MNEMONISTS. Estas diferentes designações para um mesmo núcleo principal de músicos apresentam discografias separadas mas de características comuns.
São elas: Uma absoluta radicalidade estética, aos níveis conceptual e formal. Um cuidado extremo na apresentação final de cada trabalho. Assim, cada disco de um ou outro destes dois agrupamentos é quase sempre acompanhado por um conjunto de gravuras, da autoria dos seus próprios membros. Nenhum pormenor é descuidado, apresentando-se o produto final como uma autêntica obra de arte. O que nos conduz ao Facto 2: A ligação contínua entre a imagem pictórica e o som. Escutar um disco dos MNEMONISTS / BIOTA é como assistir a um filme de misterioso enredo e difícil apreensão. Se quisermos encontrar uma lógica nestas sequências de sons e imagens perfeitamente alucinantes, teremos que recorrer à (i)lógica do próprio inconsciente. O discurso ganha coerência, o puzzle é solucionado, o mistério parcialmente revelado. Passemos então para o Facto 3: O culto assumido pelo misterioso e pelo obscuro. Paradoxalmente (ou não), a par da profusão de imagens que acompanha cada disco, constata-se a quase total ausência do outro tipo de informações. Os próprios títulos das faixas são perfeitamente insondáveis. Uma das gravuras incluídas num dos álbuns intitula-se «MYSTERIUM TREMENDUM ET FASCINORUM». Elucidados?
Paradoxo final: Os BIOTA / MNEMONISTS (já agora refira-se que são americanos) tocam uma profusão de instrumentos acústicos (incluindo medievais!) soando a sua música como se fosse electrónica…
Da discografia do colectivo conheço três álbuns, todos eles inevitavelmente gravados para a Recommended Records: «HORDE», dos MNEMONISTS e «VAGABONES & RACKABONES» (duplo) e o mais recente, «TINCT», dos BIOTA. «HORDE» soa como um cruzamento dos NURSE WITH WOUND com música barroca, povoado de sons parasitários de toda a espécie. «VAGABONES» lembra por vezes os RESIDENTS da 1.ª fase, mas não se iludam, os BIOTA conseguem ser ainda mais estranhos e obscuros. «TINCT» mistura uma espécie de free jazz como se fosse tocado por um grupo de doentes mentais, com órgão de igreja e abstracções sonoras próprias da música concreta. A originalidade é, em qualquer dos casos, total.
Os BIOTA / MNEMONISTS construíram um universo musical único, completamente à parte e alheio a todos os pontos de referência habituais. Cabe a cada um a exploração dos seus segredos. Mas antes de descerem às profundezas, munam-se de luz!

Nota: No artigo sobre Hector Zazou, por mim redigido, publicado há quinze dias, mencionei Joseph Racaille, seu companheiro nos ZNR, como não sendo pianista. Acontece que o é, de facto, para além de também tocar sopros. Poucos terão notado o lapso, de qualquer forma aqui fica a correcção.

Biota – Vagabones & Rackabones, aqui
Mnemonists – Horde, aqui





Skeleton Crew: The Country Of Blinds

LP

2 DE FEVEREIRO DE 1989
33

SKELETON CREW
THE COUNTRY OF BLINDS
Recommended, imp. contraverso

Fred Frith está em todas. Presente em quase tudo o que de mais importante e original se vai fazendo em música por este mundo fora. Seria fastidioso enumerar todos os discos e projectos de que Frith fez, de algum modo, parte. Citemos apenas alguns dos mais importantes: Henry Cow, Art Bears, massacre, Etron Fou Leloubaln, duos com Chris Cutler ou Henry Kaiser, colaborações com Robert Wyatt, Brian Eno, um nunca mais acabar de ramificações por variadíssimos ramos da música actual. Uma coisa é certa: por onde passa deixa bem vincada a sua marca, seja como compositor, produtor ou simples intérprete. E claro que a par de toda esta actividade com outros músicos, Fred Frith conta já com uma impressionante discografia a solo, donde se destacam obras-primas como os álbuns «Gravity», «Speechless» ou o recente duplo «The Technology of Tears».
Os Skeleton Crew são um dos seus mais recentes projectos colectivos. Têm no activo dois álbuns: para além deste, a estreia com «Learn to Talk». Constituem o grupo, mestre Frith que toca neste disco guitarra, baixo, violino e bateria, para além de cantar, mais dois outros excepcionais músicos: Tom Cora, o Jimi Hendrix do violoncelo electrificado e Zeena Parkins na harpa, também electrificada. Cada um destes dois toca ainda mais alguns instrumentos, enfim, são só três mas parecem muito mais.
«The Country of Blinds» é mais radical que o seu antecessor «Learn to Talk», tanto ao nível dos textos como ao da música. Aqueles podem ser classificados como de intervencionistas, politicamente empenhados, no sentido mais nobre do termo. Denunciam, de um modo não panfletário, os pobres do poder nas sociedades pró-totalitárias em que vivemos. As nossas fraquezas também não são poupadas. «The Country of Blinds», «Man or Monkey», «Dead Sheep» e sobretudo «The Hand That Bites» são alguns títulos de faixas deveras elucidativos. Musicalmente os Skeleton Crew retêm do jazz e do rock o melhor de cada um. Do primeiro, a riqueza rítmica e a capacidade de improvisação; do segundo, uma energia enorme. Predominam as cordas, claro. É preciso não esquecer o facto de Fred Frith ser um dos mais geniais guitarristas da actualidade. Este disco demonstra-o à saciedade. Também Tom Cora e Zeena Parkins não deixam os seus créditos por mãos alheias, nos respectivos instrumentos principais, o violoncelo e a harpa. Há também canções, espalhadas ao longo deste álbum. Canções estranhas, amarguradas, com as vozes a gemerem ou a gritarem, por vezes à beira da histeria. Sons e palavras que nos arranham a consciência e nos arrancam do conforto e preguiça com que tantas contemporizamos, ao escutar discos que nos pedem muito mais. Habituámo-nos a encarar a audição de um disco como algo de passivo. Está mal. É necessário educar os ouvidos e o gosto, espicaçar a sensibilidade, arriscar novas experiências e sons desconhecidos. É preciso procurar a originalidade e a qualidade onde elas verdadeiramente estão. A inovação transcende sempre o tempo, quanto mais as modas!…
A música do país dos cegos acorda os sentidos e sacode a inteligência. Confunde e espanta. Atrai e repudia. Brinca connosco a sério. Muitos detestarão este disco, outros encontrarão nele o estímulo para o experimentar de novos percursos e novas músicas, menos populares, é certo, mas de certeza mais ricas e compensadoras.
Abram os olhos, apurem o ouvido! Em terra de cegos…

Estes e mais 25 álbuns em que entra Fred Frith, a partir daqui.