Arquivo da Categoria: Contemporânea

Kronos Quartet – “Kronos Quartet – Entre O Brilhantismo E O Bocejo”

Secção Cultura Terça-Feira, 07.05.1991


Kronos Quartet
Entre O Brilhantismo E O Bocejo


Os Kronos Quartet tocaram domingo no Tivoli vestidos de todas as cores, às riscas e aos quadrados. Serviram-se dos instrumentos de corda como se fossem tambores. Apanharam o comboio de Steve Reich e, no fim, quase saltaram das cadeiras, para interpretar um clássico de Jimi Hendrix. A música de câmara já não é o que era.



Sobre o palco do cinema Tivoli, em Lisboa, discretamente iluminado, três homens e uma mulher, de vestes garridas e pose descontraída. Dois violinos, uma viola, um violoncelo. O bastante para, mal as cordas começaram a vibrar, fazerem desaparecer num instante as ideias preconcebidas sobre como aqueles instrumentos devem soar. De resto, os Kronos Quartet fizeram aquilo que deles se esperava, ou seja, uma demonstração de diferentes abordagens à música contemporânea, filtrada pela sensibilidade muito própria dos quatro músicos e traduzida numa criteriosa e diversificada escolha de repertório.
Do programa constavam obras dos compositores africanos Dumisani Maraire e Foday Musa Suso (respectivamente “Mai Nozipo” e “Tilliboyo”), do nova-iorquino supersónico John Zorn (“The Dead Man”), do polaco Henrik Mikolaj Gorecki (“Already i tis Dust”) e do holandês Louis Andriessen (“Facing Death”).
Logo na primeira peça se viu que, para David Harrington, John Sherba, Hank Dutt e Joan Jeanrenaud, o termo “instrumentos de corda” não é um conceito linear. As respectivas caixas de ressonância pareciam ter sido construídas de propósito para servirem de tambores, suporte de complexos e delicados batuques. Desconfia-se que, em certas passagens, os músicos terão utilizado, em cada mão, mais um ou dois dedos sobresselentes. Em “Tilliboyo” (“Pôr-do-sol”) – ênfase para o rendilhado de “pizzicatos”, criadores de intrincadas tapeçarias rítmicas. A escolha destas duas obras serviu pelo menos para demosntrar a importância que os Kronos Quartet dão às músicas não-ocidentais e para convencer as sensibilidades mais empedernidas da imensaidade de notas clandestinas escondidas entre os meios-tons da nossa querida escala.
Com John Zorn as coiss aceleram inevitavelmente. Dividido em pequenas células autónomas, “The Dead Man” deu para tudo – serrotes com o freio nos dentes, explosões, respiração asmática, ranger de portas, ou simplesmente a vibração do ar agitado freneticamente pelos arcos dos instrumentos, foram alguns dos timbres, mais ou menos agradáveis ao ouvido, com que os Kronos Quartet presentearam uma assistência ávida de bizarrias. Mal imaginava ela que a “pior” parte estava para vir, a da música “séria”, sorumbática, de fazer descair os cantos da boca e franzir as sobrancelhas. Falemos então de coisas sérias.
“Already i tis dusk”, assombrosa de intensidade dramática, mergulha nas pulsões humanas mais obscuras, progressão majestosa pelos meandros da alma em busca da luz, culminando na total suspensão temporal, num silêncio e paz tumulares acentuados pela iluminação de palco, reduzida a um penumbra crepuscular.
Louis Andriessen compõe sempre a partir de temas grandiosos. Seja no tríptico “Il Duce”, baseado na vida do ditador italiano, no “Il Principe”, de Maquiavel, no “magnum opus”, “De Staat”, inspirado na “República” de Platão ou na ópera “Passion selon Saint Matthieu, Orpheu set George Sand”, há sempre motivos para profundas especulações metafísicas. Foi o que aconteceu na sala do Tivoli, durante “Facing Death”, já que grande parte dos presentes baixou as pálpebras, abandonado-se aos prazeres soporíficos da contemplação. A luz súbita do intervalo serviu para despertá-los do êxtase.
“Different Trains”, obra minimal-ferroviária do compositor americano Steve Reich, ocupou integralmente a segunda parte do concerto. Encomendado pela CP, por ocasião da inauguração do troço Rossio – Cais do Sodré, “Different Trains” é uma espécie de contraponto erudito da “Autobahn” (“auto-estrada”) dos germânicos Kraftwerk ou de “Station to Station” de David Bowie. As cordas juntam-se a outras pré-gravadas e a vozes aleatórias que periodicamente vão determinando as progressões melódicas dos instrumentos ao vivo, segundo um processo semelhante e radicalmente assumido por Scott Johnson na obra-prima “John Somebody”.
“4/4 Tango”, de Astor Piazzolla, cumpriu de forma brilhante o primeiro encore. Finalmente, no segundo e último, o tema por que todos esperavam – “Purple Haze”, de Jimi Hendrix. Delírio generalizado, dos músicos (“atacaram” o tema de tal forma que por pouco iam rebentando as cordas) e do público, infelizmente pouco numeroso. Aos Kronos Quartet só faltou pegarem fogo aos violinos. Bem vistas as coisas, até pegaram…

Kronos Quartet – “Kronos Quartet, Hoje, Em Lisboa – O Quarteto Da Corda” (concertos | antevisão)

Secção Cultura Domingo, 05.05.1991

Kronos Quartet, Hoje, Em Lisboa
O Quarteto Da Corda

Hoje à noite, no Teatro Tivoli, em Lisboa, os Kronos Quartet vão causar estragos nos hábitos auditivos mais enraizados. Que se desiluda quem estiver à espera de um quarteto de câmara convencional. O jazz, a pop e a clássica vibram nas suas cordas com a mesma intensidade. E a mesma loucura.



São considerados a “big thing” da actualidade, no capítulo das cordas. Eruditos, não pretendem sê-lo nem parecê-lo. Tocam (e de que maneira) instrumentos de corda, os mais vulgares: violino (dois), viola (acrescente-se “de arco”, não vão ficar confundidos os nababos) e violoncelo. Os nomes: David Harrington, John Sherba (violinistas), Hank Dutt (violista), Joan Jeanrenaud (violoncelista). “Kronos Quartet” – a designação escolhida. “Kronos”, do grego “Chronos”, que significa “tempo”. “Quartet”, acredite-se ou não, porque tem a ver com serem quatro.
Tecnicamente são perfeitos. Utilizam os instrumentos, algumas (poucas) vezes de forma convencional, mas na maior parte do tempo dedicam-se a arrancar-lhes sons que se diriam emitidos por alienígenas. O que não admira, se levarmos em consideração o repertório diversificado, constituído por obras, na maioria escritas e encomendadas pela nata dos compositores contemporâneos: Terry Riley, Steve Reich, Philip Glass, John Zorn, Jon Hassell, Arvo Part, John Lurie, Ornette Coleman, Istvan Marta, entre outros. Mas a lista de nomes importantes que interpretam não fica por aqui, num total de cerca de 4 mil peças que engloba trabalhos de Anton Webern, Charles Ives, Conlon Nancarrow, Bela Bartok, Astor Piazzolla, Samuel Barber, Aulis Sallinen e… Jimi Hendrix. Há planos para, num futuro próximo, trabalharem com Sting.
O seu mais recente álbum, gravado para a Elektra Nonesuch, como é costume e de bom tom nestas coisas da vanguarda, intitula-se “Black Angels” e inclui temas de Charles Ives, George Crumb, Istvan Marta, Dmitri Shostakovich e, numa inflexão à música antiga, Thomas Tallis. O disco, tal como os anteriores, “Salome dances for Peace” (música de Terry Riley), metade de “Different Trains” (Steve Reich), uma composição (2Forbidden Fruit”) em “Spillane” de John Zorn, “Winter was Hard”, “White Man Sleeps”, “Kronos” e a banda sonora de “Mishima” (composta por Philip Glass), está repleto de humor e de proezas virtuosísticas de espantar, já que os quatro Kronos Quartet primam em fazer da pauta papel de rascunho para escrever, e da escrita, reescrita. No último álbum, uma das selecções, “Spem in Alium”, da autoria do compositor inglês do séc. XVI, Thomas Tallis, originalmente um moteto para quarenta vozes, transmutou-se numa mistura de oito gravações do quarteto, em estúdio, de maneira a soar como um naipe orquestral de trinta e dois instrumentos. No extremo oposto, o rock – Jimi Hendrix jamais sonharia ver “Purple Haze” ser tocado por um quarteto de cordas. A música do quarteto californiano materializa os sonhos mais impensáveis.

Liberdade Formal

Os Kronos Quartet sentem-se à vontade em todos os géneros musicais e permitem-se todas as liberdades. Diz um dos seus membros, David Harrington: “Se não tocasse com este grupo, provavelmente seria jardineiro. De facto, ele permite que todas as minhas fantasias se tornem realidade”.
Afirmam-se próximos do espírito do jazz. Ao vivo mais parecem, de facto, um agrupamento desse tipo, em pleno delírio de improvisação. Nos espectáculos utilizam jogos de luzes e adereços variados (uma vez trouxeram um “robot” para o palco), criando um ambiente característico de concerto rock. Há quem veja neles os Velvet Underground da moderna música de câmara. Não gostam de etiquetas e preferem que lhes chamem apenas “Kronos”, para evitar as conotações de académica respeitabilidade que a designação “String Quartet” comporta e que de todo renegam. Assumem, como principais influências, David Bowie, Charles Dickens, Isaac Asimov, Rainer Maria Rilke, os Police, Van Gogh, o jazz dos ghettos do Soweto, Beethoven e Hendrix.
No concerto de hoje à noite, vão tocar, na primeir aparte, obras de Dumisani Maraire, Foday Musa Suso, John Zorn, Gorecki e Louis Andriessen e, na segunda, a totalidade de “Different Trains” de Steve Reich. Uma experiência a não perder.

Wim Mertens – “Minimalista Wim Mertens Lança Obra Em Sete CD – A Eternidade Em Cinco Horas”

Secção Cultura Sexta-Feira, 05.04.1991


Minimalista Wim Mertens Lança Obra Em Sete CD
A Eternidade Em Cinco Horas



Minimalista, monárquico, pós-moderno, genial e louco são alguns dos adjectivos aplicáveis ao compositor belga Wim Mertens. Sobretudo os dois últimos, se levarmos em conta o seu mais recente trabalho, “Alle Dinghe”, com mais de cinco horas de duração, só ao alcance dos iniciados.
“Alle Dinghe” cumpre uma promessa antiga. Desde o ano passado, quando o músico, monárquico e tradicionalista convicto (tocou em particular para o rei de Espanha…), actuou a solo no Teatro S. Luiz em Lisboa, que a ideia germinava no seu cérebro fervilhante. Ao ritmo dos passos e das vibrações da serra de Sintra, Wim Mertens discorria, num monólogo interminável, sobre aquela que seria a obra-chave, solução definitiva para os mistérios que a sua música encerra, vitória sobre o tempo, a eternidade, em suma.
Mertens considera-se um enviado dos deuses, portador de uma missão a cumprir – transmitir aos homens a verdade última – dos sons, da melodia e harmonia absolutas, ocultas na estrutura pitagórica do verbo composicional, estrutura já manifestamente evidente, aliás, nos dezassete minutos finais de harpa algébrica, para muitos insuportáveis, de “Educes Me”. Toda a sua obra anterior a “Alle Dinghe” (de que “Vergessen”, “Maximizing The Audience”, “Struggle For Pleasure” ou “After Virtue” constituem fases cruciais) avança por aproximações progressivas a essa essência. Para quem não conhece nem seguiu, passo a passo, nota a nota, esse percurso em direcção ao segredo, torna-se incompreensível, senão mesmo penosa, a audição integral deste trabalho, só comparável, em depuração formal e duração, a “The Well Tempered Piano”, do profeta LaMont Young.

O Tempo Imóvel

Dividida em três núcleos fundamentais, distribuídos por sete (!) discos compactos arrumados em três caixas, Alle Dinghe” (gravado na editora “Les Disques du Crépuscule”, distribuída em Portugal pela Contraverso) dura exactamente cinco horas, cinquenta e cinco minutos, dezassete segundos. “Sources of Sleepness” constitui a matéria dos dois primeiros CDs – “Meinleib ist mude” e “Venerandam” num, “Sub Rosa” e “Le Bref” no outro. “Vita Brevis” estende-se, em sete partes, por mais dois compactos. Finalmente, “Alle Dinghe”, dividido em dez partes, preenche os restantes três.
Para a escuta contínua e integral da obra, torna-se necessário cumprir certos requisitos, a saber: jejum prévio durante os cinco dias (tantos quantas as horas de “Alle Dinghe”) anteriores à audição, depois do qual, no caso de se ter sobrevivido à fominha, se deverá dedicar cinco horas à meditação transcendental, de modo a evitar ao máximo possíveis acessos de impaciência, que, nestas circunstâncias, poderão ser fatais.
“Sources of Sleepness” recupera o formato instrumental dos Soft Veredict. Oito músicos dão corpo a este “perpetuum mobile”, através de uma combinação característica da música de câmara (tuba, clarinete, flauta, violino, violeta, violoncelo e contrabaixo) e de desenvolvimentos melódico-harmónicos que retomam o minimalismo na sua vertente mais radical.
“Vita Brevis” aponta para uma concepção temporal própria do Zen – sucessão cíclica de infinitos instantes, como um filme observado ao fotograma, micro-espirais de fogo desenroladas, ao longo de mais de uma hora, pelo fagote, em solo absoluto de Luc Verdonck, à semelhança do que acontece nas “Instrumental songs” interpretadas, também em solo-absoluto, pelo saxofone soprano de Dirk Descheemaeker, no álbum do mesmo nome.
Os três últimos CDs correspondem ao desfecho em forma de odisseia extática, “Alle Dinghe”, síntese operatória e manifesto teórico das premissas subjacentes à música e concepções existenciais do seu autor – ultrapassagem da linguagem e do pensamento conceptuais, considerados prisões que obstam à pura contemplação da vida e do perpétuo e imprevisível movimento que, por essência, ela é. O “tal-qualismo” de que falavam os mestres Zen, visão das coisas “tal qual são” e não como as pensamos. Cada parte de “Alle Dinghe” recorre a fonemas destituídos de sentido (“zo”, “al”, “ook”, “et”, “tt”, “en”…), para descobrir o vazio que corrói a carne das palavras e ao mesmo tempo apontar o silêncio incomensurável do Todo, do Nada que é o tudo da realidade manifestada.
A música, enfim, liberta de grilhetas do significado. Reduzida a um trio instrumental violino / violoncelo / contrabaixo, a sequência final (e anti-apoteótica) de “Alle Dinghe” derruba todas as concepções, teoria e modos de percepção sonora que a construção fictícia do Ego geralmente implicam. Wim Mertens dá voz e espaço à liberdade anteriormente enunciada por LaMont Young, na vertigem silenciosa do “teatro da música eterna”. Não são diferentes, a Eternidade e o Instante.