Arquivo mensal: Março 2010

A Grande Arte Dandy dos XTC

05.10.2001
A Grande Arte Dandy dos XTC

A reedição, em imaculadas miniaturizações, da discografia correspondente à primeira vida do grupo, volta a repor no imaginário pop das últimas duas décadas a grande arte “dandy” dos XTC.

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XTC sabe a “ecstasy”. No ano em que os XTC se formaram, em 1976, ainda não tinham aparecido as pastilhas que dão cor aos olhos e asas aos pés. Mas estava certo. Quando, já no final da década, o punk conseguiu por fim arranjar espaço para introduzir a energia bruta e a boçalidade na então depauperada indústria da pop, os XTC mostraram que afinal era possível ser forte e inteligente sem ter que dar um pontapé no traseiro da tradição.
Hoje os XTC são sinónimo de sofisticação levada aos limites do hedonismo e de arranjos que exigem do estúdio no mínimo 72 pistas de gravação, de forma a fazer valer os seus direitos. Mas nem sempre foi assim.
A história da pop, ao contrário de todas as outras, repete-se. A dos XTC volta a ganhar honras de escuta, agora dignificada por um pacote de reedições, da responsabilidade da EMI Toshiba japonesa (distribuição EMI-VC), da sua discografia maioritariamente dos anos 70 e 80. Fabulosas reproduções miniatura cartonadas dos originais em vinilo de “White Music” (1978), “Go 2” (1978), “Drums and Wires” (1979), “black Sea” (1980), “English Settlement” (1982), “Mummer” (1983), “the Big Express” (1984), “Skylarking” (1986), “Oranges and Lemons” (1989) e “nonsuch” (1992).
Corria ainda gloriosa a época do rock progressivo quando Andy Partridge, futuro líder venerado dos XTC, formou em Wiltshire, Inglaterra, em 1972, os Star Park (Rats Krap ao contrário). No ano seguinte o grupo, já com o novo elemento, Colin Moulding, alterou o nome para Helium Kids, sob a influência corrosiva do proto-punk de Detroit dos MC5 e do “camp” sanguinolento de Alice Cooper. Ninguém adivinharia que o futuro haveria de se chamar estilo, inteligência e sonho.
Ainda hesitante entre mudar de novo de nome, para XTC ou The Dukes of Stratosphere, Partridge optou pelo mais curto, ainda que os segundos tenham chegado a gravar os obscuros e psicadélicos “25 O’Clock” e “Psonic Psunspots” (Partridge costumava dizer que tinha nascido com duas décadas de atraso – a sua pátria era o psicadelismo). O punk chegara. Mas para os XTC a fase do “noise” e da adrenalina gratuita já pertenciam ao passado. Não admira que o álbum de estreia, “White Music”, fosse recebido com exclamações de admiração, como reacção à “coragem” demonstrada pelo grupo. A “coragem” estava no factor melódico. Nas canções cantaroláveis. Numa “britishness” de dandies diletantes que contrastava fortemente com o cinzentismo dos prosélitos do alfinete. Tudo isto se encontra em “White Music”, álbum que contribuiu para que o punk se passasse a chamar “new wave”. Mesmo assim, é o álbum mais energético dos XTC, quase tosco, em comparação com as sinfonias pop que estavam para vir.
“Go 2” é mais minimalista e urbano, atravessado por refregas industriais. Por esta altura, e em consequência de uma digressão conjunta com o grupo americano, era costume apelidar os XTC de “Talking Heads ingleses”. Fazia sentido. Mas enquanto a banda de David Byrne sobrevoava a América desenhando o mapa das suas paranóias, os XTC optaram por flutuar de balão sobre a velha England, fascinados pelos seus parados, os homens de chapéu de coco com o “Times” debaixo do braço, e os telhados de Londres num dia de chuva.

Sinfonias Barrocas
Com “Drums and Wires” a metamorfose estava completa. Os XTC tinham-se tornado uma banda pop com engenho e arte para preencher as “charts” com canções de irresistível apelo, como “Making plans for Nigel” e o míssil melódico “Senses working overtime”. Os cinco sentidos faziam mesmo horas extraordinárias.
“Black Sea” apresenta-se já como um objecto de luxo, fruto de uma relação intensa com o estúdio. Andy Partridge, apesar de excêntrico e de se vestir de forma ridícula, como os “mods” dos anos 60, ou de calções e boné de ciclista, é um perfeccionista que sempre preferiu a confecção laboratorial em estúdio do que expor-se à avaliação ululante dos espectáculos ao vivo. Como Ray Davies, dos Kinks, tornou-se o retratista dos tiques, dos lugares e das personagens de uma Inglaterra presa entre as rendas vitorianas, as chaminés das fábricas, as tragicomédias familiares que se ocultam atrás de paredes de tijolo, e uma aristocracia de sonâmbulos e “toilettes” à deriva entre Wimbledon, Brighton e Ascot.
O duplo “English Settlement” e “Mummer” são obras-primas de pop mesclada de folk e fantasia. Chamam-lhes os álbuns “rurais” e as capas de ambos são de facto manchas de verde, mar, bosques e humidade. É necessário ouvi-los muitas vezes para se colher deles o maior número de emoções.
O comboio retrocedeu ligeiramente na estação de “The Big Express”. Canções saídas de uma rotativa em andamento acelerado, tiveram pouco tempo para se cuidar em frente ao espelho.
Mas acordados pela Primavera de “Skylarking”, o narcisismo e o gosto pela arquitectura barroca renasceram em todo o seu esplendor. Cada canção é uma filigrana de melodias, ora alinhadas ora em contramão. Os arranjos, entre o chilrear de aves do paraíso, orquestras campestres e guitarras de lâmina afiada, têm a mão de um deus qualquer. Provavelmente Todd Rundgren, que se encarregou da produção, um dos génios e magos de estúdio mais menosprezados da pop artificial, autor da descomunal alucinação sónica que é “A Wizard/A True Star”. Tão alto voaram os XTC em “Skylarking” que alguns atreveram-se mesmo a invocar o nome sagrado dos Beatles.
Atingido o cume segue-se a queda. É inevitável. Mas os XTC caíram devagar. Primeiro em “Orange and Lemons”, o álbum funky, das canções longas e ritmos musculados. A seguir, as melodias arrevesadas de “Nonsuch”, que tombam como flocos de neve.
Com a chegada do Inverno, os XTC retiraram-se para hibernar. Regressaram em 1999, mais pujantes do que nunca, para orbitarem em torno de Vénus e morderem a maçã, na “continuing story”, “Apple Venus”. Mas essa é já outra história, com novos cambiantes. Comprovativa de que a história que Andy Partridge tem para contar, esteja ou não longe do seu epílogo, terá sempre um final feliz.

Residents – Freak Show Olhos Nos Olhos

28.09.2001
Residents
Freak Show Olhos Nos Olhos

Quem são os Residents?. A pergunta tem sido obsessivamente feita nos últimos 30 anos. A mais famosa banda desconhecida do planeta actua pela primeira vez em Portugal. Sem bilhete de identidade, de fraque e olhos gigantescos no lugar da cabeça. Um concerto histórico.

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Desde que se formaram, em 1970, no estado do Louisiana, terra de carnaval e feitiços, os Residents têm conseguido manter o anonimato. Como e porquê? Como, ninguém sabe. Porquê, porque a questão é irrelevante, dizem eles, e apenas a obra importa. Não se sabe sequer se os músicos que amanhã e domingo irão apresentar no Centro de Arte Moderna, em Lisboa, o novo projecto multimédia “Icky Flix”, no âmbito dos Encontros Acarte, são os mesmos – pelo menos alguns deles – que nos anos 70 atiraram à cara da pop álbuns como “Meet the Residents”, “The Third Reich ‘n’ Roll” e “Eskimo”.
O mistério é intenso, persistente e excitante. Tudo na biografia desta banda pode ser, de resto, mentira, avisa o “site” oficial, residents.com. O mito rodeia todas as actividades dos Residents. Daí o seu poder e eficácia. Os Residents mentem deliberadamente nas entrevistas. Os Residents são humanos? É muito provável que não…

Olhos Nos Olhos
Quem são os Residents? Há quem jure a pés juntos ter estado a seu lado, ter-lhes tocado e conhecer as suas identidades. Nada de especial: são elementos do “staff” da editora Ralph, que formaram ainda nos anos 70 para gravar e distribuir uma música então dificilmente tolerável pelo “mainstream”. Um admirador conseguiu mesmo os seus autógrafos: “Mr. Resident”, “A Resident” e “Residents”.
Afinal, que importância tem saber os nomes? John Smith, Elvis Presley, Abigail Crunch Manuel Ferreira (sim, pode acontecer que haja um português no grupo!)? Absurdo, inquietante, ridículo, irrisório. Mas… quem são os Residents? Que nome dar à ameaça?
Ao vivo, os Residents apresentam-se de fraque e máscaras de globos oculares. Antes costumavam disfarçar-se de lagostas e passear pelos supermercados enfiados em uniformes de amianto. São um quarteto, como os Beatles. The “fabulous eyeballs”. Quando uma das máscaras oculares foi roubada, o quarto “resident” passou a ocultar-se atrás de um crânio e a chamar-se Mr. Skull.
A inquietação, potenciada pelo anonimato, aumenta ao fazermos uma análise da sua obra. Desde o início, o grande objectivo dos Residents tem sido o de minar metodicamente os alicerces da música pop, introduzindo no espaço oco um sucedâneo, por vezes colorido, por vezes sombrio, umas vezes doce, outras amargo, mas sempre camuflada por uma camada em que o humor e a perversidade se confundem. As formas, os géneros, a mitologia, a iconografia da galáxia pop e, finalmente, as novas tecnologias multimédia, têm sido aspiradas, marteladas, amassadas, pervertidas (ou redimidas?) e vomitadas nos media pelos Residents. Existe uma filosofia e uma ideologia subjacentes ao “cartoon”. A desmontagem obedece a regras. Apaga-se a luz. Estudam-se os tiques. Substitui-se o recheio.
A inversão tornou-se visível muito cedo. O single de apresentação, “Santa Dog”, é um anagrama de “Satan God”. O EP “The Beatles Play the Residents and the Residents Play the Beatles” aprofunda o conceito de contaminação. Os Beatles, ícone absoluto da cultura pop, eram os primeiros alvos a abater. A capa e o título de “Meet The Residents”, álbum de estreia de 1973, são uma réplica adulterada de “Meet the Beatles”. Os rostos dos “fabulous four” de Liverpool desfeitos por caricaturas grotescas rabiscadas pelos “fabulous four” do Louisiana. Nos últimos anos assistiu-se a um regresso dos Residents à temática religiosa, isto é, ao tiro ao alvo sobre a Bíblia. Dinamitar o espírito para melhor metamorfosear a carne.

Teoria da Obscuridade
Flashback. Em 1966 os músicos que viriam a constituir-se como The Residents, antigos companheiros de escola (pobres professores!), abandonam o Louisiana, onde se dedicavam à gravação e recolha de música local, e estabelecem a sua base de operações em São Francisco, assistindo de perto ao “Summer of Love”. Ervas daninhas em pleno roseiral. Em 1969, chegam rumores aos ouvidos de um guitarrista inglês, de seu nome Philip Lithman, posteriormente conhecido como Snakefinger. Vai de propósito à Califórnia, investigar. Mas antes, numa passagem pela Bavária, na orla da floresta negra, Lithman conhece uma misteriosa personagem, N. (Nigel?) Senada. Lithman e Senada travam por sua vez conhecimento com o grupo. N. Senada impressiona os futuros Residents com a sua “teoria da obscuridade” e o ensino de bizarras técnicas fonéticas.
Quando, em 1971, a Warner Brothers recusa uma cassete que os quatro lhe tinham enviado, para hipotética inclusão numa colectânea, e a devolve à procedência, por escrito, em pacote endereçado simplesmente aos “residents” da morada indicada, estava encontrado o nome que se viria a tornar lenda: The Residents.
Abramos aqui um parênteses, para falar do misterioso senhor Senada, nascido, ao que parece, na Alemanha, em 1907. Uns dizem que não passava de uma personagem ficcional inventada pelos próprios Residents. Mas N. Senada compôs e gravou músicas reais, sendo a sua obra mais conhecida, “Pollex Christi (The Thumb of Christ)”, inspirrada em excertos de “Carmina Burana”, de Carl Orff. Senada advogava as virtudes do erro e afirmava ser impossível tocar correctamente as suas composições. Em 1938 desistiu de fazer música, alegando que esta se tornara “demasiado estarrecedora” para os ouvidos humanos. Parte então para o Canadá para estudar os costumes do povo “Inuit”. Com base nos seus apontamentos sociológicos sobre esta etnia esquimó, os Residents compõem “Eskimo”, de 1979. A partir daí o seu rasto perde-se por completo. Um musicólogo garante que N. Senada é Harry Partch, um dos compositores preferidos dos Residents (juntamente com Captain Beefheart), coincidindo as técnicas musicais de ambos.

As Toupeiras Triunfam
Nenhum álbum dos Residents é mais marcado pela “teoria da obscuridade” de N. Senada, do que “Not Available”, banda sonora imaginária de um naufrágio mental. De acordo com a doutrina, “Not Available” só deveria ser editado quando todos, incluindo os seus autores, se tivessem esquecido da sua existência.
Assim, o disco, segundo do grupo, foi gravado em 1974 mas apenas viu a luz do dia quatro anos mais tarde, quando o posterior “The Third Reich ‘n’ Roll”, já saíra, em 1976. Na prática, o segundo álbum dos Residents é oficialmente o terceiro.
“The Third Reich ‘n’ Roll” contém disseminados todos os princípios da ideologia Residents, sendo em si mesmo um tratado de dissecação da música pop. Glosa êxitos dos Beatles e dos Stones e outros “hits” do “top tem” para os esventrar através do mesmo tipo de cacofonia epiléptica e aberração que os alemães Faust montaram no seu álbum de estreia. E afirma que Hitler era um vegetariano.
Além de “Eskimo”, vento ártico sobre os rituais de morte dos esquimós, histeria, silêncio e terror, “Commercial Album”, de 1980, dispara sobre o coração da indústria – 40 temas com um minuto exacto de duração cada, destinados a serem tocados como “jingles” na rádio. A pop assumida na sua condição de prostituta, a canção oferecendo-se como objecto de consumo imediato. A terrível gargalhada dos Residents fez-se ouvir bem alto nos salões da hipocrisia.
Além de Snakefinger, já falecido e autor de magníficos álbuns a solo de inspiração residentiana (“Chewing Hides the Sound”, “Greener Postures”, “Manual of Errors”) e, a par dos Renaldo and the Loaf, um dos primeiros dicípulos da banda, também Fred Frith e Chris Cutler, músicos-teóricos da banda inglesa Henry Cow (com conotações estéticas a Harry Partch, Faust e Mothers of Invention que, por sua vez, estavam ligados a Captain Beefheart…) passaram a ser colaboradores habituais dos “eyeballs”.
A década de 80 é aproveitada pelos Residents para a composição de grandes trabalhos conceptuais. “The Mark of the Mole” e “The Tunes of Two Cities”, partes um e dois de uma “Mole Trilogy” inacabada, contam a história do colapso da civilização humana e da sua derrota às mãos das toupeiras. Metáfora da infiltração subterrânea, da vitória das trevas sobre a luz, da noite sobre o dia, são obras-primas de pop, electrónica, loucura, método e paradoxo. E metem medo.
Saltando por cima de uma terceira parte que nunca existiu, o quarto capítulo da saga, “The Big Bubble”, apresenta os Residents como a banda de casino, The Big Bubble (chegou a especular-se se os rostos da capa não seriam afinal os próprios…). As partes cinco e seis de “Mole Trilogy” são fantasmas.
Na manga, estavam “The American Composers Series”, idealizadas para inundar o mercado durante 20 anos. Cessaram ao fim de dois álbuns, “George & James”, com versões da música de George Gershwin e James Brown, e “Stars & Hank Forever”, correspondente a John Philip de Sousa e Hank Williams Sr.. Uma vez mais, alguns dos mitos da música americana transformados em monstruosidades. Elvis Presley levou com a mesma dose, em “The King and I”, jogo de simulações (“I”/”eye”) e exéquias ao rock ‘n’ roll.

Circo de Horrores
Simulação – a etapa que faltava para a armadilha se fechar e os Residents cerrarem em definitivo as mandíbulas em torno do pescoço da vítima. Se a fase “religiosa”, levada a cabo em “God in 3 Persons” e “Wormwood: A Curious Collection of Bible Stories”, usava como arma a caricatura e o cinismo para derrubar alguns dos santos dos seus altares, o que sucedeu a seguir levaria ainda mais longe a manipulação. Os Residents apropriam-se da tecnologia audiovisual mais sofisticada e aplicam-na no quarto virtual dos jogos electrónicos de computador.
O CD-Rom de “Freak Show” obriga o jogador a funcionar e a pensar como um psicopata à deriva num mundo de criminosos paranóicos. “Bad Day on the Midway”, também uma série de TV, leva-nos em deambulação por um circo de horrores.
Os Residents criaram o seu mundo. Terroristas estéticos, observam-nos com o olhar gelado de “eyeballs” solenemente vestidos de fraque para a cerimónia do fim dos tempos que se avizinha. Cabe-nos a nós sair deste mundo de monstros, psicologicamente vivos e sãos. A sua obra infiltrou-se não só na música como em filmes, livros e vídeos delirantes. A sua música evoluiu da disformidade dos primeiros álbuns para o grotesco electrónico dos anos 80 e deste para a fase litúrgica actual, evangelho a ecoar nos sininhos da demência e no clamor de maquinismos sugadores de almas. Tornaram-se um grupo pop. O grupo pop mais perigoso do mundo. Senhoras e senhores, meet the Residents!

Arcebispos de Cantuária

21.05.2001
Arcebispos de Cantuária

Canterbury tornou-se uma lenda. Os novos músicos estão a redescobrir o imenso manancial oferecido por esta música que nos anos 70 se ergueu como uma catedral de um arcebispo louco no meio de um prado da velha Inglaterra.

LINK (CD 1) “Canterbury Tales – The Best of Caravan”
LINK (CD 2) “Canterbury Tales – The Best of Caravan”

Canterbury (Cantuária) é uma cidade inglesa situada no condado de Kent, a sudeste de Londres. Deu ao mundo os “Contos de Cantuária”, de Geoffrey Chaucer, e o Arcebispo. Mas isso foi antes de um pequeno núcleo de músicos se juntar na segunda metade dos anos 60 para formar o grupo que daria origem a um movimento e uma estética aos quais se convencionou chamar “cena de Canterbury” ou “som de Canterbury”.
O grupo chamava-se The Wild Flowers, nunca chegou a gravar qualquer álbum (embora, bem procurado, seja possível encontrar uma edição póstuma preenchida por actuações ao vivo) mas continha os alicerces dos dois pilares que sustentariam a primeira geração do “Canterbury Sound”: Soft Machine e Caravan. Kevin Ayers e Robert Wyatt, respectivamente vocalista e baterista dos Wild Flowers, formaram em 1967 os Soft Machine, aos quais se vieram a juntar o baixista Hugh Hopper, que também integrou os Wild Flowers, e Daevid Allen, o australiano excêntrico de cuja mente embotada pelos ácidos, o chá de haxixe, o espiritismo e as mensagens enviadas via rádio por entidades alienígenas, haveriam de brotar os Gong. Quanto aos Caravan, já tinham a sua primeira formação inscrita no “line-up” dos Wild Flowers: os irmãos David e Richard Sinclair, Richard Coughlan e Pye Hastings. É deste grupo que agora nos surge o pacote da sua discografia para a Deram, re-remastrizada e enriquecida com temas e informação adicionais.

No País Das Maravilhas
Mas que som era este, afinal, que, extinta nos anos 70 a base do Progressivo sobre o qual evoluiu até meados da década, se estendeu pelos anos 80, dos EUA ao Japão, em grupos como Happy The Man, However ou Kenso, e prosseguiu revitalizado pelos 90, onde foi adoptado pelo pós-rock de Chicago dos The Sea And The Cake ou pelos neo-psicadélicos Gorky’s Zygotic Minci?
A música, o estilo, a estética, as imagens com selo Canterbury ficaram demarcadas desde o início. Robert Wyatt e Richard Sinclair impuseram um estilo e uma filosofia vocais e poéticos que renegavam o tom mais politizado do “flower power”, como eclodira do outro lado ao Atlântico, em São Francisco, personalizado por bandas como os Jefferson Airplane e os Grateful Dead, em assumpção absoluta de uma “britishness” paralela à dos Beatles e dos Kinks, na pop.
Em vez dos mergulhos violentos na mente e das consequentes ressacas de Grace Slick e Jerry Garcia, imersos no “acid rock” e nas doutrinas pregadas pelo papa de LSD, Timothy Leary, Richard Sinclair e Robert Wyatt pegaram ao colo no lado mais surrealista e poético do psicadelismo. A Alice de Lewis Carroll bebeu o seu chá com o chapeleiro maluco às cinco em ponto, num prado de Kent. David Sinclair, nos Caravan, e Mike Ratledge, na “Máquina Mole”, estabeleceram o contraste. À suavidade, mas também às derivações intrincadas, tecidas como uma tapeçaria “nonsense”, que eram as canções moldadas pelas vozes pop de Richard Sinclair e Robert Wyatt (de que a canção “The Moon in June”, incluída no já divergente “Third”, dos Soft Machine, será o exemplo mais sublime), contrapuseram o “fuzz” do órgão electrónico e fraseados jazzy que dispensavam a herança do rhythm ‘n’ blues, onde foi beber a geração mais nova do rock progressivo.

Como As Flores De Um Jardim
Mas no fundo desta poção mágica que também albergava uma nostalgia difusa pela bossa-nova e aragens folk, agitava-se algo indefinível, uma elegância e um mistério que, apesar das inevitáveis dissidências que proliferariam através de uma miríade de correntes derivadas do som original, conferiam unidade ao “som de Canterbury”.
“Volume Two”, dos Soft Machine (1969), e “If I Could Do It All Over Again, I’d Do It All Over You” (1970), também o segundo álbum, dos Caravan, são os dois paradigmas da escola de Canterbury. A chávena de chá de Alice quebrar-se-ia na produção posterior destes dois grupos, em particular dos Soft Machine, que a partir de “Third” encetariam uma das aventuras mais fascinantes de um grupo pop pelo jazz. Os Caravan mantiveram-se mais tempo fiéis à fábula, cedendo apenas ao fim do quinto álbum, “For Girls Who Grow Plump in the Night” (1973).
Mas a aventura de Canterbury dispensava os seus progenitores. Criara-se uma espécie de família, cujos membros não cessaram de difundir, sob formas mais ou menos personalizadas, o legado dos Caravan de dos Soft Machine. O “Canterbury Sound” espalhara-se como as flores de um jardim, polinizando o Progressivo com a sua aura colorida. Apareceram radicais e moderados, dissidentes e tradicionalistas, cada qual acrescentando uma letra, uma frase, à história. Os mais ilustres foram os Hatfield and the North, com Dave Stewart, Pip Pyle e os irmãos Sinclair. Gravaram duas obras-primas que prolongaram o lado mais lúdico e swingante dos Caravan. O lado experimental e cerebral encontra-se nos Egg e, posteriormente, nos National Health, projectos de Dave Stewart, Gilgamesh e Soft Heap orientaram as “canterbury tales” segundo as coordenadas do jazz, os primeiros sob a batuta de Alan Gowen (já falecido, teclista “honorário” dos National Health), os segundos, segundo o comando de Hugh Hopper que, depois do terramoto a solo, “1984”, se dedicou a tentar fazer descarrilar o comboio do jazz-rock. O que os Soft Machine haviam perdido a partir de “Third”, conservou-o Robert Wyatt nos Matching Mole e Kevin Ayers na sua tão disparatada como genial discografia a solo. Os Gong, muitas vezes conotados, com ou sem razão, com o espírito de Canterbury, são algo mais. O seu bule de chá era uma nave espacial. E se estivermos atentos, percebemos que a sua “rádio gnome invisible” continua a emitir.
Canterbury tornou-se numa lenda. Os novos músicos, aqueles com dois dedos de testa, estão a redescobrir o imenso manancial oferecido por esta música que se ergue como a catedral de um arcebispo louco no meio de um prado da velha Inglaterra.
Richard Sinclair, em “R.S.V.P.”, de 1994, diz em jeito de despedida dessa época, numa das canções, “What’s rattlin’? (“O que é que está a fazer barulho?”): I’m bored with Caravan, Fleetwood Mac and Uncle Sam/I’m sick of Tangerine Dream, Hatfield and Soft Machine/Radio Gnome and Henry Cow/We’re not part of that now”, mas acaba a perguntar: “One question we all dream/”What’s doing Mike Ratledge? (…) What’s doing Robert Wyatt?/What’s doing Kevin Ayers?/What’s rattling Mike Doodlage?”.