Arquivo mensal: Janeiro 2010

Pere Ubu – Pennsylvania

17.04.1998
Pop Rock
Um Grupo Mainstream
Pere Ubu
Pennsylvania (8)
Cooking Vinyl, distri. Megamúsica

LINK

Os Pere Ubu, e em particular o seu gordo vocalista, David Thomas, são pessoas normais? Eis uma pergunta que tem apoquentado o mundo ao longo das últimas décadas. Se levarmos em conta o álbum de estreia do grupo, “The Modern Dance”, que eclodiu em 1977, fazendo passar todas as bandas punk da época por meninos de coro, a resposta é óbvia: Não, os Pere Ubu não eram pessoas normais. E agora, 20 anos depois, já podemos aproximarmo-nos do homem que canta como se fosse um porco a ser linchado, sem receio de sermos mordidos? Bem, na “Invisible Jukebox” da Wire deste mês (onde, entre outras considerações interessantes, afirma preferir John Cougar Mellencamp aos Smiths com o argumento de que os ingleses pura e simplesmente nunca poderão fazer música rock, porque não faz parte da sua natureza), é o próprio David Thomas que afirma que em 1978, como em 1998, os Pere Ubu sempre foram um grupo rock inserido no mainstream. “Pennsylvania”, o mais recente capítulo da saga do rei Ubu, permite compreender a dilaceração, desde sempre manifestada por Thomas, entre o amor pela harmonia perfeita dos Beach Boys e uma sensibilidade de “garage band” que lhe corre nas veias e o prende à herança estética de grupos como os Stooges e os MC5. Os Pere Ubu são um grupo de rock porque, ainda na óptica do seu líder, são um grupo americano, como se estes dois conceitos formassem uma evidência na irredutabilidade da sua simbiose, a qual, no caso em questão, se revela tão atraente como fatal.
A diferença que perturba, seja por causa da voz de maníaco de Thomas ou pelo modo como os Pere Ubu sempre introduziram o ruído e a deslocação na sua música, são manifestações de um desejo central, sem dúvida obsessivo, de comunicar (ver caixa). David Thomas é uma criança que fala com as moscas, um agitador de megafone, um palhaço que pisa o risco para poder tocar-nos mais deperto. “Pennsylvania” corta de certa forma com o passado recente de “Ray Gun Suitcase”. Onde este era brutalmente experimental, levando aos limites o histrionismo do seu cantor, o novo álbum mergulha as raízes no seminal “Dub Housing” ou no mais recente “Cloudland”, sem contudo deixar de for amomentos de pura suspensão – ou será melhor dizer “suspense”? – em que David Thomas pára no escuro para nos falar da sua solidão, como em “Perfume”.
O actual teclista (os Pere Ubu mudam de formação como quem muda de casaco), como fazia Allen Ravenstine nos primeiros álbuns do grupo, toca sintetizadores como se estivesse a ler pelo manual, as baladas resvalam a cada momento perigosamente para a cacofonia, mas são discos como estes que nos abanam o esqueleto e nos fazem sentir vivos, mesmo que o contacto provoque alguma dor. Para ter acesso Às letras de “Pennsylvania” basta entrar em http://projex.demon.co.uk. Já agora, descubram por que razão o último tema vem assinalado na capa com a duração de 5m04s quando no visor do leitor de CD aparece com 23m25s…

Ui – Lifelike

17.04.1998
No Calor Do Funk
Ui
Lifelike (10)
Southern, distri. MVM

LINK (UI – The 2-Sided EP/The Sharpie (1993-1995))

Depois de “Sidelong”, dos Ep reunidos em “The Two Sided EP / The Sharpie” e da colaboração com os Stereolab, em “Fires”, os Ui regressam com um álbum de originais que bate aos pontos os trabalhos mais recentes dos Trans AM e dos Torotise, com quem têm sido erradamente comparados. “Lifelike” é um murro no estômago do pós-rock, uma descarga de funky combinada com resíduos dub (“Acer rubrum”), uma vertente dançável que cura anteriores visroses apanhadas com a praga da illbient e, acima de tudo, a arte suprema do ruff, normalmente usada e abusada pelos demiúrgos do heavy-metal mas que os Ui souberam reconverter num poderoso caudal de ideias que tanto sugere o industrialismo fechado numa câmara de gás dos This Heat como o domínio pleno das técnicas repetitivas, um pouco à maneira dos Can (“Future Days” e “Tago Mago” são dois capítulos fundamentais na bíblia dos Ui). “O caminho dos Ui para a abstracção”, pode ler-se num artigo sobre o grupo publicado na Wire de Março de 1996, “baseai-se no mesmo princípio seguido pela cultura breakbeat, de destacar um determinado instante musical e expandir o prazer que ele nos proporciona até ao infinito”. Era este, de resto, o princípio seguido não só pelos Can como também pelos Public Image Ltd, de John Lydon, ou pelos Gang Of Four, antepassados dos Ui na técnica do massacre repetitivo. Como era, ainda, o caminho dos ciclos rítmicos palmilhado pelos grandes mestres do funk e do proto-hi hop, como Grandmaster Flash, Kurtis Blow, Funkadelic ou Parliament, todos eles, claro, admiravelmente trespassados pela grande faca do funk branco cravada pelos Kraftwerk com “Trans Europe Express”. A introdução de sopros abrasivos (“Undersided”, “Digame”…), juntamente com a saturação pulmonar criada pelos dois baixos, uma bateria fulminada pelo apelo dos breakbeats, uma guitarra de metal afiado e uma disseminação judiciosa de jorros de sintetizador que engrossam ainda mais a sensação de poder que se desprende do álbum, fazem de “Lifelike” um corpo muscular capaz de pulverizar qualquer rival em redor. Com um só golpe, os Ui fizeram desmoronar o edifício barroco do pós-rock. Para ouvir altíssimo.

Flak – Flak

10.04.1998
Portugueses
Flak Floyd
Flak
Flak (8)
BMG, distri. BMG

No seu primeiro álbum fora dos Rádio Macau, Flak criou um “flower pot” colorido que verte a memória dos Pink Floyd psicadélicos para um mundo de canções pop sem idade. Um truque de prestidigitador.

O disco de estreia doa ntigo guitarrista dos Rádio Macau abre com uma cacofonia saturada de efeitos ao estilo dos Negativland, acerta o passo com uma batida de hip hop e entra em velocidade de cruzeiro numa vocalização lisérgica que se relifga de imediato aos anos de viagem dos anos 60 e, em particular, aos delírios em “slow motion” de Syd Barrett. Flak tem heróis, isso percebe-se, mas tem igualmente uma inteligência que lhe permite reconverter os pedaços de memória que recolheu na sua juventude num discurso articulado, semeado de provocações e pequenos prazeres em simultâneo, construído sobre o fio da navalha do experimentalismo e pleno de uma sensibilidade cem por cento pop.
Como ele próprio admite, “está no meio” do underground e da pop. Numa linhagem nobre de excêntricos que vai de Kevin Ayers e Daevid Allen a R. Stevie Moore. O tema seguinte, “A Dama do Lago”, uma das pérolas do álbum, reflecte esse jogode escondidas com um apasado que a cada momento procura abrir caminho no emaranhado de estilos dos tempos actuais. Esse e o tema seguinte, “Antonov”, são alguns dos exemplos de uma costela puramente Floydiana encharcada em psicadelismo.
A própria guitarra de “Ser ou Não” (cortada pela intervenção do violino de Zé Ernesto) vai buscar matéria de trabalho a David Gilmour. Assim como a voz frágil de Flak dança com as palavras, faz carícias às notas e bebe gota a gota. até espremer todo o seu sumo, o longo desmaio alucinatório de Barrett. E, no entanto, esta longa sucessão de coincidências é talvez demasiado óbvia para não estar armadilhada. Com a ironia? Por um amor obsessivo? Por um sentido de humor encantadoramente gentil?
Só que Syd Barrett, na linearidade melódica com que traduzia a sua loucura, estava preso à sua visão e, há que dizê-lo com toda a frontalidade, às suas limitações técnicas como cantor e como guitarrista. Flak, mais de 30 anos depois, e aos 36 anos de idade, é, pelo contrário, um homem do mundo, atento aos seus desenvolvimentos e às suas contradições, bem como um trabalhador incansável dos sons e das suas potencialidades. a pureza melódica das suas canções esconde um apurado trabalho de articulação de elementos dispersos. É uma sensibilidade à procura da beleza essencial que atravessa três décadas de música pop, ligando-a a elaboradas engrenagens de estilos que fazem de “Flak” um objecto à margem da recente produção nacional.
“Sei onde me vou perder” é outro dos momentos que nos empurra para trás, até 1967, para os Beatles e para os Zombies, assegurando-nos logo de seguida de que tudo decorre como num sonho de infantil perversidade. O relógio volta a parar entre os anos 60 e os 70 em 2O relógio parado2, de novo enriquecido pelo violino de Zé Ernesto e por pequenos sinfonismos barrocos que lembram essa relíquia da pop progressiva que foram os Stackridge.
Depois, encontramos Xana, a antiga parceira nos Rádio Macau, a cantar com uma originalidade e um sentido de equilíbrio que não se vislumbram no seu próprio álbum a solo, em “De azul em azul”. Um caleidoscópio de palavras soltas que magicamente se interligam, sobre ritmos de trip hop e ruídos vinílicos “à la” Portishead, e um sintetizador fanhoso, criam neste tema um dos instantes mais perturbantes de “Flak”. Falsas sitars e harpas, flautas de água, guitarras de sol, criam em “O imenso adeus” mais um “pastiche” iluminado em que tudo parece já ter sido ouvido antes mas mesmo assim nos sabe com a frescura de um fruto.
“Vai de roda” é uma melodia presa por cordéis mas com a força de uma amarra de um navio. Flak tomou a poção dos druídas e “Flak” é um compêndio de história artificial que faz gato-sapato das convenções. Um jogo? Uma brincadeira com consequências? Um flashback experimentado no divã da psiquiatria? Para nunca chegarmos a saber a resposta basta voltar a ouvir tudo do princípio.