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Syd Barrett – “A Crazy Diamond”

pop rock >> quarta-feira, 09.06.1993
REEDIÇÕES


COMO DESTRUIR UM MITO

SYD BARRETT
A Crazy Diamond
3xCD Harvest, distri. EMI-VC



Mais uma caixa, desta feita contendo a discografia completa a solo do lunático que iluminou a fase inicial dos Pink Floyd com a lâmpada do psicadelismo: os dois álbuns oficiais de originais, “The Madcap Laughs” e “Barrett”, mais a adenda “Opel”, os três acompanhados por um livrete que narra passoa a passo a carreira do músico desde os tempos de “Arnold layne” ao afogamento na loucura.
Se Barrett é hoje um mito, tal deve-se mais à aura de estranheza e de diferença que sempre rodearam o seu nome do que às suas virtudes como músico. Imagem que até os seus antigos companheiros nos Pink Floyd não se dispensaram de reforçar quenado lhe fizeram a dedicatória na faixa “Shine on you crazy Diamond” de “Wish you were here”. Se a presente colectânea tinha como objectivo preservar essa imagem do “génio” incompreendido, mártir da sua arte, a táctica escolhida resultou no inverso, esfarrapando a lenda ao mostrar, em toda a nudez, um mau cantor e guitarrista, em pleno processo de desagregação mental. E isto porque se foram desenterrar todas as “takes possíveis e imaginárias de temas que encontraram a sua forma definida e mais ou menos estável (?) nos tais dois primeiros álbuns, esvaziando-os, sem que desse processo se obtivessem quaisquer contrapartidas. Os “bonus tracks” que foram acrescentados a cada um dos álbuns de originais não passam de esboços inacabados, hesitações, gravações de estúdio que exibem com despudor um Barrett totalmente incapaz de cantar afinado, em sucessivas tentaivas para conseguir acabar um tema do princípio ao fim, entre tossidelas, paragens, frases soltas e as instruções dadas tores do lado de fora da cabina.
Deste modo, “The Madcap Laughs”, um álbum que vale essencialmente pelo “nonsense” dos textos, mais do que pela inspiração melódica, e “Barrett”, este sim, já mais próximo de uma obra acabada, muito por culpa da produção de David Gilmour, perdem com os enxertos. Qual o interesse de dar a ouvir um (mau) ensaio da repetição inconsequente de temas como “Dominoes” ou “Love you”? O valor musical é nulo. Há, evidentemente, o interesse documental, mas mesmo aí o livrete incluso acaba por desempenhar melhor a tarefa. “Opel”, nesta medida, é mesmo perfeitamente dispensável, passando da manta de retalhos que já era ao puro desperdício, um pouco o disco pirata de um artista de terceira ordem.
No mei de tanta inutilidade e até de um certo mau gosto, visível na leitura parola da estética psicadélica utilizada nas novas capas (como as originais aparecem, apesar de tudo, no inverso, é sempre possível, para quem ainda não tiver os originais, dobrá-los do avesso), sai maltratado Syd Barrettt, reduzido à figura do demente cuja inspiração se desvanecia passado o efeito do LSD e de quem preferiremos guardar para sempre os sonhos floydianos de “The Piper at the Gates of Dawn”. O que se segue? As gravações integrais das festas de aniversário do filho mais velho de Roger Waters? (4)

Julian Cope: O Mundo Numa Concha de Tartaruga – Viagem Sem Regresso: Syd Barrett

Pop Rock

10 ABRIL 1991
JULIAN COPE: O MUNDO NUMA CONCHA DE TARTARUGA

VIAGEM SEM REGRESSO

“Uma certa proporção de danos cerebrais pode constituir uma virtude.”
Médico anónimo

sb

“Nem mais”, terão pensado Julian Cope e, anos antes, Syd Barrett, ambos apreciadores de uma boa “viagem” de LSD. O autor do recente “Peggy Suicide” abandonou o ácido a conselho da sogra, preocupada com possíveis desarranjos genéticos dos futuros netos. O antigo vocalista dos Pink Floyd não teve uma sogra que o chamasse à razão e foi até ao fim da viagem, com os resultados que se conhecem, mas que não faz mal recordar.
Julian Cope não gosta que o comparem a Barrett. Pode parecer romântica e poética aos olhos dos outros a imagem da estrela pop, imersa na contemplação do infinito, mas, quando a viagem dá para o outro lado, não são os outros que darão um passo para ajudar. Sem ácido, o psicadelismo não teria razão de existir. E onde há ácidos surgem inevitavelmente os santos e as vítimas. Cope foi “Saint Julian”, Barrett esteve internado numa instituição para doentes mentais e vive actualmente com a mãe, em Cambridge. Nunca mais tocou guitarra – prefere ficar em casa a ver televisão.
Mas, quando os Pink Floyd irromperam pela primeira vez no clube UFO, inaugurando a era psicadélica em Inglaterra, Syd Barrett foi olhado como um génio, ligeiramente lunático, é certo, mas possuidor da tal “proporção certa”, suficiente para poder escrever a quase totalidade das canções de “The Piper at the Gates of Dawn” (incluindo o clássico psicadélico “Astronomy Domine”) ou os singles “See Emily Play” e “Arnold Layne”. Um ano chegou para que o equilíbrio se perdesse e Syd deslizasse para o lado errado. No álbum seguinte dos Pink Floyd, “A Saucerful of Secrets”, apenas contribui com “Jugband Blues”. Preocupados com a sua imprevisibilidade em palco (“imprevisibilidade” não chega para definir quem mal conseguia aguentar-se de pé e segurar na guitarra…), os outros aconselharam-no a ir para casa descansar. À cautela, contrataram um novo guitarrista, David Gilmour, para o substituir. Até hoje Syd continua a descansar.
A história não acaba, porém, com os Floyd. Em 1970 grava a solo os álbuns “The Madcap Laughs” e “Barrett”, produzidos pelo seu amigo Roger Waters. “Effervescing Elephant” ou “Baby Lemonade” são títulos esclarecedores quanto ao estado mental do seu autor. “Dominoes” permanece como uma das canções mais pungentes de sempre sobre a solidão. Mais recentemente a Harvest editou “Open”, aquele que poderia ser considerado o terceiro álbum de Syd Barrett, não fora o facto de quase todas as canções se encontrarem em estado de “takes” incompletos.
Mais tarde, os Pink Floyd dedicaram-lhe o álbum “Wish you Were here” e em particular o tema “Shine on you Crazy Diamond”, mas era impossível regressar. Syd apareceu no estúdio, durante as gravações, mas não se sabe se chegou a reconhecer os antigos companheiros. Depois disso foi visto em diversas ocasiões, a vaguear por jardins públicos, a meio da noite. Conta-se que foi encontrado várias vezes meio adormecido dentro das águas geladas de um lago. Chegou a formar um pequeno trio, chamado “Stars”, que rapidamente se extinguiu, tal qual um lampejo de lucidez momentaneamente reacendido no cérebro de um louco.
Passam-se anos sem que se saiba do seu paradeiro, mas o fanzine “Terrapin” continua a publicar relatórios periódicos sobre as suas actividades (ou ausência delas…). Mike Watkinson e Pete Anderson escreveram um livro sobre ele, a que chamaram “Crazy Diamond Syd Barrett and the Dawn of Pink Floyd”: contam anedotas como a daquela vez em que Syd se entreteve a cobrir a cabeça com Brylcreem e a rebentar cápsulas de Mandrax, antes de aparecer, qual alienígena tresloucado, sobre o palco.
Para a lenda ficaram esta e outras histórias demenciais e sobretudo a música de um outro mundo, revelado em notas soltas e palavras solitárias, na aceleração progressiva da viagem derradeira, em direcção ás estrelas.

syd barrett: opel – aqui



Syd Barrett – Wouldn’t You Miss Me? The Best of Syd Barrett

15.06.2001
Syd Barrett
Wouldn’t You Miss Me? The Best of Syd Barrett
Harvest, distri. EMI-VC
8/10
Barrett In The Sky With Elephants

LINK

Que o rapaz era doido varrido, já toda a gente sabia. Que os Pink Floyd sem ele passaram a ser uma banda diferente (para melhor, dizem uns, para pior, dizem outros) também é do conhecimento público. Que após a sua saída do grupo apenas conseguiu gravar – e a muito custo – dois álbuns a solo, antes de voltar a arrastar-se para debaixo das asas da mãe e de se enclausurar no sótão onde parece que passa actualmente o tempo a jogar dominó sozinho, também é assunto documentado. Agora o que nunca tinha acontecido antes, e já devia ter acontecido, era a possibilidade de escutar as canções de Syd Barrett em reedição remasterizada. Por fim, aconteceu, naquela que é a primeira colectânea de sempre do músico. E o prazer que constitui acompanhar em segurança a decadência dourada de um cérebro intoxicado pelo ácido e por visões demasiado enormes para caber lá dentro, é agora mais forte do que nunca. Assiste-se mais de perto e com maior nitidez à combustão criativa, à fragilidade, aos solavancos do baloiço desequilibrado mas suficiente para servir de trave-mestra a todo o psicadelismo. Dos anos 60 até hoje. Não importa se a caminhada no estúdio para chegar à versão definitiva de cada canção era penoso. Isso também já dolorosamente o sabíamos através da caixa-antologia editada aqui há tempos. Syd arrastava a voz e a guitarra ao longo de 20, 30 takes antes do sol entrar de súbito e iluminar cada palavra aparentemente sem sentido, cada nota da guitarra que insistia em deslizar pelos acordes do desconhecido. “Wouldn’t you Miss Me?” acena-nos de lado escuro da Inglaterra dos anos 60, agitando a solidão colorida de clássicos-do-asilo como “Octopus”, “Terrapin”, “Baby lemonade”, “Gigolo aunt”, “Dominoes” ou “Waving my arms in the air”, tirado sde “The Madcap Laughs”, “Barrett” e “Opel” (o disco de raridades). Faltam pedaços da loucura mais negra e vampírica, de “Rats” e “Maisie”, os blues como Syd os arrumava na sua cela privativa, na sua câmara de tortura decorada com estrelas, mas o que se oferece neste “best of…” lança-nos ao rosto o rosto da demência e estilhaços de génio. E faz-nos perceber como é fácil o juízo de alguém desaparecer. O de Syd Barrett ficou a pairar no dorso de um elefante efervescente.