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Dave Liebman, Michael Brecker, Joe Lovano – “Gigantes Do Saxofone Em Lisboa” (concertos / jazz)

(público >> cultura >> jazz >> concertos)
domingo, 26 Outubro 2003


Gigantes do saxofone em Lisboa

No jazz o que não faltam é gigantes. “Giant” para aqui, “giant” para ali, pescoços esticados até acima das nuvens. Compreende-se e faz parte do jogo. Verdadeiros gigantes, daqueles que os homens a princípio não compreendem mas mais tarde veneram, houve muito poucos. Gigantes, porém de menor estatura, já se encontram em maior número. Hoje tocam em Lisboa três deles: Joe Lovano, Dave Liebman e Michael Brecker, num “Saxophone Summit”, genérico de grupo reconvertido para português num pouco fiel “Encontro de Gigantes” agendado para o Coliseu dos Recreios.
Pertencem os três à mesma geração (Lovano tem 50 anos, Liebman, 57, Brecker, 54) e dominam como poucos o saxofone tenor (o que, atenção, não faz o génio), embora Lovano também estenda os seus talentos ao alto e ao clarinete, Liebman ao soprano e à flauta, e Brecker, sempre “up to date” toque regularmente um EWI (“electronic wind instrument”). Vão desafiar-se mutuamente, competir e gerar empatias. E lançar um repto a uma secção rítmica composta por nomes não menos “gigantescos”, Phil Markovitz (piano) e, principalmente, Cecil McBee (contrabaixo) e Billy Hart (bateria).
Liebman e Brecker não escondem a sua admiração e a influência de Coltrane. Lovano afasta-se mais dos cânones. Liebman e Brecker não receiam aventurar-se pelos domínios do jazz rock. O primeiro tocou com Miles Davis nos anos 70, o segundo formou com Billy Cobham e John Abercrombie o grupo Dreams, com Mike Manieri os muito rentáveis Steps Ahead e, ao lado do seu irmão Randy, os Brecker Brothers, amados por muitos e odiados por outros.
Brecker e Lovano chegam a Portugal com álbuns novos na bagagem. Lovano e o seu “Nonet” com um “On this Day at the Vanguard” que está longe de fazer esquecer o unanimemente aclamado “From the Soul”. Lovano sabe, sem dúvida, encontrar o som certo do afago ou da aspereza com conta, peso e medida mas nem sempre o que agrada a um nível superficial é garantia de prazeres mais duradouros. Brecker, pelo contrário, merece toda a admiração pela forma como deu a volta ao texto da música de fusão, no admirável “Wide Angles”, com uma formação de 14 elementos, onde mostra ser, além de um saxofonista tenor de técnica imaculada, arranjador e líder de apreciáveis recursos.
Juntar as forças dos três poderá ser fórmula de sucesso, mas só depois do jogo começar se verá se as respetivas táticas encaixam sem conflito ou se, ao invés – o que até poderá se mais estimulante –, farão saltar faísca.

“SAXOPHONE SUMMIT” – ENCONTRO DE GIGANTES
Dave Liebman, Michael Brecker, Joe Lovano
LISBOA Coliseu dos Recreios.
Às 21h30. Tel. 213240585. Bilhetes entre 10 e 27,50 euros.

Ran Blake – “Wende” + Beaver Harris – “African Drums” + Aldo Romano – “Alma Latina” + Aldo Romano & Joe Lovano – “Ten Tales” + Dave Liebman – “Homage To John Coltrane” + Michel Petrucciani, Jean François Jenny-Clark, Aldo Romano – “????” + Jeanne Lee – “Natural Affinities” + Bob Mintzer & Gil Goldstein – “(Longing)”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 25 Janeiro 2003

Reedições da editora francesa Owl dão a conhecer o melhor e o pior do jazz moderno. Realce para uma grande voz feminina pouco conhecida, Jeanne Lee, e para o duo Romano/Lovano.


Afinidades naturais


Ran Blake
Wende
8/10



Com inclinações e formação “third stream” (Stravinsky, Bartok e Ives contam-se entre as suas influências) mas permeável ao espírito de Monk e ao conceptualismo “futurista” de George Russell, Blake é o típico pianista multifacetado que toca como se realizasse um filme. A sua música, aqui no formato de piano solo, recorrente na sua obra, evoca sentimentos, épocas e visões, num sobressalto anímico em que, sem paroxismos, os sons desenrolam-se com a naturalidade da vida, com todos os seus contrastes, passando do lirismo mais depurado para uma frase de “blues”, desta para um ataque às teclas de uma violência extrema, para logo a seguir sussurrar em “pianíssimos” de recorte fantasmático. Entre a música clássica e o jazz, Blake apenas se preocupa com a lógica interna das suas motivações. “Conhece-te a ti mesmo” sempre foi uma máxima seguida pelos grandes músicos.

Beaver Harris
African Drums
7/10




Ao invés da grande tribo de tambores reunida por Max Roach no clássico “M’Boom”, ou da selvajaria ritual de Kahil El’Zabar, “African Drums” (1977) é uma celebração mais contida das pulsações rítmicas africanas. É seu autor o baterista Beaver Harris, homem de largo passado e reconhecidas apetências “free”, nos anos 60, ao lado de Archie Shepp e Albert Ayler, mas que na década seguinte se aproximou progressivamente da tradição. “African Drums” é uma sucessão ininterrupta de solos, ou um único e prolongado solo, de bateria que, no título-tema, funciona como base para uma intervenção no sax tenor de David S. Ware, avatar da “free music” atual. Convulsão de fogo a sublimar as respirações da terra. Harris é África, Ware um outro mundo.

Aldo Romano
Alma Latina
3/10



Chamar a “Alma Latina” jazzrock ou fusão é ofender um género cultivado por Miles ou pelos Weather Report. Philip Catherine toca guitarra como se fizesse um frete, Benoit Wideman, com ligações ao rock progressivo, limita-se a teclar para efeitos de decoração e Romano chega a ser básico. Coisas como “Santa Maria Novella”, “Alma latina” e “La derniére chanson” (pop de variedades francesa do piorio) deviam ser proibidas. O que é que lhes deu?

Aldo Romano & Joe Lovano
Ten Tales
9/10



Nunca o saberemos. Mas podemos perdoar o baterista pelo que, ao lado do saxofonista Joe Lovano, nos oferece em “Tem Tales”, gravado em 1989 ao vivo e em direto no estúdio para um gravador de duas pistas. “A auto-análise esconde surpresas”, diz Romano, considerando ainda que neste desafio a dois, raro desde os anos 60, e na senda de “Interstellar Space”, de 1967, de Coltrane com o percussionista Rashied Ali, foi mesmo necessário “ir ao fundo de si mesmo”. Improvisação, comunicação, provocação, suspensa do instante e da eternidade, da energia e da dinâmica interativa. Lovano nunca terá sido tão Coltraniano, na intensidade, articulação e liberdade de discurso, como aqui. Romano cria, combate e descobre a cada passo, em constante metamorfose. Essencial.

Dave Liebman
Homage to John Coltrane
7/10


“Hot”, sério, mas nem sempre para ser levado a sério. Eis Dave Liebman, discípulo de Charles Lloyd e “sideman” de Miles, um dos muitos saxofonistas de costela coltraniana a homenagear a figura e a música do mestre. “Crescent” e “Love” sobem em agudos vertiginosos no soprano (o tenor fora entretanto posto de lado). Na balada, no “hard bop” ou no “free”, o grupo, onde não faltam um sintetizador e oboés, escala quanto pode as escalas do autor de “Ascension”, mas é Liebman quem segura a corda e trepa até aos extremos. “India”, embora transformado em solo de sintetizador jazzroqueiro, não envergonha o jazz, mas tem consciência de que o público do rock está ali mesmo ao lado, atento, a olhar. E, depois, Coltrane não era apenas drama nem tragédia.


Michel Petrucciani, Jean François Jenny-Clark, Aldo Romano
7/10


O pianista Michel Petrucciani, o contrabaixista Jean François Jenny-Clark e o baterista Aldo Romano dispensam outra apresentação para além dos seus nomes nesta gravação de 1981. Como Bill Evans, Petrucciani é um pianista “miniatural”, de ângulos e arestas pouco pronunciados e de melodias rendilhadas. Jenny Clark e Romano estão lá para pontuar, sustentar ou contrapor. Nenhum dos três fala do que tem medo mas este é um jazz que procura esconjurar dores e apaziguar-se nas águas de um lago. Sugestões de bossanova, de “Chiado Terrace”, momentos em que a melancolia sabe bem.


Jeanne Lee
Natural Affinities
9/10



Começa com um monólogo-citação de Mingus sobre a alma e os seus caminhos. Início de uma viagem de afinidades várias, da música e dos músicos, da palavra e dos sons que magicamente as formam, conduzidas pela voz de Jeanne Lee. Uma grande voz diferente das outras grandes vozes do jazz. Cantou com Ran Blake, Archie Shepp, Gunter Hampel (com quem casou e integrou a Galaxie Dream Band), Anthony Braxton, Sunny Murray, Marion Brown, Carla Bley, Andrew Cyrille, Roland Kirk e Lauren Newton. E John Cage. Em “Natural Affinities” (1992), tem a companhia de Hampel (vibrafone e flauta), Dave Holland (baixo), Amina Claudine Meyers (piano e voz) e Wadada Leo Smith (trompete) entre outros. O tom da sua voz é grave, declamativo, timbre de veludo e camurça, “scat” e poesia disponíveis para a descoberta, a sensualidade e o risco. Surgem vozes de vozes, em “reverse” e em sonhos. Nos vários “Peace Chorale”, o jazz penetra em territórios inóspitos, desmultiplicando-se em camadas harmónicas sobrepostas, avançando em uníssonos com os saxofones, quebrando as notas e os compassos para finalmente desaguar numa praia do Brasil, na “Celebration of a state of grace”.

Bob Mintzer & Gil Goldstein
(Longing)

8/10


Bob Mintzer (sax tenor e clarinete baixo) e Gil Goldstein (piano e acordeão) fecham em duo o voo do mocho. Ambos arranjadores, resolveram experimentar a difícil arte do diálogo. Ouvem-se na perfeição um ao outro, o que é meio caminho andado para espantar a conversa fiada. Percebe-se que se admiram mutuamente pelo teor e incisão das palavras e porque nenhum deles levanta a voz mais do que o necessário para se fazer compreender. Jazz de intimismos, exige que se lhe peça licença para nos intrometermos. “Comotion” é um título que tem dentro a compreensão da corrente que por aqui passa em ambos os sentidos. Riso, luz, plenitude.

O mocho piou 8 vezes. Com som remasterizado, embalagens digipak e distribuição pela Universal.