Arcady – “Many Happy Returns” + Patrick Street – “Cornerboys” + Trian – “Trian II”

Pop Rock

17 de Abril de 1996
world

A tradição já é o que era

ARCADY
Many Happy Returns (8)
Shanachie

PATRICK STREET
Cornerboys (9)
Green Linnet

TRIAN
Trian II (9)
Green Linnet
Todos distri. MC – Mundo da Canção


arcady

ps

trian

Como é que se “agarra” num novo disco de música irlandesa quando já se tem em casa uma pilha de não sei quantas dezenas (centenas?) de outros da mesma proveniência? Como saborear ainda o prazer de escutar uma daquelas características mudanças que nos provocam um sobressalto na alma, de um “jig” para um “reel”? O apreciador circunstancial destas músicas provavelmente passará ao lado da novidade quando esta não vier rotulada com o carimbo do exotismo. Os “Irish traditional music additcs”, esses já estão de tal maneira mergulhados nos seus pormenores e nos seus segredos que encontrarão sempre nesta música motivos de felicidade. Tendo sempre o cuidado de separar o trigo do joio.
Arcady, Patrick Street e Trian são os três do mais puro cereal. Não é apenas o virtuosismo dos executantes (na Irlanda talvez seja mais difícil encontrar quem não o é do que o contrário…) a estabelecer a diferença entre os mestres e os aprendizes. Nem a escolha de reportório. Sinta-se em vez disso aquela qualidade mágica, apenas ao alcance dos mestres, à qual os britânicos chamam “moving”. De nos fazer mover por dentro, de nos transportar. Os Arcady e os Trian, ambos no seu segundo “opus”, depois das respectivas estreias, “After the Ball” e “Trian”, reincidem na ortodoxia, apurando o “drive” para melhor fazerem passar o calor das danças.
No caso dos Arcady, temperado pelo refrigério das vocalizações da nova recruta (embora veterana do circuito…) Niamh Parsons, que os portugueses tiveram oportunidade de escutar recentemente ao vivo no último Intercéltico. Arrepios garantidos, ao ouvi-la cantar “The rocks of Bawn”. Instrumentalmente, é um mimo, com o violino, o acordeão, a flauta e o “tin whistle” enriquecidos pela companhia do violoncelo, órgão Hammond, órgão de pedais e até um didjeridu, bem como pelos coros dos The Voice Squad, no clássico “The rambling Irishman”.
Os Trian, por seu lado, são um trio liderado pela violinista Liz Carroll, um nome cada vez com mais peso, até como compositora, oriundo da poderosa cena irlandesa com sede nos “states”. Ao lado de Daithi Sproule, nas guitarras e voz (excepcional em “I once knew a little gril”, na posse de todos os argumentos que nos levam a ficar irremediavelmente presos a esta música) e de Billy McComiskey, no acordeão. Ainda com os convidados Ciarán Curran, no “bouzouki” e guitarra, e de alguém que não tínhamos o gosto de ouvir já há algum tempo, Triona Ní Dhomhnaill, no piano, sintetizador e “bodhran”. Indispensável.
Finalmente, os Patrick Street, “superbanda” que periodicamente se reúne para gravar, regressando depois os seus membros aos respectivos grupos em “full time”. Moram na Rua de São Patrício, neste seu quinto trabalho discográfico, Kevin Burke (ex-Bothy Band, actual Open House), violino, Jackie Daly (ex-De Danann, actual Arcady), acordeão, Andy Irvine (ex-Sweeney’s Men e Planxty), voz (a voz!), “bouzouki”, harmónica e bandolim e o novo comparsa escocês Ged Foley, recém-chegado dos House Band, guitarra e gaita-de-foles de Northumbrian.
“Cornerboys” não tem qualquer ponto em comum com a escorregadela estratégica de “Irish Times”, sendo antes a continuação de um trabalho de renovação e sofisticação dos modelos tradicionais, iniciado nos dois primeiros álbuns e retornado no anterior, “All in Good Time”. Vive aqui o espírito dos Planxty, nas vocalizações personalizadas de Irvine (onde nos encontramos quando nos encontramos em “Moorlough shore”?), enquadrado já não nas coordenadas “progressivas” dos anos 70, mas antes com alicerces num estudo comparado das regras e das possibilidades de evolução de uma música que tem dois caminhos por onde escolher. O da mutação noutra coisa qualquer ou o do estabelecimento e aprofundamento do que já várias vezes designámos como “Nova Tradição”. Os Patrick Street vão adiantados no segundo.

Júlio Pereira & Kepa Junkera – “Lau Eskutara”

Pop Rock

21 de Fevereiro de 1996
World

Irmãos de sangue, irmãos de mãos

Júlio Pereira & Kepa Junkera
Lau Eskutara (8)
Triki, distri. Sony Music


jp

Puro prazer de tocar. Puro prazer de escutar. Neste jogo a duas mãos, encontraram-se duas almas gémeas. Júlio Pereira e Kepa Junkera são mestres dos respectivos instrumentos. De corda dedilhada, o português, da “trikitixa” (acordeão diatónico), o basco. Juntos, fazem miséria. Na sequência do que o seu anterior trabalho, “Acústico”, já deixava antever, Júlio Pereira abandonou, até ver, a obsessão pela tecnologia e pelo tratamento digital das sonoridades do cavaquinho, da braguesa ou do bandolim. A companhia do basco, cuja personalidade extrovertida e capacidade de compreensão, adaptação e interiorização de diferentes discursos musicais são notáveis, serviu de estímulo ao “virtuose” português, que, de resto, estamos mortinhos por ouvir, na gravação recente que efectuou com os Chieftains.
Em Portugal e em termos técnicos, em particular na área onde se move, próxima do tradicional, Júlio Pereira tem poucos parceiros à altura, é um facto. Esta falta de competitividade alheia, chamemos-lhe assim, tem funcionado amiúde em seu desfavor, obrigando-o a refugiar-se num discurso solitário, com os seus sonhos ou com as máquinas. Já o escrevemos várias vezes: ao vivo, Júlio Pereira transfigura-se. Várias vezes o vimos à procura, num misto de alegria e desespero, de alguém que o acompanhe às alturas e liberdades formais que são as suas. Acaba quase sempre por subir sozinho. Aqui sobem dois pela mesma corda, puxando cada um pelo outro, como duas crianças.
Verdadeiro diálogo de mãos, mas também de concepções musicais que se completam, “Lau Eskutara” mostra, no entanto, sem estarmos a cair no chauvinismo, que é Júlio Pereira a ditar a direcção, sendo ele a comandar as operações. Kepa, como já o dissemos, é o camaleão perfeito, o parceiro que segue até onde for preciso, estando, seja qual for a circunstância, à altura das exigências. Partiram ambos “de uma simples ideia de criação de música folk acústica em forma de dueto”, numa “mistura doce, rítmica e mágica de diferentes timbres, sons e sentimentos, dançando com intensidade dentro de um mesmo coração universal”, escreveram na capa.
Uma universalidade que se manifesta no convívio com os ritmos africanos (“Pousada das neves”), na transfiguração do “hornpipe” (“Dantza com noivos”) ou no “reel” (Señora moça”) celtas, na jovialidade rítmica de uns Penguin Cafe Orchestra (“Pedrinhas”, “Pátio das camélias”) ou na fusão sem fronteiras da maioria dos temas, para se agarrar a um nome concreto, em “Sodade”, composto pelos cabo-verdianos Luís Morais e Amândio Cabral e servido por uma interpretação surpreendente da portuguesa Minela. Ou ao fado, em “disfarces”. Terminam ambos a bater no coração da terra, percutindo a madeira da típica “txalaparta” basca, no título-tema, o mais experimental deste diálogo a pedir continuação.

Rosa Zaragoza – “L’Esperit d’Al-Andalus”

Pop Rock

14 de Fevereiro de 1996
Álbuns world

Rosa Zaragoza
L’Esperit d’Al-Andalus
SAGA, DISTRI, MC-MUNDO DA CANÇÃO


rz

Continuação de um trabalho sistemático de estudo e divulgação das raízes judaica, muçulmana e cristã da cultura espanhola. “L’Esperit d’Al-Andalus”, gravado ao vivo em Albarracín, por ocasião dos II Encontros do Ciclo “La Cultura Hispano-Judia Y Segóvia”, aprofunda alguns dos tópicos anteriormente abordados em “Cancons de Noces del Jueus Catalans”, dispensando, no entanto, alguns aspectos mais “ligeiros” dos arranjos e da interpretação. O formato de canção dá lugar à vertente ascética das três religiões que na Antiguidade partilhavam pacificamente um mesmo espaço geográfico e psíquico, em Espanha, estabelecendo a desejável ligação entre Oriente e Ocidente. Rosa Zaragoza explora por esse motivo os registos “funcionais” da voz, enquanto instrumento iniciático. Em “Envio uns aludo” e “La hora de la siesta”, inspiradas no gnosticismo “sufi”, a repetição salmódica, por vozes masculinas, dos vários nomes de Deus enunciados no Alcorão, funciona como oração/técnica de transmutação da “tensão nervosa” em “atenção espiritual”, para atingir o estado de transe e de “activação dos centros de energia criadora”. Os mesmos a que a religião hindu chama “chakras”, accionados pelo eixo/via/espada de Kundalini. Os apreciadores de música antiga encontrarão um motivo adicional de interesse na interpretação da “Sibila”, onde a cantora catalã preferiu a versão de Maria del Mar Bonet ao arquétipo consagrado por Monserrat Figueras com os Hesperyon XX. (8)