Entrevista – Lisa Germano: “É A Criança Que Tenho Na Cabeça”

Pop Rock

16 de Outubro de 1996

“É a criança que tenho na cabeça”

“Excerpts from a Love Circus” é uma iniciação ao desencanto. Um álbum onde Lisa Germano fala de relações estragadas e experiências traumatizantes e onde deixou “Miamo-Tutti”, o “macho-cat”, a miar. Lisa, desiludida, mas não Lisa, a submissa. É a criança que existe em si, a ronronar. Num disco sobre coisas “tristes, trágicas e absurdas”.


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Em lugar de dissertar sobre música, Lisa Germano prefere expor os seus sentimentos. Num discurso que insiste na tónica dos amores não correspondidos e na necessidade de cortar com situações de impasse, capazes de arruinar, mais do que uma relação, uma vida inteira. “Sad Lisa”, a velha canção de Cat Stevens, define a sua maneira de reagir mas não a sua maneira de ser. “Love Circus” é uma arena de desenganos da qual é preciso escapar. Desabafou com o PÚBLICO as suas mágoas, as suas fraquezas, as suas convicções.
PÚBLICO – O que são as “relações disfuncionais” que vêm mencionadas nas notas de promoção de “Love Circus”?
LISA GERMANO – É o que fazemos quando não gostamos de nós próprios e procuramos pessoas para andarem à nossa volta mas que acabam por nos tratar mal. Algo que não funciona.
P. – As relações que teve foram todas desse tipo?
R. – Pelos menos todas sobre as quais escrevi…
P. – O problema é mais seu ou dos outros?
R. – Cheguei à conclusão que é mais meu. Pelas razões que me levaram a escolher determinadas pessoas para viver com elas, relações que não funcionaram. Poderia ter saído delas mas não o fiz… Deixei andar… Está tudo nas canções. Quem melhor as compreenderá são as pessoas que passaram pelo mesmo, pessoas que se foram abaixo.
P. – Continua à espera que um dia as coisas possam bater certo?
R. – Não sei… Penso que sim. Mas olho à minha volta e vejo uma quantidade de pessoas que vivem juntas e que não se amam. Algo deprimente de ver mas que existe.
P. – Ao ouvirmos os seus álbuns fica-se, por vezes, com a impressão de estarmos perante uma criança a debater-se com os seus medos?
R. – Sim, às vezes, quando ficamos demasiado confusos, voltamos para trás, até à infância. É a criança que temos na cabeça. E é essa criança que fica ferida e que precisa que as outras partes da cabeça tomem conta dela.
P. – Símbolos da infância são as bonecas que aparecem na capa de “Happiness” e “Geek the Girl”, ou a roda de crianças, em “Excerpts from a Love Circus”. Têm algum significado mais específico?
R. – Bom, o autor das capas deve ter sentido o mesmo, que é o meu lado de criança que escreve as canções. Acontece as pessoas virem ter comigo e acharem que estou bem, que não tenho nada o ar de estar lixada…
P. – O que tem a dizer sobre o facto de ter posto os seus gatos a miar nos discos, em particular Miamo-Tutti, que aparece em “Happiness” e neste novo álbum?
R. – Miamo-Tutti é o meu gato “mau”. Dorothy é a fêmea. Utilizei-os nos discos só por graça… Não, na verdade, fazem-me lembrar uma das minhas relações. Miamo-Tutti é o tipo de gato “macho” que anda fora durante dias deixando Dorothy sozinha, muito triste, à espera que ele regresse a casa, sem conseguir livrar-se dele. Converso muitas vezes com os meus gatos. Quando acabei de fazer o disco compreendi que eles faziam parte dele.
P. – Como é que fez as gravações?
R. – O meu co-produtor emprestou-me um gravador DAT que levava para casa, onde gravei grande parte das vocalizações do disco. Como tinha o microfone à mão…
P. – Já falou no seu lado infantil, mas há o outro, o perverso. Numa canção como “Forget it, It’s a mystery”, canta coisas como: “Odeio-te porque te amo, amo-te porque me odeio” e “Gostei de ti quando me magoavas”. Soa a masoquismo. Está a referir-se a amor ou a sexo?
R. – Pode soar dessa maneira, de facto, para quem não passou por essas situações. A questão é como é que se pode viver com alguém que nos magoa e nos trata mal? É porque devemos estar muito apaixonados. Não podemos estar sempre a deitar as culpas para cima dos outros, quando a verdade é que nunca aprendemos nada. Essa canção é uma espécie de confissão. De resto, não separo amor e sexo. Não se deveria fazer o segundo sem existir o primeiro, quero dizer, podemos fazê-lo, mas é cinco milhões de vezes mais comovente quando se ama alguém.
P. – É o oposto de Liz Phair, por exemplo, quando numa das suas canções fala das vantagens de determinadas posições, que permitem ter o acto sexual ao mesmo tempo que se vê televisão…
R. – Sim, ela é mais descarada, move-se noutros quadrantes. As minhas canções são mais sobre a pessoa cruel que dá cabo da via dos outros.
P. – A pureza e a experiência são incompatíveis?
R. – Uma boa pergunta! As experiências que vamos tendo tornam-nos mais cautelosos, põem-nos na defensiva, a não acreditar. Mas talvez que, a longo prazo, ela nos ensine a encontrar a pureza. Talvez a experiência sirva para nos extirpar do que está errado, fazendo-nos ver onde está o erro, para da próxima vez estarmos mais atentos.
P. – “Lovesick” fala de terror e de medo, de um psicopata que diz amá-la e você fica paralisada à espera que algo terrível aconteça. Há algum trauma de infância por trás?
R. – Aconteceu de facto uma situação de alguém que me perseguiu, não sei se era ou não um psicopata, mas foi algo assustador, alguém a entrar pela minha casa dentro. Basicamente, o tema de “Lovesick” é semelhante ao de “Forget it, it’s a mystery”: pensar que se encontrou a nossa alma gémea e essa alma gémea nem sequer gostar de nós. No fundo, a outra pessoa tem o mesmo problema, de não conseguir abandonar a relação. A vida a dois torna-se miserável. Um “amor” doentio.
P. – Continua a acreditar na existência dessa alma gémea?
R. – Não… Actualmente acredito que há uma quantidade de almas gémeas. E ilusões. Quando escrevi “tu não és a minha Yoko Ono”, referia-me a alguém que me dizia que eu não era forte, que não correspondia à ideia que fazia de mim. Eu tinha posto esse alguém num pedestal, sem sequer me aperceber disso.
P. – O facto de ser uma cantora de rock e levar um determinado estilo de vida torna as coisas mais difíceis?
R. – Nunca tive esse problema. Não sou nenhuma estrela. Penso que essa imagem não funcionaria comigo, não tenho esse tipo de personalidade. Limito-me a escrever sobre coisas genuínas, sobre sentimentos. Acontece, apenas, que por vezes me perco no meio deles…
P. – O título do álbum, “Love Circus”, sugere espectáculo, um jogo, alguém que perde a alguém que ganha… Uma questão de poder?
R. – Não… Este álbum é apenas sobre coisas que não fazem sentido, como num circo… O primeiro título que pensei dar-lhe foi “Guillotine” [guilhotina], sobre uma pessoa que é cortada. Depois fui-me apercebendo de que se tratava mais de um circo de relações forçadas entre as pessoas. E da necessidade de cortar a direito através delas, de ver o seu lado absurdo, caso se queira mudar alguma coisa. Este disco é sobre coisas tristes, trágicas e absurdas. Um disco realmente muito, mas mesmo muito triste.
P. – Lembra-se de uma canção antiga de Cat Stevens, Sad Lisa”?
R. – Sim, costumava ouvi-la quando era uma rapariguinha [risos].
P. – “Excerpts from a Love Circus” é um álbum de canções de ódio?
R. – Comecei realmente por sentir ódio, mas isso não me levava a lado nenhum. Não valia a pena estar constantemente a gritar: “Odeio-te! Odeio-te! Odeio-te!” Senti a necessidade de compreender as razões desse ódio e partir para outra, tentar aprender a lição. No fundo, a minha música é uma tentativa de encontrar soluções para os meus problemas. As pessoas dizem que ninguém consegue fazer isso através da música, mas penso que, no meu caso, o processo resulta. A música pode ser uma cura. No meu caso é uma catarse que me ajuda a ver as coisas numa perspectiva correcta.
P. – O que é que odeia e ama com mais intensidade?
R. – Odeio que as pessoas tenham tanto trabalho para gostarem de si próprias e acabem por se deixar cair em situações às quais ficam amarradas para o resto da vida. Isso lixa-me completamente. E amo a vida. O simples acto de viver.



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