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O Senhor Dos Anéis (“O Regresso Do Rei”) – “Ninguém Escapa Ao Poder De ‘O Meu Precioso’”

(público >> cultura >> cinema)
terça-feira, 16 Dezembro 2003


Ninguém escapa ao poder de “o meu precioso”

“O Regresso do Rei”, terceira e última parte da trilogia “O Senhor dos Anéis”, estreia-se hoje numa maratona de 12 horas, em conjunto com os dois capítulos anteriores. Frodo e Sam salvam o mundo das garras de Sauron e Aragorn é coroado rei dos homens. Antes de ser destruído, o anel brilha num festival de efeitos especiais. “My precious!”


Começa hoje o fim da jornada de Frodo e Sam para salvar a Terra Média. O “Anel Um” é destruído, o rei dos homens sobe ao trono, o amor triunfa sobre o mal e os efeitos especiais do filme arrasam tudo o resto, transformando a batalha final, em Gondor, contra as forças de Sauron, num festim para os sentidos. “O Regresso do Rei”, terceira e última parte da trilogia de Peter Jackson inspirada na obra-prima “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien, estreia-se hoje, à meia-noite, em duas salas do complexo de cinemas Alvaláxia, a culminar uma maratona de 12 horas que terá início às 14h, com a projeção da primeira parte, “A Irmandade do Anel”, na versão alargada, à qual se seguirá a continuação da saga, “As Duas Torres”, também na versão extensa. Entre cada filme haverá um intervalo de 45 minutos.
Porém e para grande infelicidade dos fãs que não conseguiram comprar bilhete (12 euros, para a maratona completa), esta sessão especial está já esgotada nas duas salas, depois de, nos últimos dez dias, as “extended versions” de “A Irmandade do Anel” e “As Duas Torres” terem sido exibidas no Alvaláxia.
Alda Ribeiro, 20 anos, estudantes, teve que se resignar. Comprou bilhete para uma das sessões normais de amanhã. Viu os dois primeiros filmes no dia de estreia, “tal a ansiedade”, e confessa ter ficado “bastante surpreendida porque a tendência normal é o filme ficar sempre bastante aquém do livro”. Gostou de “ver o modo como as personagens” que idealizara “foram concretizadas no filme”. A sua preferida é Logolas, o elfo: “É lindo, ainda mais bonito do que eu imaginava.”

O rosto dos heróis
“O Regresso do Rei” não fica atrás de “A Irmandade do Anel” e “As Duas Torres” em espectacularidade. Para quem não leu o livro, é um deslumbramento. A investida dos gigantescos olifantes na batalha de Minas Tirith, capital do reino de Gondor, a luta corpo-a-corpo de Sam contra a aranha Shelob ou o desabamento da cidadela de Sauron são cenas de cortar a respiração. Mas alguns admiradores incondicionais do romance de Tolkien condenam algumas “traições” à verdade do texto original. É o caso de Pedro Silva, 18 anos, estudante, que leu os livros e viu os filmes, preferindo, “de longe”, os primeiros: “O livro é muito melhor. Nos filmes, por causa do ‘marketing’, tenderam a romantizar muito a coisa.”
Opinião idêntica tem Tiago Granja, 25 anos, neste momento a “fazer investigação na Faculdade de Farmácia”, também ele conformado por não assistir à maratona, até por não ter visto as versões “director’s cut”, as longas, dos dois primeiros capítulos. Mas tenciona ir ver “O Regresso do Rei”, “o mais rapidamente possível”. Urgência explicada pelo gosto em “comentar com outras pessoas que vão ver mais tarde”. Tiago leu o livro, daí considerar “As Duas Torres” “um bocado deslocado”: “Tem partes que no livro não acontecem. Está romanceado. Há personagens que não se conhecem nos livros que aqui se conhecem logo desde o início do filme.” Elege Gandalf como personagem favorita.
Críticas ou adesão sem reservas são afinal consequência do enorme fascínio que o filme exerce sobre todos. Tenham ou não lido o livro. Os primeiros entram na aventura, passam para outro mundo, deixam-se encantar pela desmesura dos cenários, pelo desenrolar da história ou, simplesmente, pelo aparato visual. Os segundos comparam, apontando a ausência de pormenores ou mesmo de segmentos inteiros da narrativa, até nas versões alargadas, como a de Tom Bombadil (no primeiro filme), considerado imprescindível pelos tolkenianos da linha dura. Mas mesmo esses reconhecem que o desenho dos ambientes, dos lugares e das personagens faz jus às criações do escritor. Depois de vermos o filme nunca mais voltaremos a ler o livro (sim os verdadeiros fanáticos não se contentam em lê-lo apenas uma vez…) com os mesmos olhos.
Gandalf, Frodo, Sam, Merry e Pippin, Gimli, Legolas, Aragorn, Saruman e Gollum, protagonistas de um vasto painel de personagens que fazem de “O Senhor dos Anéis” um universo, física e psicologicamente completo e complexo, passaram a ter um rosto. Homens, elfos e anões, representantes de uma humanidade impregnada de ideais, em luta contra o seu contrapeso bestial, duendes, gnomos e “trolls”, caricaturas grotescas arrancadas às profundezas da Terra, entes telúricos desvirtuados e sujeitos a terríficas manipulações pelos senhores do mal, adquiriram igualmente forma cinematográfica convincente. E Gollum, assombrosa personificação da tragédia condição humana, exemplo da linha ténue que separa o homem da besta, cuja metamorfose é determinada pela dependência do anel, o seu “precious”, como é mostrado na cena inicial de “O Regresso do Rei”.
Outras criaturas, boas, más ou fora de qualquer moral, como o Balrog, o monstro do lago, os “ents”, Shelob, os dragões montados pelos Nazgul, antigos reis, também eles subjugados pelo poder do “Anel Um” e tornados nos mais temíveis servidores de Sauron, os descomunais olifantes, mesmo os minúsculos insectos-fada, mensageiros de Gandalf, adquirem uma consistência física que parece estar desde o início latente na trama construída por Tolkien. Só Sauron continua representado pelo olho de fogo que tudo vê, símbolo do poder e da vontade da mente luciferina.

Gigantes
Excluindo todos os defeitos que se lhe possam apontar, a trilogia de Peter Jackson compreendeu um dos aspectos essenciais da obra de Tolkien: que o que separa o nosso mundo, pretensamente real, do mundo por ele idealizado, pretensamente imaginário, é uma diferença de escalas. Em “O Senhor dos Anéis” o mundo e os seres que o habitam são maiores (descontando, obviamente, os hobbits, e mesmo esses, no final do livro, regressam ao Shire fisicamente alterados, mais altos do que do início da aventura, e não apenas em virtude da beberagem mágica oferecida pelos “ents”…). As águias, os olifantes (aberração gigantesca dos elefantes), as árvores que sustentam a cidade élfica de Lothlorien, os palácios, fortificações e estátuas de homens e anões, têm dimensões gigantescas. A dimensão dos mitos. Mas mais importante do que essa arquitetura erguida à escala dos gigantes (presente, de resto, nos nossos mitos históricos) é a grandeza dos sentimentos. O heroísmo. Frodo, Sam, Gandalf, Aragorn, Gimli, Arwen, Legolas, Elrond, Theoden ou Faramir personificam o sacrifício por uma causa, a amizade, a generosidade, a coragem, a sabedoria. Ao nível do ideal mais puro: o amor.
É isso que em “O Senhor dos Anéis”, o livro, toca mais fundo em quem o lê e em que, Jackson, no filme, toca apenas ao de leve. Mesmo assim com intensidade suficiente para nos fazer ter vontade (e força, e coragem, e pureza e…) de viajar do Shire do nosso conformismo até ao Monte da Condenação, para aí renunciarmos ao poder e ao orgulho que foram causas da Queda. E voltar a casa, na curva acima do destino. A narrativa de “O Senhor dos Anéis” (o livro continua por mais umas eras…) termina com um suspiro de Sam, infinito e pueril como um “Aleph” – onde a eternidade e o instante são o mesmo e um só. Foi pena – no meio de tantos e grandes feitos – que Peter Jackson não tenha reparado.

Música Dos Anéis

21.12.2001
Música Dos Anéis
Lord of the Rings, do sueco Bo Hansson, é apenas um dos muitos discos inspirados na Terra Média criada por Tolkien, cujas fantasias literárias casaram bem com as drogas e as visões dos músicos dos anos 60 e 70.

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A música está no cerne de cada linha de “O Senhor dos Anéis”. Descontando a dimensão wagneriana possível de descortinar na construção arquitectónica desta obra monumental, toda a escrita de Tolkien flui de forma musical. Tolkien, convém não esquecê-lo, foi professor de línguas antigas em Oxford, em particular de inglês medieval e d o galês. Cada sílaba, a mais subtil entoação das palavras pronunciadas na antiga língua da Terra Média, nomeadamente o élfico, nas suas duas modalidades, o “quenya” e o “sindarin”, derivam de um estudo apurado, tendo o seu autor levado em conta não só a grafia como a musicalidade de cada termo.
Tolkien inventou toda uma geografia e uma História, da mesma forma que criou para elas uma linguagem original coerente, possuidora de uma gramática e etimologias próprias. Neste aspecto, é elucidativa a explicação sobre este processo dada pelo escritor, no programa televisivo “J.R.R.T. – A Portrait of John Ronald Reuel Tolkien” (realizado em 1992). “quando escrevo, começo sempre pelos nomes2. Tolkien não só radicou o seu novo vocabulário em raízes etimológicas genuínas, como se deu ao cuidado de lhes conferir um grafismo e uma fonética mágicos que, de igual modo, entroncavam nas antigas civilizações célticas. De imediato reconhecemos em nomes da “língua antiga”, como Arwen, Beregond, Déagol, Dúnedain, Elberethgilthoniel, Éowyn, Gil-Galad ou Gwaihir, ora ressonâncias gaélicas ora do ciclo medieval arturiano. “A Elbereth Gilthoniel silivren penna míriel, o menel agalr elenath! Na-chared palan-díriel. O galadhremmin ennorath, fanuilos, le linnathon nef aear, sí nef aeron!”… Quem dominar a língua élfica, decerto entenderá…

Pop e Rock
Não se esgota, porém, na estrutura formal (nomes das personagens, lugares, etc.) a música que em “O Senhor dos Anéis” se faz ouvir em todo o seu esplendor. Desde os constantes cânticos élficos (e os reinos dos elfos, como Rivendell ou Lothlorien são em si mesmos filigranas musicais…) aos encantamentos de Gandalf que atravessam a trilogia, passando pelo poema de Bilbo Baggins, a música confunde-se com a própria acção, numa imensa sinfonia em três andamentos cujo “finale” não poderia ser mais surpreendente…
Por tudo isto se compreende que “O Senhor dos Anéis2 tenha deixado marcas na música pop e no rock, em particular nas décadas de 60 e 70, quando o seu impacto foi maior. O onirismo ou realismo fantástico (ou fantástico real?) de Tolkien encontrou terreno fértil na imaginação e nos discos de não poucos músicos para os quais as drogas alucinogéneas, o Psicadelismo e, posteriormente, o Rock Progressivo, funcionavam como catalisadores de uma visão do homem e do mundo que os anos 80 pulverizaram nas engrenagens de uma máquina devoradora de sonhos.
Então, porém, a loucura e a desmesura ditavam as suas leis. Exemplo extremo de visionarismo (para muitos de totalitarismo…) e da emancipação linguística equivalentes aos de Tolkien, e o que mais longe foi ao pôr em prática um código musical e linguístico autónomo, deu-o o baterista e compositor Christian Vander, em França, na alvorada dos “sixties”, com o grupo Magma.
Vander, amante de Wagner, Coltrane e dos Van Der Graaf Generator (desse outro grande poeta e visionário chamado Peter Hammill), delineou o seu cosmos pessoal com sede no planeta Kobaia, conferindo-lhe, como língua própria na qual todos os discos do grupo haveriam de ser cantados, o kobaiano. Na história delirante saída da mente do músico francês, os maus da fita, que haveriam de invadir o planeta Terra, respondiam, no álbum de 1974, “Khöntarkösz”, pelo nome de Orks, clara alusão aos orcs de “O Senhor dos Anéis”. Curiosamente, Vander é hoje um dedicado estudioso de magia negra…
Quatro anos antes de os Magma prenderem o rock no seu anel-garra, o sueco Bo Hansson fora mais literal, ao gravar “Lord of the Rings”, súmula prog/jazzística que retratava algumas das situações da narrativa épica de Tolkien.
Os exemplos da incidência da obra de Tolkien na música popular sucedem-se: Jack Bruce chamou “To Isengard” (região onde se localizava a torre de Orthanc, a fortaleza de Saruman) a uma das faixas do seu álbum de 1969, “Songs for a Taylor”. Em 1970, os Camel incluíram “Nimrodel” no seu longa-duração, “Mirage”. “Lothlorien” é o título de uma das canções de “Ring of Hands”, álbum de 1971 dos Argent.
Já na época de confronto com o punk, Fish cortou a primeira sílaba a “Simarillion” (o genesis mitológico da Terra Média) e chamou ao seu grupo Marillion”.
Ainda no período de decadência do Progressivo para o Neo-Prog, apareceram os espanhóis Galadriel, a rainha dos elfos. Também espanhóis, os Amarok dedicaram uma suite do álbum “Canciones de los Mundos Perdidos” a “O Senhor dos Anéis”. A banda de hardrock Glass Hammer cultiva uma obsessão pela obra de Tolkien. Também “heavy bangers”, os Rivendell não escondem onde foram buscar inspiração para o seu nome. Na Alemanha, a electrónica de contornos místicos caiu nas mãos do grupo Gandalf.
Mesmo o jazz foi sensível ao fascínio exercido por Tolkien. Músicos como o trompetista Don Cherry ou o vibrafonista Dave Pike compuseram dedicatórias a “O Senhor dos Anéis”.
Em Portugal, ainda na década de 70, Manuel Cardoso, guitarrista dos Tantra, assumiu, como alterego, Frodo, ainda que, neste caso, o formato da cabeça (monstruosa, em bico) da personagem não coincidisse em absoluto com a que Tolkien idealizara para o hobbit…
Refira-se, para terminar, o próximo projecto já anunciado por Rick Wakeman: um álbum intitulado “Master of the Rings”, inteiramente dedicado À temática em causa. É bastante provável que a este, Tolkien, se fosse vivo, não desse a sua aprovação…

Cinema – O Senhor dos Anéis

21.12.2001
Cinema
O Senhor dos Anéis não é obra que se leia de ânimo leve. Como um passe de magia, ela transforma a vida de quem a lê. Terminada a leitura, fica a saudade, um novo olhar sobre o mundo e o desejo de converter os renitentes. Agora com o filme de Peter Jackson, a Irmandade ganha novos adeptos.

Um Anel Para Todos Dominar
“Os hobbits, aquele povo baixinho, feiinho, barrigudo e peludo, que gosta de comer e de ficar calmamente à mesa, em grandes almoçaradas e jantares, mas que, quando as circunstâncias o exigem, em momentos de crise, se transfigura por completo, faz-me lembrar os portugueses…”
Um adepto da Irmandade

A Humanidade divide-se em dois grupos: o dos que leram “O Senhor dos Anéis”, com os “Monthy Python” e Giselle Bündchen uma das manifestações mais sublimes do génio humano; e o grupo dos que não (estão à espera de quê?).
Os que leram, podem comprovar que não estamos a mentir ao afirmar que a leitura da trilogia escrita por John Ronald Reuel Tolkien, entre 1936 e 1949, e cujo primeiro volume, “A Irmandade dos Anéis”, deu à estampa pela primeira vez em 1954, fez deles pessoas melhores. E os fez descobrir que o mundo pode ser um mundo melhor. E que o mundo da fantasia é tão ou mais real que o mundo físico.
Os que não leram – por teimosia, ou para contrariar a atitude missionária dos que, tendo lido, anseiam partilhar a epifania com os leigos – justificam o lapso tremendo, cofiando o bigode com ar sério ou ajustando a bainha da saia da maioridade, acusando a obra de Tolkien de se destinar às crianças.
Também se encontra a facção dos que, não conseguindo ultrapassar a barreira do volume I, introdução didáctica aos “hobbits” e aos seus usos e costumes que é uma espécie de ritual para distinguir os eleitos dos preguiçosos, desiste ao primeiro embate com a complexa iconografia e onomástica que Tolkien propõe no preâmbulo.
A estes grupos de resistentes, ou detractores, respondem os tolkienómanos fundamentalistas com um encolher de ombros e um olhar de desprezo. A ala mais conservadora, porém, tenta convencê-los, dispondo-se mesmo a ler-lhes em voz alta, se isso for necessário para fazê-los ver a luz,
“O Senhor dos Anéis”, ao contrário da história anterior de Tolkien, “O Hobbit”, não é uma obra para crianças. Ainda que a sua magia apenas possa ser apreendida por aqueles adultos que conservaram dentro de si a pureza (e a Fé) da criança. Encare-se, antes, esta imensa geografia de seres, lugares, linguagens e situações, nos antípodas desse outro tipo, mais negro, delineado duas décadas antes por H.P. Lovecraft, como a emersão na quintessência do Humano, aí onde apenas a imaginação, o humor e a intuição servem de bússola. É a demanda, a aventura perpétua (é facto assente: todos os que a leram sentiram no final uma nostalgia, a sensação de perda, fruto do desejo de que a aventura perdurasse para sempre…) cujo sentido vai da pequenez para uma dimensão cósmica. Com regresso a casa.

Eterno Retorno
Frodo, Merry e Pippin, mesmo Sam Gamgee, os quatro “hobbits” da “Irmandade do Anel”, cuja missão é a destruição do Um Anel no Monte da Condenação (e a vitória sobre o Mal, personificado por Sauron), vão crescendo, física e espiritualmente, aproximando-se gradualmente de uma natureza délfica, a mais nobre de “O Senhor dos Anéis” (aqui Tolkien retoma o ideário do Amor e da Gnose medievais…), à medida que a saga vai avançando. Ciclo de Cavalaria ou Demanda inversa do Graal, o Eterno Retorno de “O Senhor dos Anéis” é apenas aparente. Frodo e os restantes hobbits regressam a casa diferentes do que eram ao partirem. A adaptação à mesquinhez e à normalidade do dia-a-dia no Shire tornara-se impossível. Aos portadores do Anel nada mais restava senão embarcar na derradeira viagem que os levará, na companhia dos derradeiros elfos, a um mundo ainda mais distante, do outro lado do mar. O “Avalon” dos celtas. A “Ilha dos Amores” camoniana. O céu, enfim,
Existe nesta obra que muitos consideram “A Obra” literária do século XX, um itinerário (outra das delícias da leitura: seguir passo a passo, no mapa impresso nas primeiras páginas dos três volumes, as diversas etapas da viagem), exterior e interior. “Um mapa da fantasia que, por detrás, esconde o mapa verdadeiro da Inglaterra”, diz Tom Shippley, professor de filologia inglesa antiga, na Universidade de Leeds. Lê-la, com “L” maiúsculo, é seguir lado a lado com a Irmandade, resistir à fúria dos elementos nas altas encostas de Caradhras, lutar contra aranhas gigantescas na floresta Tenebrosa, enfrentar o terror inominável nos subterrâneos de Moria, naquele que será o episódio mais próximo das trevas Lovecraftianas, como este as efabuloou em “Nas Montanhas da Loucura”.
“O Senhor dos Anéis” obriga-nos a entrar e a viver no interior deste mundo. A partilhar os medos e as alegrias, os anseios e as dúvidas, os momentos de desânimo e os deslumbramentos, as pequenas cobardias e os actos de bravura de cada um dos elementos da Irmandade do Anel. Combatemos ao lado de Frodo e dos seus companheiros, os ferozes orcs e os horrendos trolls; ajudamos a derrubar, com o auxílio dos inenarráveis Ents, a torre de Saruman, o feiticeiro traidor, símbolo da racionalidade demoníaca.
Reaprendemos a olhar o mundo que nos rodeia com um olhar mais límpido e luminoso, a descobrir o véu ténue que separa o sonho da realidade e a vislumbrar o que se move do lado de lá e influencia o lado de cá.
Para Judi Dench, narradora do programa televisivo britânico “J. R. T. T. – A Portrait of John Ronald Reuel Tolkien”, realizado em 1992, no centenário do nascimento do escritor, “o livro ergue-se sobre velhos padrões de um desejo universal, de se querer um mundo mais rico, profundo e vivo do que o que Descartes nos deu. De desejar encontrar algo que não é magia, mas encantamento, no mundo que nos rodeia e que o mundo de Tolkien nos dá, numa base permanente, de modo que, ao fecharmos o livro, podemos olhar à nossa volta, e os nossos olhos mantêm essa imagem. Continuamos a ver esse mundo no mundo em que vivemos”.
Na introdução a “O Senhor dos Anéis”, Tolkien refere o facto de durante a escrita de “O Hobbit”, a obra que daria origem a “O Senhor dos Anéis”, ter tido “vislumbres de coisas mais elevadas, tanto para o bem como para o mal”. Quanto a isso, não tenhamos dúvidas. Sauron continua activo, os seus feitiços a tornar espessas todas as coisas. O “um anel para todos dominar, um anel para os encontrar/um anel para todos prender, e nas trevas os reter/na terra de Mordor, o reino das sombras” continua a exercer o seu poder e fascínio sobre os homens. “O Senhor dos Anéis” extravasa das folhas de papel para o coração do leitor, e de lá escorre para a confusão das cidades, redimindo os vícios de uma Humanidade apartada de si mesma, esquecida dos tempos em que foi grande, incapaz de se reconhecer nos feitos dos heróis.

A Outra Irmandade
A par da Irmandade dos Anéis, existe, espalhada pelos quatro cantos do mundo, uma outra Irmandade, a dos admiradores de Tolkien. Portugal não é excepção. O Y falou com dois membros dessa Irmandade, António Martins, 37 anos, professor do Ensino Básico, em Loulé, que ainda não viu o filme, e Pedro Laginha, 15 anos, estudante, que já viu, e “adorou”, a adaptação cinematográfica de Peter Jackson. António Martins já leu “O Senhor dos Anéis” duas vezes. Da primeira ficou o deslumbramento da descoberta de uma “paisagem fantástica” e, como acontece aos verdadeiros “crentes”, uma “imensa tristeza por acabar a leitura do livro e a vontade de continuar”.
A paixão pela Idade Média e o amor pela natureza, sentidos desde sempre por António Martins, ajudam a explicar a sua predilecção, entre todas as personagens da trilogia, pelos Ents, cuja acção é determinante na vitória final das forças do Bem contra os exércitos de Saruman.
“O ataque final ao Senhor das Trevas, por aqueles seres, meio animais, meio árvores… São eles que acabam por rebentar com a fortaleza e estoirar com as pedras. Na Natureza também é assim que as coisas acontecem, as armas humanas acabam por ser destruídas por forças naturais”.
Os hobbits são outros dos povos da Terra Média pelos quais este professor do Primário não esconde a sua admiração, descobrindo inclusive na sua compleição física e no seu perfil psicológico insuspeitas conotações… “Aquele povo baixinho, feiinho, barrigudo e peludo, que gosta de comer e de ficar calmamente à mesa, em grandes almoçaradas e jantares, mas que, quando as circunstâncias o exigem, em momentos de crise, se transfigura por completo, faz-me lembrar os portugueses…”.
Destaca ainda a dicotomia Tom Bombadil/Gandalf, outra das suas personagens favoritas: “Tom Bombadil tem poderes fantásticos, nada o afecta, é a eterna testemunha, o mais antigo de todos, tão velho, tão velho, mas apesar de tudo criança, que apesar de todos esses poderes não age, prefere brincar, achando que tudo são trivialidades. Gandalf, pelo contrário, usa a sua sabedoria e os seus poderes. Ainda não perdeu essa capacidade de achar que pode modificar o rumo dos acontecimentos”.
O regresso, muitos anos mais tarde, a “O Senhor dos Anéis”, para uma segunda leitura, “de enfiada, sem conseguir parar, no Metro, na casa de banho, à noite, antes de adormecer”, coincidiu com uma perspectiva já mais serena da obra. Além disso, depois do “choque” causado pela primeira, que terá durado cerca de “dois, três meses”, António tornou-se, como mandam as regras, um “fanático” do universo tolkeniano. “Fiquei escandalizadíssimo quando três ou quatro pessoas me disseram que começaram a ler aquilo e acharam chato (risos). Disse-lhes para insistirem…”. Já conseguiu converter a mulher, que após as resistências habituais, já vai no final do volume I, e “está a adorar”. Para este professor que gosta de passear pela serra algarvia, para contemplar de perto a Natureza, o “mundo imaginário” de “O Senhor dos Anéis” é “uma imagem de todos nós”: “Tolkien conseguiu agarrar nas pulsões mais íntimas da Humanidade”.
Foi através da mãe, que o aconselhou a ler o livro, que Pedro Laginha entrou neste mundo imaginário. Não se fez rogado e logo reparou que o “envolvia”. Leu “A Irmandade do Anel” em um ou dois meses. Seguiu rapidamente para o resto da trilogia. Teve pena de parar. O seu preferido é o volume II, “As Duas Torres”. Destaca a “variedade de raças e místicas” e a “criatividade” das “descrições, dos calendários, dos cenários”. As suas personagens favoritas são Gandalf, Aragorn e Sam Gamgee. Identifica-se com Frodo. “Senti o mesmo que ele estava a sentir, a sua ansiedade”. Pedro é um dos felizardos que já viu o filme. Gostou. “Talvez falte uma coisa ou outra, como a cena do Tom Bombadil…”. A falha não será suficiente para desencorajar Pedro de ler os três livros outra vez.
“Então quando vi o filme, fiquei tão entusiasmado que ando a tentar convencer os meus amigos a lerem também”. São assim, os membros da Irmandade dos Admiradores de “O Senhor dos Anéis”