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Natália Correia – Alma Do Mundo

Pop Rock

 

20 FEVEREIRO 1991

 

ALMA DO MUNDO

Natália Correia

vozes

“Vozes da Terra”. Vozes femininas, do grupo de cantares do Manhouce, equivalentes às daquelas misteriosas búlgaras que “falam com Deus”. A editora procurou a semelhança, na mistura das imagens, na apropriação mercantil do que é por natureza divino. Como se a eternidade estivesse na moda.

Natália Correia escreveu o texto de apresentação do disco, impresso na contracapa, ponto de partida para uma conversa ao sabor dos ventos e das marés. Das Beiras, os símbolos correram até desaguarem no infinito. De Portugal se partiu e parte sempre para mundos mais além. A alma prateada e granítica da Serra confundida com a matéria mais antiga do mundo primordial. Seriam duas, se a distância existisse.

Natália Correia detém segredos e deles fala e escreve livremente, como uma pomba astral, voando entre a noite e o dia, a Lua e o Sol, dizendo aquilo que É e urge ser dito. Noutras esferas chamar-lhe-iam sacerdotisa. As palavras fluíram, reais, esculpidas em som e luz. Quiseram-se caminhos para as fontes e barcas para navegar o mar. E assim foi.

Hoje discute-se, com redobrada energia, a religião (e o ritual), no sentido original de “re-ligação”: “Há muito que falo na revitalização do espaço sagrado. O sentimento religioso tem que ser conduzido numa direcção que abranja o reencontro daquilo que já foi a totalidade, ou seja: a fusão das duas polaridades, masculino/feminino, Fogo/Água, Yang/Yin.” Falou-se de alquimia.

Falou-se de música e das forças que a conduzem: “Por detrás de toda a expressão artística, há esse fluir de energias, dirigidas para a procura da beleza que exprime a perfeição.” Energia que magos negros utilizam, invertendo valores e polaridades. “Para muitos será um álibi para adiar o encontro com a Verdade. Para outros é um agir inconsciente expresso no tópico ‘o mundo ás avessas’, ou seja, na inversão dos valores para procurar a sua verdadeira colocação numa ordem perdida ou, se quisermos, esquecida.” Sinais do Apocalipse? “Vivemos tempos de iluminação, tempos de revelação (é esse o significado da palavra) e, precisamente nessa perspectiva, há aqueles que se aliam aos demónios que estão à solta e os que procuram a Luz que jorra da outra face.”

Raymond Abellio, autor incontornável dos tempos actuais (quem o conhece, apesar de já nos ter visitado, nos finais da década de 70, pela mão, força e esclarecimento do pintor Lima de Freitas e da própria Natália Correia?), refere-se ao papel de Lúcifer no mundo moderno. “Não falo em Lúcifer porque isso me coloca numa visão institucionalizada da religião. Prefiro remontar ou recuar aos gnósticos, cuja posição, em muitos aspectos, é para mim cada vez mais significativa, no sentido de denunciarem na humanidade uma extracção daquilo a que eles chamam os ‘pseudo-antropos’. Há uma história que ajuda a compreender o significado do termo, de um frade franciscano para quem o Juízo Final não era mais do que um grande esclarecimento, porque nele se distinguiriam os verdadeiros humanos daqueles que passavam por humanos, sendo na realidade sapos, lagartos, escorpiões… Verifico que estamos precisamente num período histórico em que uma guerra despudoradamente demencial vem dar razão ao meu velho amigo franciscano. O pseudo-antropo é um ser mascarado de humano. A sua energia é tão poderosamente maléfica que governa os destinos do mundo. A música é um dos instrumentos destes magos negros. Não só a música. A nocividade da sua acção estão a atingir a cultura em geral que, não por acaso, se deixa absorver pela máquina da indústria.”

O diabo aparece amiúde com a forma de mulher. Para a autora de “Mátria”, “O Dilúvio e a Pomba” e “O Encoberto”, entre outras obras, tal facto, como (quase) tudo, tem uma explicação: “Onde alguns lêem Eva, outros lêem Lilith, para acentuarem o demoníaco no feminino, dentro de um enquadramento da atracção que leva Adão a comer o fruto proibido e consequentemente à expulsão do casal do Paraíso. É preciso não esquecer que no Antigo Testamento se cruzam duas influências: uma que acata o velho princípio da bissexualidade do hermafroditismo divino, expresso na sentença ‘e Deus criou Adão, fazendo-o macho e fêmea, à sua semelhança’; outra, aquela que poderemos classificar de reformismo patriarcal, que concentra todo o odioso sobre a mulher, convertendo-a num ser demoníaco (Lilith). Cabe aqui acentuar que a serpente, sendo na metáfora genesíaca considerada um animal diabólico, segundo as concepções da tal revolução patriarcal que lança o estigma sobre o grande emblema da ginecocracia, é, neste caso (testemunha-o ainda a nossa civilização dolménica), sinal de uma tradição em que, ao lado da polaridade masculina, avultava o aspecto feminino da divindade.”

Ser e conhecer. Como se manifestam então, ao nível gnoseológico, essas duas polaridades complementares, cuja atracção recíproca, amorosa, Natália Correia nomeia na conjunção da “Alma mater saudosa do pólo celeste como que consumava o todo (…) nas núpcias do céu e da Terra”? “A intuição é um elemento do sófico feminino (a ‘sofia’, como os gnósticos diziam e sabiam). A penetração, a demanda masculina, é o caminho para o sófico. Por isso a mentalidade masculina é mais filosófica. Ninguém percebeu isso melhor que os nossos trovadores. ‘Philo’ significa afecto, amor. O amor pela mulher (ou através dela), na qual viam reflectida a face divina. O sófico feminino revela-se no saber natural da alma mãe.”

A poetisa afirma-se “decepcionada” quando algumas das mulheres que conhece e considera “de grande responsabilidade intelectual” vêem na adoração da dama (a mulher) de que falavam os surrealistas, “uma forma de a aprisionar e manter acorrentada a uma situação tradicional”. “Fazer-se amar e venerar pelo homem”, afirma convictamente Natália Correia, “é hoje a obrigação mais imperiosa da mulher”. Que cada um perceba do que lê aquilo que for capaz de perceber.

Lentamente o mundo material reconstruiu-se de novo, na voz e na figura de Isabel Silvestre, solista do grupo de cantares do Manhouce. Música representativa da tal “teologia do feminino provectamente anterior à religião patriarcal dos hebreus”, a que Natália Correia alude, de que “em Espanha, o vascuense é testemunho linguístico e que em Portugal, se mantém perseverantemente enraizada sobretudo na Beiras”. Por isso as vozes da Terra, e em particular a de Isabel Silvestre, lhe provocam, quando ao ouve, “um frémito maior do que aquele causado pela música erudita”: “Quando se ergue o coral de Manhouce, ouço a voz dessa Mulher que nos chega do fundo dos séculos que formaram a nossa natureza cultural.” Assim se cumpriu o tempo certo, desdobrado nas curvas espiraladas do destino.