Do país basco são conhecidos internacionalmente os Oskorri, hoje uma instituição da folk europeia, e o “virtuose” da “trikitixa” (acordeão) Kepa Junkera, que recentemente colaborou com os Chieftains e Júlio Pereira. Junkera é aqui o parceiro de Ibon Koteron, num álbum que pretende recuperar o “alboka”, clarinete duplo do País Basco – criando para ele um reportório actual -, e, em simultâneo, homenagear alguns dos mestres antigos, os “albokeros”, em particular a figura de Léon Bilbao. Bilbao foi, ele próprio, um revolucionário do “alboka”, na recusa em o reduzir a mero instrumento de pastores, contrariando ainda aqueles que negavam a possibilidade de o tocar recorrendo à técnica do sopor contínuo. Em “Loenen Orroak” é visível este esforço de modernização, tanto ao nível da produção como da orientação estética de um projecto que se insere inequivocamente numa corrente de folk sofisticada e ultra-arranjada com extensões nos diversos países da tradição celta. Não faltam ao “albokero” Ibon Koteron motivos de sobra e contextos instrumentais para fazer evoluir o som estridente do “alboka” sobre tapetes harmónicos que usam e abusam da sanfona, gaita-de-foles (incluindo as “uillean pipes” irlandesas), percussões árabes (por Luís Delgado, de todas as fusões) e, claro, a “trikitixa” inquieta de Junkera. (8)
Júlio Pereira & Kepa Junkera
Lau Eskutara (8)
Triki, distri. Sony Music
Puro prazer de tocar. Puro prazer de escutar. Neste jogo a duas mãos, encontraram-se duas almas gémeas. Júlio Pereira e Kepa Junkera são mestres dos respectivos instrumentos. De corda dedilhada, o português, da “trikitixa” (acordeão diatónico), o basco. Juntos, fazem miséria. Na sequência do que o seu anterior trabalho, “Acústico”, já deixava antever, Júlio Pereira abandonou, até ver, a obsessão pela tecnologia e pelo tratamento digital das sonoridades do cavaquinho, da braguesa ou do bandolim. A companhia do basco, cuja personalidade extrovertida e capacidade de compreensão, adaptação e interiorização de diferentes discursos musicais são notáveis, serviu de estímulo ao “virtuose” português, que, de resto, estamos mortinhos por ouvir, na gravação recente que efectuou com os Chieftains.
Em Portugal e em termos técnicos, em particular na área onde se move, próxima do tradicional, Júlio Pereira tem poucos parceiros à altura, é um facto. Esta falta de competitividade alheia, chamemos-lhe assim, tem funcionado amiúde em seu desfavor, obrigando-o a refugiar-se num discurso solitário, com os seus sonhos ou com as máquinas. Já o escrevemos várias vezes: ao vivo, Júlio Pereira transfigura-se. Várias vezes o vimos à procura, num misto de alegria e desespero, de alguém que o acompanhe às alturas e liberdades formais que são as suas. Acaba quase sempre por subir sozinho. Aqui sobem dois pela mesma corda, puxando cada um pelo outro, como duas crianças.
Verdadeiro diálogo de mãos, mas também de concepções musicais que se completam, “Lau Eskutara” mostra, no entanto, sem estarmos a cair no chauvinismo, que é Júlio Pereira a ditar a direcção, sendo ele a comandar as operações. Kepa, como já o dissemos, é o camaleão perfeito, o parceiro que segue até onde for preciso, estando, seja qual for a circunstância, à altura das exigências. Partiram ambos “de uma simples ideia de criação de música folk acústica em forma de dueto”, numa “mistura doce, rítmica e mágica de diferentes timbres, sons e sentimentos, dançando com intensidade dentro de um mesmo coração universal”, escreveram na capa.
Uma universalidade que se manifesta no convívio com os ritmos africanos (“Pousada das neves”), na transfiguração do “hornpipe” (“Dantza com noivos”) ou no “reel” (Señora moça”) celtas, na jovialidade rítmica de uns Penguin Cafe Orchestra (“Pedrinhas”, “Pátio das camélias”) ou na fusão sem fronteiras da maioria dos temas, para se agarrar a um nome concreto, em “Sodade”, composto pelos cabo-verdianos Luís Morais e Amândio Cabral e servido por uma interpretação surpreendente da portuguesa Minela. Ou ao fado, em “disfarces”. Terminam ambos a bater no coração da terra, percutindo a madeira da típica “txalaparta” basca, no título-tema, o mais experimental deste diálogo a pedir continuação.
25.09.1998
Kepa Junkera, Navegador Da Trikitixa, Parte De Bilbau Para O Resto Do Mundo
Basco Da Gama
“Bilbao 00:00h” é uma metáfora. De uma cidade, Bilbau, e de uma maneira pluralista de entender a música do mundo. Uma “hora mágica”, um “começo” e um “ponto de encontro” do Norte celta, do Sul árabe e do mar, nas margens do País Basco. No meio da imensidade de estrelas convidadas por Kepa Junkera, está Dulce Pontes.
Kepa Junkera é um navegador. Das possibilidades ocultas da trikitixa (acordeão diatónico) e das música que nascem do encontro entre diversas tradições. O “virtuose” basco descreveu para o PÚBLICO algumas das etapas desta viagem.
FM – “Bilbao 00:00h” é um disco sobre uma cidade ou um disco sobre o mundo?
KEPA JUNKERA – É um trabalho em que procurei reflectir a forma como encaro a música, uma espécie de resumo da minha carreira, iniciada há 15 anos, de todas as experiências que fui acumulando durante este tempo. É também um disco sobre o mundo, o mundo musical, mas é sobretudo uma homenagem à minha cidade, a terra onde nasci e cresci, um meio urbano que influenciou a minha maneira de ver a música. É ainda outra homenagem, a Astor Piazzola, um dos músicos que mais me marcou, pela sua música e pelo seu carácter.
FM – Por que razão escolheu para título uma hora como a meia-noite?
KEPA JUNKERA – Pretende ser uma metáfora. É uma hora mágica, um começo, um ponto de encontro. Atravessamos um momento no qual muitos jovens músicos começam a destacar-se, reclamando a atenção de público.
FM – Quem é Román Urraza, a quem o disco é dedicado?
KEPA JUNKERA – Era o meu avô materno. Tocava pandeireta. Ele e a minha mãe foram as pessoas que me deram a conhecer as raízes musicais do meu país.
FM – Gostaria que pormenorizasse um pouco, algumas colaborações do disco: La Bottine Souriante, Dulce Pontes, Hedningarna, Phil Cunningham, Alasdair Fraser, Mairtin =’Connor e Liam O’Flynn.
KEPA JUNKERA – Os La Bottine Souriante, considero-os uma das melhores bandas de todos os tempos. Conheci-os há cinco anos, num festival no Quebeque. Dulce Pontes tem uma voz que não consegue passar despercebida. Convidámo-la para um concerto em Madrid, em Dezembro do ano passado. Propusemos-lhe gravar em basco um tema tradicional, “Maita nun zira?”, que ela cantou logo à primeira. Faz algum tempo que a música portuguesa tem uma palavra a dizer no panorama internacional, é um país de grandes músicos. Sempre me interessei, por exemplo, pela concertina, tão presente na música do Norte de Portugal. Quanto aos Hedningarna, a sua forma de tratar as melodias tradicionais, combinando-as com instrumentos vanguardistas, facilitou a ruptura com velhos esquemas, transportando a música para terrenos inexplorados.
Phil Cunningham, Alasdair Fraser, Mairtin O’Connor e Lyam O’Flynn representam a perspectiva celta, a partir do Norte.
FM – “Fali-faly” foi feito de propósito para mostrar o “virtuosismo” dos vários solistas envolvidos?
KEPA JUNKERA – É um hino à alegria onde cada músico contribui com os respectivos instrumentos, timbres e formas de interpretação específicos. Definitivamente, é o tema que melhor reflecte o que este disco pretende contar.
FM – Como aparece a referência a Portugal, em “Del Hierro a Madagascar”?
KEPA JUNKERA – A letra foi escrita por Pedro Guerra que, melhor do que ninguém, captou a componente da viagem que este disco necessariamente tem. E quando se fala em viajar não se pode evitar fazer referência ao mar e a Portugal, um dos países que melhor soube integrar outras culturas na sua cultura. Para os portugueses, como para os bascos, o mar constitui uma parte importante da sua tradição.
FM – Além de um forte contingente galego (Nunez, Budino, Beceiro), participam neste disco músicos ligados às tradições do Sul de Espanha, como o Luis Delgado ou o Fain Duenas…
KEPA JUNKERA – Sim, e o Sebastian Rubio ou o Pedro Estevan. Nos últimos tempos temos sido bombardeados por música celta, eles trazem consigo outras formas de expressão que se fundem com naturalidade.
FM – O que mudou, de “Leonen Orroak”, com Ibon Koteron, para este novo álbum?
KEPA JUNKERA – “Leonen Orroak” era um trabalho mais experimental, uma tentaiva de descoberta de todas as possibilidades de um instrumento ancestral, a alboka, de exploração dos seus segredos e mistérios. “Bilbao 00:00h” é diferente, uma reunião, algo aberto, motivo de alegria e de festa, onde podemos encontrar a alboka e a txalaparta compartilhando o mesmo espaço com a valiha, o acordeão e os teclados.
FM – “Bilbao 00:00h” é uma aposta evidente no mercado internacional. Este facto influenciou, de alguma forma, aspectos musicais como a produção ou os arranjos?
KEPA JUNKERA – Não. Através dos meus discos procurei sempre colaborar com outros artistas, explorar diferentes timbres, sonoridades e instrumentos. Não é um disco muito diferente dos outros. A quantidade de convidados é, sem dúvida maior, mas a ideia central permanece a mesma. Não se trata de uma moda, mas de uma necessidade.