Philip Glass: Círculos do Tempo (artigo)

Pop Rock

28 OUTUBRO 1992

OS CÍRCULOS DO TEMPO

Em “The Voyage”, Philip Glass celebra o quinto centenário da descoberta da América, por Cristóvão Colombo. A ópera estreou-se no passado dia 12, na Metropolitan Opera House, em Nova Iorque, com lotações esgotadas e transmissão radiofónica, em directo para os Estados Unidos, em diferido para a Europa. Seguem-se Vasco da Gama e os Descobrimentos portugueses, em “The White Raven”, e o mais que vier por encomenda.

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Em simultâneo com este novo trabalho, volta à cena “Einstein on the Beach”, a sua primeira ópera, escrita em 1976, de parceria com Robert Wilson, numa “tournée” mundial que culminará na Academia de Música de Brooklyn. Entretanto, “The White Raven”, “Orphée” e “Low” encontram-se em fila de espera. “The White Raven” é a ópera encomendada pela Comissão dos Descobrimentos Portugueses, com “libretto” da escritora Luísa Costa Gomes e estreia prevista para 1994, em Lisboa ou em Bona, que aborda numa perspectiva metafísica (idêntica à de “The Voyage” as viagens do navegador português Vasco da Gama.
Em “Orphée”, Philip Glass faz a adaptação operática do filme realizado por Jean Cocteau, em 1949. Finalmente, “Low”, uma sinfonia que recria temas instrumentais do disco homónimo de David Bowie, gravado em 1977, tem estreia prevista para o próximo mês e contará com as colaborações de próprio Bowie e de Brian Eno. A sinfonia sairá em disco com o selo Point Music, criado recentemente por Glass. Na calha estão já cinco novas óperas…
Philip Glass, aos 55 anos de idade, não tem pois mãos a medir. Ele é sem dúvida o compositor contemporâneo mais solicitado pelas instituições oficiais. A todas as encomendas, Glass responde com quilómetros de pauta e notas musicais fotocopiadas, de maneira a fazer render ao máximo a mina do minimalismo, termo que há muito deixou de fazer sentido e para o qual o próprio compositor admite estar-se nas tintas. “The Voyage”, por exemplo, pouco ou nada tem que ver com a atitude pioneira de quem, nos anos 60, ao lado de nomes como LaMonte Young, Steve Reich e Terry Riley, ousou lutar contra a ortodoxia que acorrentava a música contemporânea às regras do tempo linear.
Então, Glass era um revolucionário. Hoje, é um académico. As microdivisões tonais aprendidas com os mestres indianos deram lugar a outro género de números e divisões. “The Voyage”, talvez ainda influenciado pelo ritmo que levou Philip Glass a escrever música para os últimos Jogos Olímpicos de Barcelona, até bateu recordes – é a produção de ópera mais cara de sempre, com um orçamento inicial de 325 mil dólares, mas cujas despesas finais deverão rondar os dois milhões de dólares, derrubando a anterior marca, detida há longo tempo pelo conhecido Giuseppi Verdi, com “Aїda”, que, feitas as devidas equiparações e câmbio monetário, alcançou na época (em 1870) a marca notável de 225 mil dólares.

À descoberta do continente humano

“The Voyage” é uma grande ópera, na senda das não menos grandes “Einstein on the Beach”, “Satyagraha” e “Akhnaten”, já para não falar da sequência interminável de “Music in 12 parts”. Alguns dados adicionais sobre este trabalho: tem três horas e meia de duração e o “libretto” leva a assinatura de David Henry Hwang (autor dos textos do “music-hall” “Madame Butterfly” levado à cena na Brodway em 1988 e com quem Glass já trabalhara em “1000 Aeroplanes on the Roof”). Entre os intérpretes, contam-se Timothy Noble, Tatiana Troyanos e Douglas Perry. A cenografia, a cargo de Robert Israel, inclui adereços como uma colagem de um quadro de Van Gogh, uma pirâmide transparente, uma cabeça gigantesca da estátua da liberdade e um foguetão. Não se pode dizer que haja muitos pontos em comum com “O Barbeiro de Sevilha” ou a “Flauta Mágica”…
O argumento parece ser, à partida, interessante: a exploração dos meandros mentais do “homo sapiens”. Cristóvão Colombo serve de pretexto. E a América simboliza o continente desconhecido do inconsciente humano. A história começa com um prólogo narrado por um cientista preso a uma cadeira de rodas, numa alusão directa ao físico Stephen Hawking (também ele – considerado por muitos o “novo Einstein” – na praia?). Refira-se a propósito que Philip Glass esteve para escrever a partitura de um filme de Erroll Morris – na sequência do que já fizera antes em “The Thin Blue Line”, deste mesmo realizador – intitulado “A Brief History of Time”, baseado no livro com o mesmo título, escrito em 1988 por aquele astrofísico.
Tudo funciona para além das aparências e da História. O primeiro acto, passado nos primórdios da humanidade, decorre na Idade do Gelo e apresenta os extraterrestres como nossos progenitores, segundo a teoria dos deuses astronautas que vieram à Terra procriar. O que, diga-se de passagem, soa bastante menos comprometedor que descender dos macacos.
O terceiro e último acto transporta-nos ao ano 2092 e mostra esses mesmos extraterrestres a abandonarem pela calada o nosso planeta, aparentemente arrependidos do trabalhinho que arranjaram. Coisa mítica, como se vê. É o regresso à ficção científica de Philip Glass, que, numa ópera menos conhecida, já encenara a novela de Doris Lessing, “The Making of the Representative for Planet 8”. Entre Colombo, Vasco da Gama e os homenzinhos verdes, Philip Glass lá vai facturando à conta do vazio que se instalou no coração do século.

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Sex Pistols: Xeque Ao Reino (artigo de fundo)

Pop Rock

21 OUTUBRO 1992

“God save the queen: The fascist regime (…) There is no future, in England’s dreaming! No future for you, no future for you, no future for you!”

Sex Pistols, “God save the queen”

XEQUE AO REINO

Há quinze anos, durante as comemorações do “Jubileu”, a anarquia instalou-se no Reino Unido. A bordo do Queen Elizabeth, em pleno rio Tamisa, os Sex Pistols saudavam à sua maneira, com ódio e imprecações, a rainha. Num concerto que simbolizou o destino que já então marcava quantos ousaram rebelar-se: raiva e solidão. No passado sábado o projecto reviveu, com novo passeio previsto pelo rio, a coincidir com a reabertura do parlamento britânico.

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Junho, 1977. Uma Inglaterra à beira da histeria preparava-se para celebrar o “Jubileu” de comemoração dos 25 anos passados desde a subida ao trono da rainha Isabel. Os ingleses deixavam-se embalar no sonho depois do Império, não desistindo de deitar cartas na Europa, com um baralho à partida viciado. Junho, 1977, o movimento “punk” atingia o auge e os Sex Pistols, seus principais arautos, preparavam-se para detonar uma bomba, entre as massas hipnotizadas e o banho de “confettis”.
“God save the queen” era o grito de saudação prestes a irromper de milhões de gargantas sequiosas de uma imagem cor-de-rosa que fizesse esquecer o preto e branco da realidade presente. “God save the queen”, repetiam os Sex Pistols, na canção do mesmo nome que, nessa altura, ia tomando os “charts” de assalto. O poder e a imprensa oficial agitavam-se, ligeiramente incomodados. Quem eram estes violadores da ordem estabelecida? Anarquistas? Comunistas? Talvez até membros da National Front mais excitáveis?
Na revista “Noise”, Jacques Attali escrevia então: “Música é profecia. Os seus estilos e economia própria estão à frente do seu tempo porque exploram, muito mais rapidamente que a realidade material, a gama completa de possibilidades contidas num determinado código. A música torna audível o mundo novo, não só as aparências como os seus aspectos essenciais. Por esta razão os músicos são oficialmente considerados perigosos, agitadores e subversivos.” Os Sex Pistols não só eram tudo isto como até se propunham destruir o rock’n’roll. Pior que apelidar o governo de fascista e a rainha de “atrasada mental” – afinal os ingleses sempre foram, até certo ponto, tolerantes –, era alguém atrever-se a gritar que não havia um futuro. Para esta heresia não havia perdão.

Anarquia a bordo

A situação deteriorava-se a um ritmo acelerado. Para o dia 9 de Junho estava previsto um desfile da rainha pelo Tamisa. Malcolm McLaren e os Pistols antecipavam-se o seu para dois dias antes, a 7 de Junho. Uma fita presa à embarcação anunciava: “A rainha Isabel dá as boas-vindas aos Sex Pistols.” “Queen Elizabeth” era o nome do barco.
Segunda-feira, o dia fatídico, chegou finalmente. Sobre o convés do Queen Elizabeth, onde fora montado um palco de ocasião, os Sex Pistols estavam a postos para invectivar o reino de sua majestade e cuspir sobre o mundo a sua ira. Beckton, a Chelsea Bridge, Westminster, os pontos, ao longo do Tamisa, marcados nos roteiros turísticos, passavam a integrar a rota do ódio. A aparelhagem sonora parecia partilhar da tensão reinante e não parava de fazer “feedbacks” que a custo rompiam o “fog” londrino.
No momento em que o barco passava diante do edifício do Parlamento, explodiram as primeiras notas de “Anarchy in the UK”. John Lydon (então Johnny Rotten), Sid Vicious, Steve Jones e Paul Cook, apertados contra a assistência convidada, davam o concerto das suas vidas. “No feelings”, “Pretty vacant”, “I wanna be me”, hinos de uma geração frustrada e à beira do abismo, anunciavam o fim de qualquer coisa sem que se pudesse adivinhar uma saída. “No future! No future! No future!”
As lanchas da polícia estavam a caminho, prontas para abalroar, suprema ironia, o Queen Elizabeth. “No fun [o grito aprendido com os Stooges, de Iggy Pop], I’m alone, no fun! I’m alive! I’m alone! I’m alive!” – gritava Lydon, no meio dos poucos ingleses vivos, entre milhões de sonâmbulos que, tal como as abelhas, alimentavam a rainha. E por estarem vivos, estavam sós. Os “bobbies” subiram a bordo, procurando impedir que o concerto prosseguisse. Há quem tenha medo e procure regressar a terra. Mas há também quem permaneça até ao fim, levando o desafio até às últimas consequências. John Lydon não pára de berrar “no fun!” a plenos pulmões, apoiado pelo ritmo de Paul Cook. Há provocações mútuas. O ambiente é de caos e confusão total. Alguém grita para a polícia “you fucking fascist bastards”. Era o pretexto esperado para a carga da autoridade. São feitas prisões. A polícia espanca uma rapariga que aparentemente parece não sentir dor. O álcool ingerido serve de anestésico.

“Castiguem os ‘punks’!”

No dia seguinte os jornais apresentaram uma versão truncada dos acontecimentos da véspera, reduzindo-os à dimensão de ligeiros distúrbios provocados por “punks”. “God save the queen”, a canção, aumentava entretanto o seu número de vendas e chegava a número um dos tops no fim-de-semana em que as comemorações oficiais atingiam o auge. Era de mais para a indústria, uma extensão do poder, que respondeu falsificando os tops e colocando na frente das vendas um disco de Rod Stewart.
As vozes do poder repunham a coroa no lugar e lançavam a sua sentença de morte sobre os Pistols e o movimento “punk” em geral, chamando-lhes “doentes” e “sinistros” e acusando-os de “uma conspiração contra o modo de vida inglês”. O “Sunday Mirror” incitava na primeira página: “Castiguem os ‘punks’!”
Marcus Lipton, deputado trabalhista, não podia ser mais claro: “Se a música pop vai ser usada para destruir as nossas instituições, então terá de ser destruída primeiro.” A música pop não foi destruída, claro. Abraçaram-na e trouxeram-na de volta para o lado dos bons. Assim se instaurando um mundo melhor, sem violência nem confrontações – o admirável mundo novo.

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Talking Heads: Objectos Na Paisagem (artigo de opinião)

Pop Rock

7 OUTUBRO 1992

OBJECTOS NA PAISAGEM

Os Talking Heads acabaram. Vivam os Talking Heads. E sobretudo os discos, deixados para a posteridade como exemplos brilhantes de uma atitude e de um estilo que fizeram história. Os Talking Heads mostraram até onde a música pop pode ir, quando perde o medo e resolver experimentar novas formas e ideias. O lançamento simultâneo de duas colectâneas, “Once in a Lifetime – The Best of Talking Heads” e, em forma de antologia, o triplo álbum (CD e cassete duplos) “Sand in the Vaseline – Popular Favourites”, traz de volta à memória os melhores momentos da banda. E o bónus adicional de alguns inéditos.

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“Once in a Lifetime” é uma espécie de apresentação da antologia. Dez dos seus temas integram igualmente “Sand in the Vaseline”, incluindo um novo single, “Lifetime piling up”. A principal diferença está na presença de “Blind”, que aqui aparece numa versão ao vivo, enquanto na antologia figura a gravação de estúdio. O oposto acontece com “Life during wartime”, versão de estúdio na colectânea e ao vivo na antologia. “Slippery people”, também ao vivo, é a única canção que não consta de “Sand in the Vaseline”. Este tema, bem como “Blind”, apenas fazem parte do CD.
Quanto à antologia, cujos temas, alinhados por ordem cronológica, foram elaborados pelos próprios elementos da banda, David Byrne, Tina Weymouth, Chris Frantz e Jerry Harrison, apresenta os inéditos “Gangster of love” e “Popsicle”, além do referido single “Lifetime piling up”, um tema dos primórdios, “Sugar on my tongue”, e “Sax and violins”, canção incluída na banda sonora “Until the End of the World”.
A selecção mostra a preocupação de iluminar as várias facetas que fizeram estilo e o fascínio dos Talking Heads. Na primeira fase, a pop metálica do álbum de estreia, “77”, a psicose americana em ritmos maquinais de “More Songs about Buildings and Food”, a negritude e o minimalismo, formal e conceptual, de “Fear of Music”, o “funky” cósmico de “Remain in Light”, qualquer destes discos trazendo a assinatura de Brian Eno, na produção. Depois, consumada a assimilação desta diversidade de tendências, um álbum de transição, “Speaking in Tongues”, e o regresso à pop e às melodias deslizantes, de “Little Creatures”. “True Stories” transporta para os Talking Heads a religiosidade do “gospel”, a “country” e traços da magia de Nova Orleães. “Naked”, último álbum de originais, é a síntese triunfante, a cúpula do edifício que firmou na “new wave” os alicerces e teve na inquietação e constante procura de novas formas musicais (no estúdio, em África, no Brasil) que sempre caracterizaram David Byrne, as traves e paredes-mestras.

Fragmentos da América

Nova Iorque, a paranóia, as técnicas de “cut up” utilizadas pela primeira vez, ao nível das palavras, por Bryon Gisin, a América com todo o seu cortejo de bizarrias e personagens de anedota, confinadas a pequenas ou monstruosas esquizofrenias (uma América à beira da demência tornada em objecto deslumbrante no filme “True Stories”, realizado por David Byrne), as deformações (nos textos, nos vídeos, nas músicas), “ready mades” coloridos por histórias e episódios aparentemente sem sentido, o medo e a alegria disto tudo num caleidoscópio de emoções desencontradas passam pela obra dos Talking Heads, banda que, em paralelo com Laurie Anderson, foi dos grandes tradutores do lado oculto dos “States”.
Mas enquanto Laurie Anderson pinta o quadro em tons épicos, em telas monumentais que atingem a apoteose, no gigantesco manifesto que é a caixa de quatro álbuns, “United States”, os Talking Heads, muito por força da personalidade de Byrne, apresentam estilhaços, fragmentos de espelhos deformantes, notícias entrecortadas, uma visão fraccionada da realidade. Laurie e Byrne são ambos observadores. E conseguem ter uma visão aérea do território. Se a primeira capta a imagem completa, até ao céu, o segundo detém-se no pormenor, no pequeno objecto que se destaca na paisagem. Como acontece na descrição distanciada levada a cabo em “The big country”, do álbum “More Songs about Buildings and Food”. Pesquisadores de formas e princípios, procuraram novos ângulos de perspectiva. E novas formas de as dizer. Neste aspecto, os Talking Heads foram verdadeiramente cabeças falantes.
A lista completa de temas de “Sand in the Vaseline” é a seguinte: No primeiro compacto – “Sugar on my tongue”, “I want to live”, “I wish you wouldn’t say that”, “Psycho killer”, “Don’t worry about the government”, “No compassion”, “Warning sign”, “The big country”, “Take me to the river”, “Heaven”, “Memories can’t wait”, “I zimbra”, “Once in a lifetime”, “Crosseyed and painless”, “Burning down the house”, “Swamp”, “This must be the place (naive melody)”. No segundo – “Life during wartime – live”, “And she was”, “Stay up late”, “Road to nowhere”, “Wild wild life”, “Love for sale”, “City of dreams”, “Mr. Jones”, “Blind”, “(Nothing but) flowers”, “Sax and violins”, “Gangster of love”, “Lifetime piling up”, “Popsicle”.

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