Trans AM – The Surveillance (conj.)

27.03.1998
Pop Rock
Big Brother Is Watching You

Trans AM
The Surveillance (8)
City Slang, distri. Música Alternativa

LINK

Stars Of The Lid
Gravitional Pull vs. The Desire Of An Aquatic Life (7)
Kranky, distri. MVM

Ui
The 2-sided EP/The Sharpie (7)
Soul Static, distri. MVM

Uilab
Fires (8)
Duophonic, distri. MVM

De Chicago chega-nos mais um pacote de pós-rock ou “música intuitiva” ou seja lá qual for o rótulo que se lhe queira colar. Aos Trans AM deparava-se a árdua tarefa de ultrapassar o álbum do ano passado, “Surrender To The Night”, considerado quase unanimemente um marco do pós-rock e uma espécie de complemento de “Millions now living will never Die”, dos Tortoise, com quem os Trans AM têm mantido um paralelo curioso, mais que não seja pela quase coincidência dos “timings” editoriais. “Tortoise” e “Trans AM”, os respectivos álbuns de estreia, estavam bastante próximos entre si.
Eram monstros de metal estruturados segundo fórmulas rítmicas minimalistas em que o uso da electrónica dava ainda os primeiros passos. Com “Surrender to the Night” e “Millions now Living…”, as duas bandas disparavam para os territórios do puro experimentalismo, na altura em que atingia o auge o referencial germânico do “Krautrock”. Chegados, de novo quase em simultâneo, ao terceiro capítulo, os Tortoise e os Trans AM desencontraram-se em definitivo. Consumada a entrada dos primeiros na enfermaria ambiental. a par da recuperação do “easy listening” e do ensaio no jazz-rock lectrónico, verifica-se que os Trans AM caminharam no sentido inverso. “The Surveillance” é um álbum violento sobre o tema do controlo, da vigilância e da manipulação dos indivíduos pela tecnologia. Oito meses, num estúdio construído especialmente para o efeito, foi quanto demorou a fazer um disco que, ao contrário de “TNT”, dos Tortoise, apresenta sintomas de claustrofobia e destila suor por todos os poros. Sinónimo de esquizofrenia, “The Surveillance” alterna duas vertentes distintas, uma mais dura, marcada pelas guitarras e pela saturação tímbrica do primeiro álbum (com vénia aos This Heat, em “Extreme measures”), e outra totalmente electrónica, segundo a linha de montagem automatizada inaugurada pelos Kraftwerk, em faixas como “Access control” (uma variante rítmica de “The man machine”), “Prowler 97” e “Home Security” (com alguns dos timbres de cristal de “Computer World”). É um jogo de consola de “música perigosa”, como os próprios músicos a definem mas onde o extremo rigor da escrita acaba por minimizar os eventuais efeitos de risco.

Mantendo-se em flutuação numa “drone” sem fim pelo interior de um buraco negro, os Stars Of The Lid penetraram, contudo, numa zona mais povoada de microacontecimentos do que a aridez absoluta do anterior “The Ballasted Orchestra”. Com a diferença de que, ao contrário de “Ballasted”, em que a banda de Chicago levava ao extremo o prazer da monotonia, “Gravital Pull” deixa entrar alguma, pouca, claridade, em oscilações tímbricas que tornam a música mais ondulatória. Klaus Schulze, de “Mirage”, surge como referência num tema como “The better angels of our nation”. Um Jeff Greinke congelado na eternidade assombra “Cantus II; in memory of Warren Wiltzie, Jan69”, que parece sair directamente das entranhas de um cemitério. “Lactate’s moment” e “Be little with me” recordam, respectivamente, as ondas cirúrgicas de “Evening Star” e “No Pussyfooting”, de Fripp e Eno.
Os Stars Of The Lid são uma das bandas pós-rock mais bizarras, não só pela recusa obstinada em utilizarem o ritmo como pelo hermetismo dos seus conceitos. Mas já não estão sós na sua solidão obscura. Os Windy & Carl, com “Depths” e os Frontier aí estarão em breve com as suas propostas pessoais de “pós-ambient”.

Dos mais antigos representantes do movimento pós-rock com origem em Chicago, os Ui lançam em simultâneo dosi discos com características específicas, antes da ediçã próxima do novo de originais, intiutlado “Lifelike”: “The 2-Sided EP”, de 993, e “The Sharpie”, de 1996, agora reunidos num “digipak” de apresentação atraente que testemunha a pasagem do rock matemático e muito “RIO” (“Rock In Opposition”) do primeiro para a experimentação com os sintetizadores analógicos do segundo. Bastante mais interesante é a junção dos Ui com os Stereolab, denominada Uilab, que em “Fires” apresentam um núcleo central formado por quatro versões de “St. Elmo’s Fire”, uma composição de Brian Eno incluída no seu álbum de 1975, “Another Green World”, às quais se juntam um arranjo colectivo de “Impulse Rah”, de Sun Ra, e “Less Time”, da autoria dos Ui.
Cada uma das sucessivas versões de “St. Elmo’s Fire”, “Radio”, “Red corona”, “Spatio-Dynamic” e “Snow”, afasta-se progressivamente do original, com a voz de Laetitian Saedier a evoluir de um clone feminino de Eno, em “Radio”, para uma mutação electronicamente transformada em “Red Corona”. “Spatio-Dynamic” é “funky” à maneira dos Talking Heads, com o órgão torturado e o vibrafone dos Stereolab. Na última das versões, “Snow”, o tema torna-se irreconhecível numa mescla de sonoridades retorcidas ainda aqui mais próximas das contas feitas pelos Stereolab em “Emperor Tomato Ketchup” do que d amúsica descarnada dos Ui, antes de a voz de Laetitia repor os pontos nos is, ao decalcar as medidas exactas do original de Brian Eno, fechando-se o ciclo no mais puro “krautrock” dos Kraftwerk, de “Ralf and Florian”. Em “Impulse Rah!”, de Sun Ra, o macrocosmo “free” deste compositor é condensado num microcosmo de sintetizadores de borracha, rituais percussivos e um órgão em marcha hipnótica que abre caminho através das improvisações minimalistas dos sintetizadores. Os anos 70 (aos quais a edição de Abril da “Q” dedica um extenso “dossier”) cada vez mais a tocarem o final do século.

Ray Davies – The Storyteller

20.03.1998
Para Onde Foram Os Bons Velhos Tempos?
Ray Davies
The Storyteller (8)
EMI, distri. EMI-VC

LINK (Parte 1)
LINK (Parte 2)

Sobre quem foi o maior compositor de canções pop dos anos 60, que é o mesmo que dizer o maior compositor de canções pop de sempre, as opiniões dividem-se entre Paul McCartney, Brian Wilson e Ray Davies. A resposta ficará para sempre provavelmente por responder mas dos três, Ray Davies será aquele que terá lançado mais sementes nas gerações mais novas da pop inglesa, para quem o compositor e os eu grupo de sempre, os Kinks, representam uma fonte de inspiração quase sagrada. Entre os herdeiros mais visíveis da pop excêntrica de Davies contam-se os Blur, Pulp, boo Radleys, Sleeper e Divine Comedy, ou o menos mediático Martin Newell.
35 anos passados sobre a fundação dos Kinks com o seu irmão Dave, em 1963, Ray Davies acaba de lançar finalmente – espanto dos espantos – o seu primeiro álbum a solo, com o título, muito apropriado, de “Storyteller”. O contador de histórias. O presente registo é inseparável da autobiografia, intitulada “X-Ray” (Ray é raio, raio x, uma radiografia do autor…) publicada por Ray Davies em 1995. Na sua apresentação, durante uma sessão de autógrafos em que Davies lia excertos do livro, alguém lhe perguntou por que não intercalava a leitura com a apresentação de algumas das suas canções. a ideia ficou, sendo agora posta em prática num álbum com novas versões de clássicos dos Kinks registados ao vivo ao longo da recente digressão “20th Century Man / The Storyteller”, acopladas a dois inéditos de estúdio, “Storyteller”, a abrir o disco, e “London song”, a fechar.
“Storyteller” conta uma das histórias possíveis da vida e da carreira do autor de “Waterloo sunset”, a canção que melhor retrata a Londres dos anos 60 e um dos clássicos da discografia pop de todos os tempos e, agora, também o título de um novo livro de Ray Davies, já editado. Ao todo estão reunidos nesta espécie de manifesto espiritual de Ray 30 faixas que incluem vários diálogos e uma versão instrumental de “Set me free”.
Os dois originais têm importâncias diferentes. “Storyteller”, nas suas cores “country”, é uma introdução pouco mais que simpática. “London song”, em duas versões, uma ao vivo, mais doce, outra em estúdio, mais carregada de electricidade e de raiva e muito chegada ao discurso de Dylan, é outra coisa. Instantes de magia em que a força poética das palavras se junta ao génio criadorde melodias memoráveis.
O resto é uma viagem solitária que está longe de ser apenas nostálgica, apresentada em tom coloquial, por pérolas como “Victoria”, “tired of waiting” (com o público a cantar sozinho partes da canção), “Autumn Almanac”, “Set me free” e “You really gor me2. A veia satírica, desde sempre explorada por Ray Davies, continua bem acesa e acutilante, logo no primeiro e sarcástico monólogo “My name” ao qual se segue o violento “20th Century man”. A voz do “dandy”, que neste tema se estende até ao grito, e uma guitarra acústica, são armas suficientes para manterem Ray Davies bem enraizado neste século. De resto, os próprios Kinks nunca cessaram a sua actividade desde os tempos longínquos da sua formação, continuando a editar novos álbuns até aos dias de hoje.
O tom jazzístico, entre Tom Waits e a Broadway, explorado em obras mais recentes dos Kinks, aparece em “that old black magic”, “Art school babe” e “X-Ray”, este último ao nível do melhor do músico, enquanto melodista.
“The Storyteller” atravessa incólume três décadas de música popular. Ao contrário do seu arqui-rival, Paul McCartney, Ray Davies não envelheceu como autor, recuperando para os anos 90 a beleza mortífera de uma Inglaterra que, para utilizar as suas palavras, evoluiu do imperialismo das classes altas para o totalitarismo comunista, até estagnar na mediocridade pura. Ray Davies continua a perguntar: “Where have all the good times gone?”

Nota:
Discografia fundamental dos Kinks:
“Face to Face” (1966)
“Something Else” (1967)
“The Kinks are the Village Green Preservation Society” (1968)
“Arthur or the Decline and fall of the British Empire” (1969)
“The Kinks, Part 1: Lola versus Powerman and the Moneyground” (1970)
Reedições:
“The Kinks Box Set – Remastered” (1995)
“The Singles Collection” (1997)

Trio Patrick Bouffard – Rabaterie (conj.)

13.03.1998
World
Celtas, “Vikings” E Ciganos
A nova música de raiz francesa, representada pelo Trio Patrick Bouffard e por colectâneas de bardos celtas, navegantes “vikings” e ciganos dos Balcãs, constitui o roteiro da viagem desta semana.

A música de raiz tradicional francesa goza actualmente de uma vitalidade sem precedentes desde os anos 70, quando a sua evolução se processava a partir do eixo da Bretanha, personificado por Alan Stivell e, mais tarde, nas múltiplas ramificações derivadas do grande templo edificado pelos Malicorne. a esta posição de destaque no panorama da folk contemporânea não é alheia um profundo trabalho de base que passa pela existência de escolas (tanto d emúsicos como de construtores de instrumentos), de clubes e festivais, enfim de todo um circuito autónomo e firmemente implantado que permite o contínuo desenvolvimento tanto da música como das suas estruturas de produção e divulgação.
É neste contexto de extraordinária riqueza e multiplicidade que surge o Trio Patrick Bouffard, liderado por este excutante de sanfona, antigo elemento dos La Chavannée, e do qual fazem também parte Cyril Roche, no acordeão diatónico, e Benoît mager, na “cornemuse”. O modo como exploram o reportório tradicional assenta numa pesquisa aturada das fontes documentais, bem como numa não menos exemplar reactualização. Já houve, aliás, quem lhes chamasse os Spice Boys da folk.
“Rabaterie”, registado ao vivo (embora não se trate de um concerto) no Castelo de Chazeron, ao qual foram posteriormente adicionados em estúdio outros instrumentos, é um trabalho notável que sucede à não menos notável estreia do grupo, “Revenant de Paris…”, com a diferença de que tudo soa agora de forma mais vibrante e imediata. A presença de metais e de uma secção de trompas confere a alguns dos temas um ambiente de fanfarra céltica equivalente à música dos ingleses Brass Monkey. Em “Chavouisses” notam-se semelhanças com os Ad Vielle Que Pourra, fruto de uma idêntica combinação de timbres e de métricas rítmicas. A voz de Anne-Lise Foy, em contraste com a densidade instrumental, confere çeveza a temas como “Trois petites notes de musique” (em registo de “bal musette” vagamente alpino…), enquanto em “Un Jour à l’ombrage”, “Le fuseau volé/Barnabé”, “Quand sera-t-elle mariée” e “La demoiselle aux beaux yeux” ganham a mesma dimensão épica e, por vezes, sombria de grupos como os Mélusine, Maluzerne e La Bamboche. Um clássico. (Acousteack, distri. MC – Mundo da Canção, 9).

O mundo celta volta a ser agitado pela enésima compilação em cujo título figura a palavra “celtic”. Mas no caso de “Ancient Celtic Roots” não estamos perante mais uma mistificadora sopa new age e, muito menos, de um simples sampler de apresentação de um catálogo. É antes uma colecção de temas gravados por alguns dos músicos mais velhos da tradição céltica, muitos deles em registo de canto “a capella”, outros em solo absoluto de “uillean pipes” ou de rabeca, que estarão longe de constituir uma receita de digestão fácil para o vulgar consumidor de pacotes indiferenciados com o rórulo “celtic”.
Provenientes das tradições irlandesa e escocesa, com a intromisão de um tema da Bretanha, são exemplos que pretendem fazer a “ligação com as raízes bárdicas e instrumentais dos tempos antigos”. Aqui encontramos nomes míticos como Willie Clancy e Seamus Ennis (“uillean pipes”), Sarah Makem, Paddy Tunney, Joe Heaney (cantores irlandeses), Belle Stewart, Jeannie Robertson e Ian Manuel (cantores escoceses), entre outros, sendo o tom prevalecente de ausência quase absoluta de ornamentação e sofisticação quebrado, como que por encanto, pelos bretões Kentigern, cujo tema ostenta todas as redundâncias mas também toda a magia da nova música céltica. Outro grupo importante, embora pouco conhecido, dos anos 70, os The Clutha, representam, pelo contrário, as harmonias vocais no seu cambiante mais ortodoxo e próximo dos seminais The Watersons. Não se deixem iludir pela capa e pelo título, “Ancient Celtic Roots” exige esforço e dedicação. (Topic, distri. Megamúsica, 8).

Continuando as suas viagens pelo mundo, depois de “World out of Time”, dedicado a Madagáscar, os dois artesãos das novas músicas Henry Kaiser e David Lindley assinam o segundo volume de “The Sweet Sunny North”, com novas incursões pelo folclore da Noruega, interpretado por nomes totalmente desconhecidos entre nós. Um excelente contraponto – onde representantes da escola mais moderna alternam com linguagens mais étnicas – aos grupos contemporâneos, já bem representados no nosso país, da nova folk escandinava. Algumas revelações: os Triltunga e a sua música acetinada (?), ou os Farmers Market, apostados em mostrar que os Balcãs não ficam assim tão longe dos grandes gelos do Norte. Oitenta minutos de descoberta e prazer constantes. (Shanachie, distri. MC – Mundo da Canção, 8).

Mais um exemplar para complementar o grande painel do mundo que a World Network tem vindo a construir, “Wild Sounds from Transylvania, Wallachia & Moldavia” coresponde ao volume 41 da série, dedicado à Roménia. Trata-se, ainda aqui, de um documento importante, indispensável para o conhecimento daquelas regiões, em particular na vertente da música cigana. Entre uma série de nomes com pouca expressão no mercado internacional da world music, avulta o dos Taraf de Haidouks, os únicos que conseguiram, para já, ter outro tipo de penetração no Ocidente e aos quais, aqui, foi naturalmente concedida a maior fatia de tempo. Nomes a descobrir: Constantin Gherghina, Dumitru Farcas (na linha de Ivo Papasov), Taraf Hodac, Marioara Mut (voz tão, tão antiga como as próprias montanhas…), Lucretia Hort (quantas Mártas Sebestyens se esconderão nessas montanhas?…) e, para quem não dispensa os arrepios dos metais em velocidade supersónica, os Fanfare Ciocarlia, que se reivindicam os “mais rápidos de todos” e já contam com um álbum editado e distribuído em Portugal. (World Network, distri. Megamúsica, 8).