Aquivos por Autor: luisj

Helga Pogatschar – Mars Requiem (conj.)

03.04.1998
Tecno Na Idade Das Trevas
A Idade Média enfiada em samplers. Cromornas e sanfonas celebram núpcias com programações tecno. Já não há respeito pela cronologia, nem pela ordem natural das coisas. Na Europa surgem novos grupos e editoras com uma proposta de fusão da música antiga com a electrónica. Um movimento que de um só golpe anula 900 anos de História. Os góticos gostam. Mas há quem ainda resista.

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A editora alemã Gymnastic é uma das que lidera o actual movimento da Idade Média enfiada em samples, e lançou a proposta mais radical, um “Mars Requiem” composto, produzido e interpretado nos teclados por Helga Pogatschar. Nesta obra um “ensemble vocal” clássico, formado por uma soprano, duas meio-soprano, um tenor e um baixo, tem o apoio instrumental exclusivo da electrónica e de programações várias. Como se diz no livrete de apresentação, não é nem “música clássica de vanguarda” nem “pop experimental”, mas um bloco totalitário de impressões, imprecações e encantamentos que levam a noção clássica de “rondo” para uma zona difusa onde Fátima Miranda dança com Diamanda Galas, e um “Lied” e Verdi explode em polifonias barrocas.
O tema da guerra e da desagregação física e psíquica do mundo moderno exterioriza-se através de simbologias religiosas e políticas que Helga Pogatschar traduz, em termos musicais, em tenebrosas catedrais onde clamam as vozes dos mortos. Entre polifonias sobrenaturais (”Tractus”) e explosões violentas de música tecno-industrial, há ainda um factor adicional de perturbação, através da utilização de velhas gravações originais dos anos 30, contendo sessões de auto-hipnose para “relaxamento” elaboradas pelo nazi Oscar Shelach. Numa delas pode escutar-se: “Só tens direito a viver enquanto fores uma pessoa superior, caso contrário serás preguiçoso e doente e mereces morrer.” “mars Requiem” dá um novo sentido ao termo “belo-horrível”. Os adeptos do gótico adoptaram-no sem reservas. (Gymnastic, distri. Symbiose, 8).

Os QNTAL auto-intitulam-se uma banda de “tecno medieval”. “QNTAL”, álbum de estreia deste grupo, do qual foi já editado um segundo trabalho, não é tão em inovador como em teoria possa parecer. A fórmula não difere muito da utilizada pelos Enigma, tratando-se neste caso mais de uma mistura do que de uma síntese dos lugares-comuns da música da Idade Média, com programações tecno destinadas a fazer dançar. Com um pouco mais de substância os QNTAL poderiam passar pelos Hedningarna da música antiga. Curioso e, em última análise, massacrante (Gymnastic, distri. Symbiose, 6).

Bastante mais interessante é o novo álbum dos Vox, “X Chants””. Depois de “Diadema”, dedicado às canções da abadessa e mística da Idade Média, Hildegard von Bingen, e de “From Sapin to Spain”, um périplo pelas tradições árabes da cultura espanhola, “X Chants” explora as fontes musicais e espirituais dos cristãos do Oriente árabe, procedendo em simultâneo à transmigração para o presente de uma pretensa essência das músicas dessa época tão longínqua no tempo e, nesse processo, à descoberta de novas formas tecnológicas de produção musical adaptadas a uma forma de sensibilidade contemporânea.
Para os Vox é um passo arriscado. O grupo abandonou toda e qualquer instrumentação acústica, antiga ou não, servindo-se para a feitura desta missa unicamente da voz de Fadia El-Hage, das guitarras eléctricas de Wolfram Nestroy e dos samplers e sintetizadores de Vladimir Ivanoff, desde o início o mentor dos Vox. A aliança resulta sem atritos, tirando partido de uma produção espacial e sem insistir nunca na electricidade. Uma nova religiosidade para o novo milénio presente numa música que deveria servir de lição aos aprendizes de feiticeiro da new age (Erdenklang, distri. Megamúsica, 8).

Desconhecidos por cá, os Freiburger Spielleyt são outra formação alemã praticante de música antiga que revela uma visão diferente da dos grupos mais académicos. A verdade é que se assiste neste momento ao aparecimento de uma nova geração de músicos que alia a erudição e a formação clássica e uma atitude e sensibilidade diferentes perante este tipo de reportório. Em “O Fortuna” – sobre a temática da sorte e do azar na Idade Média, até ao séc. XIII, com especial incidência nos manuscritos da “Carmina Burana” – há uma frescura que ressalta sobretudo ao nível das concepções rítmicas e de liberdades de expressão como aquela que é tomada em “Tempus transit gelidum”, no qual a melodia principal é desenhada por um assobio. Recomenda-se a audição comparada de “O Fortuna” com a definitiva e não menos “herética” versão da “Carmina” pelos Clemencic Consort, na versão em CD triplo da Harmonia Mundi de 1990. De resto, os Freiburguer incluem na sua parafrenália instrumental os tradicionais alaúde, órgão portátil cromorna, harpa, flauta, sanfona medieval, “gemshorn”, etc., que utilizam da forma mais lúdica posível, pondo justamente em prática as noções associadas ao jogo que estão na base da feitura do álbum. Destaque, ao nível das vozes solistas, para a soprano Regina Kabis e para os dois convidados, o tenor Markus Schikora e o baixo Reinhard Mayr (Glasnost, distri. Symbiose, 9).

Finalmente, os Estampie, cuja data de formação remonta a 1985, em Munique, apresentam-se com “Ludus Danielis” e “Crusaders – In Nomine Domini”. O primeiro é um dos exemplares mais significativos dentro do género “ordo”, “ludus”, “versus” ou “historia”, que designava as primeiras tentativas de aliança da música ao teatro, ou seja, o formato operático, nos tempos do primeiro cristianismo. “Ludus Danielis” apresenta-se sob a forma de um drama litúrgico inspirado no Mistério de Daniel – o qual, por sua vez remonta aos mistérios celebrados na missa da Páscoa – estruturado como uma ópera em cinco actos.
Música de extraordinária densidade, tanto musical como emocional, revela os Estampie como uma formação paradoxal, já que um dos seus elementos, Micahel Popp, é também o líder dos QNTAL, além de pertencer ao grupo pop vanguardista Deine Lakaien. O que verdadeiramente espanta nos Estampie é a forma como na sua música coincidem a autenticidade e a perversidade. É que os Estampie utilizam exclusivamente instrumentos acústicos da época mas fazem-no de tal modo que a música soa, não raras vezes, como se fosse electrónica. O “organistrum”, sanfona gigante antepassada dos modelos posteriores, ícone musical, visual e ideológico do grupo, dir-se-ia uma gárgula medieval, máquina orgânica produtora de sons mutantes que – e aqui reside o paradoxo – tocam de perto algumas das correntes de música contemporânea. Numa escala mais ampla, não se está longe da visão místico-teológico-cosmológica de um visonário como Valentin Clsatrier, escutando um tema como “Vocale mathematicos”.
“Crusaders”, editado posteriormente, reforça ainda mais esta ilusão ao ponto de poder ocasionalmente soar algo artificial. Faixas como “Seigneurs – Sachiez” e “Maugréz tous sainz” transcendem e redimem a “tecno medieval” dos QNTAL com a sua batida, rigorosamente elaborada em artefactos da época, mas que parece seguir à risca as normas do ritmo da música de dança electrónica dos dias de hoje. Imagine-se uma “estampie” medieval dançada numa catedral gótica que, por artes mágicas, se tivesse transformado numa imensa discoteca. a estética da capa é tipicamente “gótica”, mas no sentido actual e decaído do termo. A música dos Estampie anula o poder discriminatório da História. Tanto pode ser encarada como a música medieval dos tempos modernos como a música “electrónica” da Idade Média. Em todo o caso, música do Apocalipse. (Christophorus, distri. Symbiose, 10 e 8).

Page & Plant – Walking Into Clarksdale

03.04.1998
The Song Remains The Same
Page & Plant
Walking Into Clarksdale (7)
Fontana, distri. Polygram

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“When the world was young”, segundo tema de “Walking Into Clarksdale”, é um momento de pura nostalgia que evoca uma época, o final dos anos 60, que Jimmy Page e Robert Plant recordam como a mais criativa do rock. É toda uma construção em suspensão que se inicia em tons acústicos de “folk rock” psicadélico para logo disparar num galope de “hard rock” que nos atira direitinho para álbuns como “Led Zeppelin III” e “houses of the Holy”. Por mais que os dois músicos se queiram demarcar da lendária banda à qual pertenceram – e não é líquido que o queiram… -, pertencia-lhes a quota maior de responsabilidade na sonoridade dos Led Zeppelin e isso reflecte-se nas composições. É óbvio que a voz de Robert Plant não atinge já o mesmo falsete nos limites dos agudos que conseguia no grupo, mas a sua expressividade e estilo inconfundíveis não se perderam. A guitarra de Page, essa não envelheceu um segundo, continuando tão acutilante, e agora mais do que nunca receptiva a linguagens musicais mais suaves, co o em “Blue Train”, “house of Love” ou “Heart in your hand”, plena das reverberações típicas da “surf music” de Dick Dale com os Ventures. Descontando a inclusão, nalguns temas, de um veludo orquestral digno dos Moody Blues, o tom de exotismo está presente na etnotecno, em versão arabizante, de “Most High” – o tal tema com a presença de um dos músicos dos Transglobal Underground, “mestre do teclado oriental”. “Burning Up”, “When I Was a Child” e “Sons of freddom”, os três últimos temas, estão mais saturados de electricidade e de memórias zeppelinianas, orgulhosamente de costas para as tendências musicais em voga. Jimmy Page e Robert Plant representam algo na história do rock, e é essa presença única que fazem questão de demonstrar que não está morta. Mudam-se os tempos, mas “the song remains the same”…

Trans AM – The Surveillance (conj.)

27.03.1998
Pop Rock
Big Brother Is Watching You

Trans AM
The Surveillance (8)
City Slang, distri. Música Alternativa

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Stars Of The Lid
Gravitional Pull vs. The Desire Of An Aquatic Life (7)
Kranky, distri. MVM

Ui
The 2-sided EP/The Sharpie (7)
Soul Static, distri. MVM

Uilab
Fires (8)
Duophonic, distri. MVM

De Chicago chega-nos mais um pacote de pós-rock ou “música intuitiva” ou seja lá qual for o rótulo que se lhe queira colar. Aos Trans AM deparava-se a árdua tarefa de ultrapassar o álbum do ano passado, “Surrender To The Night”, considerado quase unanimemente um marco do pós-rock e uma espécie de complemento de “Millions now living will never Die”, dos Tortoise, com quem os Trans AM têm mantido um paralelo curioso, mais que não seja pela quase coincidência dos “timings” editoriais. “Tortoise” e “Trans AM”, os respectivos álbuns de estreia, estavam bastante próximos entre si.
Eram monstros de metal estruturados segundo fórmulas rítmicas minimalistas em que o uso da electrónica dava ainda os primeiros passos. Com “Surrender to the Night” e “Millions now Living…”, as duas bandas disparavam para os territórios do puro experimentalismo, na altura em que atingia o auge o referencial germânico do “Krautrock”. Chegados, de novo quase em simultâneo, ao terceiro capítulo, os Tortoise e os Trans AM desencontraram-se em definitivo. Consumada a entrada dos primeiros na enfermaria ambiental. a par da recuperação do “easy listening” e do ensaio no jazz-rock lectrónico, verifica-se que os Trans AM caminharam no sentido inverso. “The Surveillance” é um álbum violento sobre o tema do controlo, da vigilância e da manipulação dos indivíduos pela tecnologia. Oito meses, num estúdio construído especialmente para o efeito, foi quanto demorou a fazer um disco que, ao contrário de “TNT”, dos Tortoise, apresenta sintomas de claustrofobia e destila suor por todos os poros. Sinónimo de esquizofrenia, “The Surveillance” alterna duas vertentes distintas, uma mais dura, marcada pelas guitarras e pela saturação tímbrica do primeiro álbum (com vénia aos This Heat, em “Extreme measures”), e outra totalmente electrónica, segundo a linha de montagem automatizada inaugurada pelos Kraftwerk, em faixas como “Access control” (uma variante rítmica de “The man machine”), “Prowler 97” e “Home Security” (com alguns dos timbres de cristal de “Computer World”). É um jogo de consola de “música perigosa”, como os próprios músicos a definem mas onde o extremo rigor da escrita acaba por minimizar os eventuais efeitos de risco.

Mantendo-se em flutuação numa “drone” sem fim pelo interior de um buraco negro, os Stars Of The Lid penetraram, contudo, numa zona mais povoada de microacontecimentos do que a aridez absoluta do anterior “The Ballasted Orchestra”. Com a diferença de que, ao contrário de “Ballasted”, em que a banda de Chicago levava ao extremo o prazer da monotonia, “Gravital Pull” deixa entrar alguma, pouca, claridade, em oscilações tímbricas que tornam a música mais ondulatória. Klaus Schulze, de “Mirage”, surge como referência num tema como “The better angels of our nation”. Um Jeff Greinke congelado na eternidade assombra “Cantus II; in memory of Warren Wiltzie, Jan69”, que parece sair directamente das entranhas de um cemitério. “Lactate’s moment” e “Be little with me” recordam, respectivamente, as ondas cirúrgicas de “Evening Star” e “No Pussyfooting”, de Fripp e Eno.
Os Stars Of The Lid são uma das bandas pós-rock mais bizarras, não só pela recusa obstinada em utilizarem o ritmo como pelo hermetismo dos seus conceitos. Mas já não estão sós na sua solidão obscura. Os Windy & Carl, com “Depths” e os Frontier aí estarão em breve com as suas propostas pessoais de “pós-ambient”.

Dos mais antigos representantes do movimento pós-rock com origem em Chicago, os Ui lançam em simultâneo dosi discos com características específicas, antes da ediçã próxima do novo de originais, intiutlado “Lifelike”: “The 2-Sided EP”, de 993, e “The Sharpie”, de 1996, agora reunidos num “digipak” de apresentação atraente que testemunha a pasagem do rock matemático e muito “RIO” (“Rock In Opposition”) do primeiro para a experimentação com os sintetizadores analógicos do segundo. Bastante mais interesante é a junção dos Ui com os Stereolab, denominada Uilab, que em “Fires” apresentam um núcleo central formado por quatro versões de “St. Elmo’s Fire”, uma composição de Brian Eno incluída no seu álbum de 1975, “Another Green World”, às quais se juntam um arranjo colectivo de “Impulse Rah”, de Sun Ra, e “Less Time”, da autoria dos Ui.
Cada uma das sucessivas versões de “St. Elmo’s Fire”, “Radio”, “Red corona”, “Spatio-Dynamic” e “Snow”, afasta-se progressivamente do original, com a voz de Laetitian Saedier a evoluir de um clone feminino de Eno, em “Radio”, para uma mutação electronicamente transformada em “Red Corona”. “Spatio-Dynamic” é “funky” à maneira dos Talking Heads, com o órgão torturado e o vibrafone dos Stereolab. Na última das versões, “Snow”, o tema torna-se irreconhecível numa mescla de sonoridades retorcidas ainda aqui mais próximas das contas feitas pelos Stereolab em “Emperor Tomato Ketchup” do que d amúsica descarnada dos Ui, antes de a voz de Laetitia repor os pontos nos is, ao decalcar as medidas exactas do original de Brian Eno, fechando-se o ciclo no mais puro “krautrock” dos Kraftwerk, de “Ralf and Florian”. Em “Impulse Rah!”, de Sun Ra, o macrocosmo “free” deste compositor é condensado num microcosmo de sintetizadores de borracha, rituais percussivos e um órgão em marcha hipnótica que abre caminho através das improvisações minimalistas dos sintetizadores. Os anos 70 (aos quais a edição de Abril da “Q” dedica um extenso “dossier”) cada vez mais a tocarem o final do século.