Pop Rock >> Quarta-Feira, 18.11.1992
LA VERA MUSICA
PAOLO CONTE
900
CD, CGD, distri. Warner Music
Quem, sem perder um estilo pessoal, consegue cruzar referências que abarcam um leque tão vasto como Frank Sinatra, Carla Bley, a orquestra de swing de Benny Goodman, Nino Rotta, os “novos” Bryan Ferry, Kevin Ayers e Tom Waits, os “blues”, o tango, a rumba e a xunga? Resposta: Paolo Conte, o único, inconfundível, decadente, magnífico Paolo Conte, “crooner” cuja alma vacila entre um pátio italiano, a Broadway, uma praia do Pacífico ao crepúsculo e todos os lugares “kitsch” da nossa imaginação.
“900” assinala o retorno em grande forma do velhote de voz profundamente etilizada que, em “Aguaplano”, se fora um pouco abaixo por culpa de excessivas cedências no capítulo dos arranjos, demasiado dependente dos sintetizadores, numa tentativa de “modernização” que acabou por não se revelar eficaz. Conte repensou a sua música, lembrou-se de feitos passados, em álbuns como “Appunti di Viaggio”, “Paris Milonga” ou “Un gelato al Limon” (cujas peças dispersas se juntam no duplo-colectânea “Il Primi Tempi” – obra, a todos os títulos, genial), voltou a pegar nos cordelinhos (letras, música, orquestração e direcção artística são da sua autoria) e a mergulhar de corpo e alma no seu universo de sonhos filtrados pelo álcool, de mulheres fugidias em ruelas suspeitas, de fumos e vícios, danças e guerras travadas entre lençóis. Paolo Conte canta em “900” melhor que nunca, do barítono esgotado à hora de fechar do cabaré, ao tom declamatório e às incursões desdramatizantes filtradas pelo “nariz” de um “kazoo”. Depois, as cordas, os naipes de metais (do sax ardente a uma tuba dolente) e o pianoforte imprevisível constroem o resto da cidade imaginária.
Por “900” passam a evocação das luzes de casino e da obscuridade dos bordéis. Paolo Conte viaja por uma Nova Iorque sublimada, por uma Itália voltada de costas para o neo-realismo, por nebulosas de contornos difusos, que os licores tornam infinitas. As composições de Paolo Conte mudam quando menos se espera, com a inconstância de mil visões que se entrechocam. Agora um choro do passado. Logo a seguir um riso distante, uma ironia. Uma anedota e uma tragédia, no curto instante de acender um cigarro. Uma garrafa sem fundo.
Orquestrações de “big band”, vagas de emoção soletradas a sangue e tinto no piano, sussurros, imprecações. Do burlesco ao mais dorido. Do fim do mundo ao fim de um quarto, onde outrora houve “toute la gloire e toute l’histoire… / ça reste dehors… / dans cette chambre / il y a seulement um ours / qui fait ron ron…”, assim mesmo, em francês, depois em inglês, em Paris, no Soho, sabe-se lá… Há aqui clássicos, temas que ficarão, quase todos, imortais. Ou voltando a ouvir uma e outra vez o álbum, todos mesmo. Mas um feitiço especial deixa marcas cá dentro, no lento, lentíssimo, magestoso e patético “I gardini pensili hanno fatto il loro tempo”. “900” só ouvido, só imaginado, só furiosamente guardado por quem sabe sentir e sente saber. Como dizer: é um segredo escuro e luminoso, posto à nossa disposição com a evidência de um espanto. Cantemos com Paolo Conte, à luz velada: “Jura que nunca renegarás o deus do tango / da ‘habanera’ e do fandango (…) jura-me que nunca passarás para outras danças / como se passa de um para outro quarto / vai… as pessoas que te aplaudem estão à espera… / vai…” (de “Schiava del Politeama”). Assim, “la vera musica”. (10)