Arquivo de etiquetas: Simone

Vários – “Recordar É Viver” (fado)

Pop Rock >> Quarta-Feira, 19.08.1992


RECORDAR É VIVER

Música ligeira. Artistas da rádio, do tempo em que se ouvia música pela telefonia e se lia na “Flama”, na “Plateia” ou no “Século Ilustrado” as últimas sobre o “affaire” amoroso de António Calvário com Madalena Iglésias…
Nacional-cançonetismo e piroseiras do mais requintado mau-gosto emparceiram com algumas lendas vivas do fado. Nostalgia. Ingredientes que finalmente se reúnem na totalidade de um lote de 23 CD com o genérico “O Melhor de…” que a Valentim de Carvalho passou a ter disponível no mercado nacional.
O fado apresenta a melhor música e algumas das suas glórias, de um passado lisboeta já distante no tempo: Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, António dos Santos, Hermínia Silva. O fado de Coimbra faz-se representar por Luiz Goes. O resto é um pouco a alegre confusão, segundo o critério unificador que consiste em reunir os nomes mais sonantes de um período temporal compreendido entre as décadas de 40 e 70: Simone, Max, Maria Teresa de Noronha, Lucília do Carmo, Tristão da Silva, Fernando Farinha, Eugénia Lima, Maria Clara, Alberto Ribeiro, Tony de Matos… o melhor de… os melhores, ao lado do pior… dos piores. Mas aqui vale, sobretudo, a imagem, na maior parte dos casos retocada pela imaginação, que para alguns significará conservar para a posteridade a saudade dos tempos que já lá vão e, para outros, um saudável exercício de diversão “kitsch”.
Muitos dos artistas da série “O Melhor de…” já morreram. Outros estão vivos, mas preferem deixar de si apenas o que deles recordamos dos anos dourados, casos de António dos Santos ou de Hermínia Silva. Os familiares de alguns deles prontificaram-se a conversar com o PÚBLICO sobre os mitos, maiores ou menores, que fizeram sonhar e suspirar os nossos pais. Histórias que hoje dão que sorrir e pensar. A vida, então, corria mais forte e devagar.

Simone – “Simone Actuou No Casino Do Estoril – ‘Tem Um Guardanapo Que Me Empreste?'” (concerto / casino do estoril))

Cultura >> Domingo, 12.07.1992


Simone Actuou No Casino Do Estoril
“Tem Um Guardanapo Que Me Empreste?”



SIM, É verdade: “Ter saudades é bom. A alma renasce, o corpo inquieta-se. O amanhã parece nunca mais chegar. É afinal o desejo feito de mil sentidos, apurados até à vertigem”, anunciava o anúncio do Casino, a propósito de mais uma vinda de Simone a Portugal. Estávamos cheios de saudades e sentimos nitidamente a alma renascer e o corpo todo numa inquietação, à beira da vertigem. E o amanhã que nunca mais chegava!… Simone, essa, chegou e triunfou.
No cardápio da noite de sexta-feira, por 12 mil escudos e traje recomendado – fato escuro -, a lista era a seguinte, por ordem de entrada: música ambiente, misto de fumados com molho de rábano, medaçhões de vaca Pompadour, torta de laranja com molho de baunilha, café, Simone, aplausos. Vinhos: garrafeira Estoril-Sol. Os doze contos da entrada não incluíam o “show” de maminhas de Mozart. Em termos de qualidade, Simone apenas terá sido ultrapassada pelos vinhos da garrafeira Estoril-Sol, vencendo facilmente a torta, os fumados e os medalhões.
Um sax muito “downtown”, estilo “Nova-Iorque fora de horas” serviu de cenário à entrada triunfal da cantora. Vestida, como sempre, de branco, com um longo vestido decotado que lhe dava um ar de sereia, Simone lançou-se de imediato na interpretação dramática de “Sou eu”, não fosse alguém confundi-la com a Gal ou a Betânia. Depois, até ao fim, foi só amor. Quarentona bem conservada, a cantora mostrou que continua em forma. Mantém uma aparência óptima e um razoável jogo de braços, exemplificado na largueza dos gestos e numa imitação de maestro em que fingiu dirigir os músicos da banda. O “potencial erótico” em que é exímia é que nem por isso esteve em grande evidência, limitando-se, neste campo, a limpar o suor do pescoço, voltada de costas para a assistência, e a sacudir várias vezes a farta cabeleira (as artistas brasileiras gostam todas de sacudir a farta cabeleira). Sensual, continua a voz. Com o “coração na graganta”, como dizem que tem, não admira.
Numa sequência de 17 canções, qual delas a mais romântica, distinguiram-se os diálogos da voz com a guitarra acústica de Luís Xapim, nas interpretações intimistas de “Eal e eu” e numa fabulosa “Jura secreta”. Ao nível poético, as letras recorreram aos jogos estruturalistas que a língua portuguesa autoriza, sobretudo se tiver sotaque brasileiro: “eu te amo”, “eu vou te amar”, “eu te amei”, na conjugação amorosa de todos os tempos possíveis do verbo.
A “overdose” de amor tinha entretanto instalado no salão “Preto e Prata” do Casino uma atmosfera de calor humano que, juntamente com a excitação, o fumo e a digestão dos fumados e medalhões, tornava o ar quase irrespirável. A certa altura acendeu-se numa das mesas uma estrelinha (antes só dois tímidos isqueiros tinham dado um ar da sua graça), simbolizando o brilho dos corações e a ternura imensa que nessa altura fluía já num imenso mar de amor por toda a sala. Foi belo, muito belo.
Depois, já no “encore”, com “Será” em miscelânea, tudo acabou em samba e carnaval – os corpos ergueram-se e dançaram em apoteose que culminou no êxtase colectivo e no ritual de agitar os guardanapos. Alguém que durante o jantar deve ter limpo a boca às mãos, implorava à mesa do lado, numa excitação: “Tem um guardanapo que me empreste?”