Arquivo mensal: Junho 2016

Artigo De Opinião: Calamus – “Barroco, Destino Do Fado”

POP ROCK

27 de Novembro de 1996

Barroco, destino do fado


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“Luz Destino” é um álbum de fusão surgido quase de surpresa no mercado português. Traz o selo norte-americano MA, especializado em projectos de fusão de vários tipos, como a nova música antiga do projecto Calamus. Para a sua realização juntaram-se, numa igreja de Lisboa, João Paulo, no cravo, Ricardo Rocha, na guitarra portuguesa, e Maria Ana Bobone – um dos novos talentos do fado descobertos por João Braga – na voz. Onde é que já se ouviu cantar o fado acompanhado por um cravo?
É João Paulo quem explica a gestação e concretização do projecto. “Nasceu de uma colaboração mais larga entre mim e o editor da MA, Todd Garfinkle. Entrei em contacto com ele, que gostou muito da minha música. Decidimos encetar uma colaboração e temos já mais alguns projectos, dos quais ‘Luz Destino’ acabou por ser o primeiro. Outro será com o meu quarteto de jazz, num novo disco que sairá em Janeiro do ano que vem. Entretanto, o Todd visitou-me, em Lisboa, e mostrei-lhe projectos e músicos que considerava interessantes. Um deles é o Ricardo Rocha, com o qual também tenho em mira outros projectos. O Todd ouviu-o e ficou interessado.”
Sobre a sonoridade e a fusão do fado com a música barroca de “Luz Destino”, João Paulo tem outra história para contar. “A editora nunca grava em estúdio, mas apenas em espaços que sejam acusticamente viáveis, isto é, sem intervenção de correcções técnicas, como igrejas ou salas de concerto, onde se possa fazer gravações ao vivo, mesmo sem público. O Todd não usa nem multipistas, nem sequer correcções de equalização. O som que ele capta é o som da sala onde gravou.” Sobre a igreja de Lisboa onde “Luz Destino” foi gravado, João Franco escusou-se a revelar o seu nome e localização, uma vez que assim lhe foi pedido pelas autoridades eclesiásticas.
Em termos estéticos, o ponto de partida foi a ideia, de João Paulo, de juntar o cravo e a guitarra portuguesa. “Uma ideia cujas possibilidades já ensaiara quando trabalhei com o Pedro Caldeira Cabral e que vai ao encontro de encontrar uma combinação de sonoridades que funcionasse neste tipo de gravações.” Todos os arranjos de música barroca de “Luz Destino” são da autoria de Ricardo Rocha. “Começou a escrevê-los duas semanas antes da gravação.”
A fase seguinte foi encontrar quem pudesse cantar os fados. A escolha, da responsabilidade de Ricardo Rocha, recaiu sobre Maria Ana Bobone, que foi apanhada completamente desprevenida. “Estava calmamente em casa quando o Ricardo Rocha me telefonou a perguntar se não queria ir, no próprio dia, gravar um disco. Como era numa igreja, era necessária uma afinação rigorosa e isso, pelo menos, eu tenho”, diz, com excessiva humildade, a jovem fadista. “Disse-me que era para gravar três músicas e eu respondi que estava muito bem. Quando lá cheguei é que o produtor me disse que, afinal, era para gravar mais oito.” Para Maria Ana Bobone ficou a satisfação desta experiência – que, provavelmente, dará os seus frutos na sua estreia em disco em nome próprio – e a curiosidade de ter cantado fado num contexto fora do habitual, embora não totalmente afastado dos interesses musicais da cantora. “Estou a ter uma formação de música clássica e achei interessante esta junção do fado com o cravo.” Interessante e “confortável”, já que para Maria Ana Bobone este instrumento “aconchega de outra maneira, uma pessoa sente-se bem acompanhada”.

Artigo de Opinião: Vai De Roda – “Vai De Roda Agita Ondas Galaico-Portugueseas”

POP ROCK

23 de Outubro de 1996

Vai de Roda agita ondas galaico-portuguesas

Viagem dentro de um búzio

Nova música portuguesa com raízes no mito. “Polas Ondas”, terceiro capítulo discográfico do projecto Vai de Roda, desfaz o derradeiro equívoco. A música tradicional transformou-se num sonho. As ligações mantêm-se, mas as vozes são novas. Tentúgal fez girar uma vez mais a roda da sanfona. E a música portuguesa ganhou um mar novinho em folha para navegar.


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Levou tempo e alma a fazer. Entre “Terreiro das Bruxas” e o marulho das ondas, Tentúgal matutou durante cinco anos numa música que, definitivamente, rompesse com conceitos artesanais de composição e produção. “Polas Ondas”, pela perfeição formal e pela respiração dos sons e palavras de que dá mostras, estabelece novos parâmetros de aferição para a música portuguesa. Só a solidez da gramática autoriza a pluralidade de leituras da obra total. Cada um fará com estas ondas o que bem entender: natação, “surf”, pesca, mergulho, escafandrismo, até simples higiene mental.
Antes das águas Tentúgal não esteve quieto. “Fiz música para cinema de animação, nomeadamente para filmes do Abi Feijó e do Pedro Serrazina e em geral para a produção musical da Filmógrafo. Participei igualmente, ao vivo, no 10º aniversário dos Luar na Lubre, com quem toquei ao vivo.” A animação maior estava para vir.
Em “Polas Ondas” repara-se em primeiro lugar na capa, uma rede de pesca. Fotografada por Abi Feijó. A cor intriga. “Por incrível que pareça, é uma rede mesmo vermelha. Da cor do sangue.” Do som, percebe-se ter sido pensado como um todo. “Há uma maior conceptualidade, o que lhe dá uma maior coerência, apesar de haver algumas aparentes contradições, ou distanciações, em termos plásticos, em alguns temas.” O álbum tem o selo Alba. Editora nova. “Teve que ser criada, porque, depois de cinco propostas que tivemos para gravar, nenhuma foi para a frente. Lá fora toda a gente fica admirada, editores e produtores, com o facto deste grupo, com o currículo e a projecção que tem, não ter uma editora. Estávamos fartos de discutir tostões e resolvemos andar para a frente com uma editora nossa.” Os amigos ajudaram: “Amigos que acreditaram nos Vai de Roda. Houve quem emprestasse o estúdio, quem emprestasse o trabalho de prensagem da capa…”
Hoje, os Vai de Roda estão mais do que nunca próximos da Galiza, “não só por questões geográficas como também pelo ambiente sonoro”. Uma cumplicidade que existe “talvez por uma grande relação com a malta do Norte”. Lança um desabafo: “Há gente na música portuguesa com quem, de certa forma, até me identifico plasticamente, mas com quem, depois, em termos humanos, não existe qualquer relação. Para mim, que vivo a arte intensamente, isso é importante. Lá em cima sinto muito mais pureza. Há uma postura que, inclusivamente, é a mesma que vi nos irlandeses, onde os músicos gostam de ouvir a música dos outros, algo extremamente humilde e enriquecedor para quem a pratica. Na Galiza são assim.”
No passado não faltou quem acusasse o grupo de pretensioso. “Já chamavam isso aos Vai de Roda de 83, um grupo pretensioso, ou um grupo sofisticado de música tradicional. Neste momento está mais que provado que é difícil arrumar o grupo em qualquer gaveta.” Os anos ensinaram a Tentúgal uma outra maneira de dar a conhecer a sua música. “Uma coisa fui aprendendo. Enquanto no primeiro disco dos Vai de Roda queria que todos se apercebessem do que eu tinha feito e pensado, compreendi que a obra de arte, se tiver qualidade, é apreendida por cada um de maneira diferente. Existem várias leituras, um processo tão enriquecedor que, inclusive, permite outras leituras que a nós, que as concebemos, nem sequer nos passavam pela cabeça. Uma constante dialéctica entre emissor e receptor.”
Quanto a ser ou não ainda um grupo de música tradicional, Tentúgal é peremptório: “Não somos um grupo de música tradicional. Gosto de música tradicional, como de música contemporânea e adoro música medieval. Sofro todas estas influências. Está lá o contemporâneo, o ortodoxo, por ter estudado no Conservatório, o popular, por ter aprendido instrumentos tradicionais com os próprios tocadores. Sempre rejeitei catalogações. Quando produzo arte, irrita-me que isso aconteça.” Música tradicional? “Vai-se imitar o quê? A voz ou a maneira de tocar das velhotas e dos velhotes das aldeias? O que é correcto é assimilar a tradição e cantá-la com a minha voz. Aprender a tocar um instrumento mas tocá-lo com as minhas mãos e com o meu espírito. É assim que se transmite a tradição, o tal acrescento de um ponto.”
Em termos formais, “Polas Ondas” exibe a tal sofisticação que, para alguns, pode ser motivo de crítica. Isso resulta, em parte, do “nível de entrosamento dos músicos”. E Tentúgal não se furta a fazer alguns reparos. “Uma coisa que me faz aflição, noutros grupos desta área, é o tratamento das dinâmicas. Vai-se do princípio até ao fim com uma mesma dinâmica. As únicas mudanças aparecem por se retirar ou juntar um instrumento, sem se lidar com os ‘pianos’, ‘pianissimos’, ‘crescendos’, ‘decrescendos’. O Vai de Roda teve a preocupação de trabalhar esse aspecto. “É preciso deixarmo-nos de alguns primarismos”, conclui.
Por onde navegamos, no fim de contas, quando navegamos “Polas Ondas”? “É uma viagem sem fim, volta-se sempre ao mesmo sem se voltar ao mesmo, até ao cabo do mundo, uma finisterra que cada um construirá, simbolicamente. Uma viagem, iniciática, dentro de um búzio.” O círculo desenrola-se, afinal, numa espiral.



Artigo de Opinião – Isabel Silvestre – “Cantar É Trabalhar Do Peito”

POP ROCK

23 de Outubro de 1996

Isabel Silvestre recria hino nacional na sua estreia a solo

“Cantar é trabalhar do peito”

Isabel Silvestre é “A Portuguesa”, título do seu primeiro álbum sem a companhia das vozes de Manhouce. Aí o hino da República transforma-se em tradição mais antiga e monárquica em que “as armas são outras”. Aí as canções de Rui Veloso, Variações, José Mário Branco e José Afonso, entre outros, ganham a elevação e a pureza de uma serra junto ao céu.


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“É um projecto já muito antigo, desde que gravámos o primeiro disco”, começa por dizer a Isabel Silvestre a propósito de “A Portuguesa”. “Simplesmente, na altura achei que não devia fazer isso, na medida em que o grupo estava a começar.” Havia que encontrar espaço fora do Grupo de Cantares de Manhouce, sem descurar certos cuidados. “A responsabilidade é uma coisa complicada. Sinto-me responsável pelo grupo da mesma maneira, só que, ao mesmo tempo, também mais liberta, tendo a certeza de que o grupo é capaz de não parar. Já anda com os seus próprios pés, mesmo sem mim.”
O processo que levou à gravação foi gradual, de maturação lenta. “O Mário Martins foi o primeiro que me abordou, ainda a meio do primeiro disco do grupo. Depois, por uma razão ou por outra, as coisas foram-se arrastando até que por fim acabámos por escolher as canções, eu, o João Gil, o dr. João Teixeira, o David Ferreira. Foi de todos esses encontros que o disco nasceu.” As diferenças entre cantar com o grupo de música tradicional e cantar a solo canções de outros, explica-as Isabel Silvestre como operações da sensibilidade. “Na popular, transmito a maneira de ser e de estar do povo. Neste disco, através do que canto traduzo aquilo que ela é capaz de me sensibilizar e dizer.” Exemplifica: “As músicas do Zeca Afonso identificam-se um pouco comigo, com a minha maneira de ser. Mas gosto de todos os outros, do Rui Veloso, que tem uma outra maneira de estar e de dizer. O tema que eu canto dele tem a ver, não só comigo própria, como com o meio em que vivo. O António Variações, acho-o uma maravilha, tinha letras e músicas lindíssimas. Era uma mensagem constante de carinho e de ternura, na cantiga onde ele fala com a mãe [“Deolinda de Jesus”]. Penso que encontramos lá a nossa própria mãe. Já tinha cantado outra canção dele, ‘Estou além’.”
Em estúdio, “foi voz por um lado e instrumentos por outro”. “Na brincadeira, quando se fez a ‘Pronúncia do Norte’, dizia ao Rui [Reininho] que estou habituada a cantar e a música a vir atrás de mim. Na música tradicional tem sido assim. O acompanhamento é muito simples, eu canto e os instrumentos acompanham-me. Tem sido assim desde menina. Ao passo que aqui é um pouco diferente. Gravou-se primeiro os instrumentos e depois a voz, à excepção de ‘A Portuguesa’, que foi ao vivo.”
Isabel Silvestre conta como surgiu a ideia de cantar o hino nacional. “Nas nossas andanças tem havido espectáculos que são páginas da nossa vida. Uma delas foi em Espanha, no dia 10 de Junho. Pediram-nos para cantar, a abrir, ‘A Portuguesa’, coisa que o grupo nunca tinha feito. No meu tempo de aluna, ainda pequenita, antes de começarmos o primeiro dia de aulas, a primeira coisa que se fazia era cantar o hino. Em Espanha, ficámos um bocado aflitas. Mas cantámos e tudo correu bem. Até aquela parte, ‘às armas, às armas’. Aí as armas foram outras, o sentimento bateu à porta de cada uma e, em vez de uma força exterior, essa força interiorizou-se, foi um bocado complicado…”
Cantar a tradição é, para Isabel Silvestre, tarefa sagrada, como cuidar de um filho ou pegar numa relíquia. “Alguém dizia que cantar é trabalhar do peito. Depois da letra, depois da música, há que dar sentimento a essas duas vertentes. Já andamos nisto há 20 anos. Já por uma vez ou outra quisemos, ou quiseram as pessoas que estavam encarregadas da parte musical e instrumental, dar uma volta às cantigas, no ‘Vozes da Terra’ e não só. Eu opus-me terminantemente, porque, se estamos na música tradicional, temos que dá-la com a sua autenticidade e verdade. Se estamos a cantaras cantigas de Manhouce, temos que ir às raízes e não sair delas, senão não estamos a fazer nada, estamos a desfazer. Para isso era melhor deixar estar tudo quietinho, não levantar o pó, ter cuidado de não riscar.”