30.01.2004
Os Outros Nirvana
A história de um equívoco que serviu para dar a conhecer uma das mais requintadas e ignoradas bandas da pop dos 60’s. Os primeiros álbuns estão aí. O mito começa a nascer.
É um dos equívocos mais divertidos da pop – a confusão que se instala sempre que um fã declara a grande banda que foram os Nirvana e outro, mais velho, concorda, com um sorriso largo no rosto, acrescentando que sim, que foram uma deliciosa banda psicadélica, responsável por magníficas canções açucaradas por cubos de LSD.
“Estás a gozar comigo!?”, urra o primeiro, considerando a tirada ofensiva para a memória do seu ídolo, Kurt Cobain. “De modo nenhum!”, insiste o segundo, alargando ainda mais o sorriso. Tal discussão termina com o segundo a explicar ao primeiro, num gesto magnânimo, a causa de tamanha discrepância, aplacando deste modo a estupefacção e, nalguns casos, a fúria do acérrimo defensor dos heróis do “grunge”.
Pois bem, caros leitores, as enciclopédias registam de facto duas bandas com o nome Nirvana, cada uma delas em acção num período distinto. Os Nirvana de “Nevermind” e do rock escavado como uma ferida não cicatrizada estão bem documentados. Não é deles, porém, mas dos outros que se começa a falar, um pouco por todo o lado (discotecas lá fora, por exemplo, passam a sua música nas colunas e enchem com elas os escaparates e muitas revistas da especialidade incluem recensões aos discos nas respectivas páginas de reedições).
A perplexidade causada pela existência de dois Nirvana estendeu-se à própria banda de Seattle, ao tomar conhecimento dos seus homónimos de três décadas antes, e da consequente proibição legal em utilizar o nome. O “litígio” foi resolvido amigavelmente, com os Nirvana ingleses a abdicarem do uso exclusivo do nome. Melhor ainda: num gesto que aumentou ainda mais a confusão, os Nirvana originais gravaram uma versão do “single” “Lithium”, dos Nirvana modernos, arrumando-a, ao lado de inéditos de arquivo, na antologia de 1996, “Orange and Blue”.
O resultado não se fez esperar. Alguns comentários afixados no site da Amazon, de compradores “enganados”, são hilariantes. Um exemplo: “o meu primo ofereceu-me este disco no meu aniversário, sem se dar conta de que não são os mesmos Nirvana, os que fazem boa música!”. Outro: “Isto é mau! Realmente mau! Se gostam dos Nirvana de Seattle, não comprem este disco”. Menos preconceituoso, DJ Shadow samplou o tema “Love Suite” (de “To Markos III”) em “Stem”, incluído no seu álbum de estreia na Mo Wax, “Entroducing”.
Os Outros
Mas quem são estes “outros” que desencadeiam tanto o ódio como a admiração? Eram uma banda de pop psicadélica britânica que nos anos 60 gravou pérolas pop de sonho, como “Tiny goddess”, “Pentecost Hotel” e “Rainbow Chaser”, e três álbuns cuja música tem o poder de transformar os admiradores dos Nirvana dos 90’s em psicóticos enraivecidos: “The Story of Simon Simopath” (67), “All of us” (68) e “To Markos III” (70). Todos disponíveis nas lojas portuguesas, em novas versões remasterizadas e acrescidas de “bonus tracks”, substituindo as mais antigas da Edel dos dois primeiros, editados à época pela Island.
Patrick Campbell-Lyons e Alex Spyropoulos, um irlandês e um grego, formavam a dupla criativa dos Nirvana e desta aparente incompatibilidade de culturas terá resultado a originalidade da música – uma pop ornamentada por arranjos barrocos para melodias evanescentes. Não é um som típico, nem da pop nem do psicadelismo, mas um híbrido dos dois.
“The Story of Simon Simopath” é um dos mais antigos “concept albums” da pop britânica, a par de “S.F. Sorrow”, dos Pretty Things, e “Ogden’s Nut Gone Flake”, dos Small Faces. A história, inspirada na literatura de Ficção Científica, descreve as aventuras do dito Simon e a sua aprendizagem no espaço sideral (a história conta que no hospital psiquiátrico não lhe encontraram qualquer anomalia), o que, atendendo à contribuição do LSD na manufactura do álbum, terá sido fácil de conseguir.
As canções são fábulas às cores, pintadas com violoncelos, glockenspiel e “french horn”, e títulos como “Wings of love”, “Satellite jockey”, “In the courtyard of the stars” e “Pentecost hotel”, este último uma das melodias memoráveis que fazem de “The Story of Simon Simopath” um disco indispensável para quem gosta da pop psicadélica inlesa, na sua vertente mais angelical, cultivada por grupos como os Zombies, The Association e Kaleidoscope/Fairfield Parlour, ou da sua correspondente americana personificada pelos Millenium e Sagittarius. A nova reedição apresenta o mesmo alinhamento nas versões stereo e mono, mais quatro inéditos, incluindo um bizarro “Requiem to John Coltrane” em registo de “free pop”.
“All of us” é um manjar de melodias requintadas. “Rainbow chaser”, enfeitado com cravo e luxuriantes arranjos orquestrais, é um clássico do “acid rock” bucólica, ao nível do melhor que se fez em Inglaterra nos anos 60. “Tiny goddess”, outro exemplo da veia melódica da dupla Lyons/Spyropoulos, evoca tanto os Beatles, como os Beach Boys de “Pet Sounds” e os Bee Gees (não fujam já aos gritos) do período psicadélico dos quatro primeiros álbuns (“First”, “Horizontal”, “Idea” e “Odessa”). Bem, é verdade que o refrão de “Melanie blue” imita os Bee Gees naquilo que estes tinham de mais pindérico. Mas “Trapeze” – ao mais puro estilo dos Fairfield Parlour de “From Home to Home” – consegue falar de Camelot e de trapézios voadores sem cair no ridículo e a flauta de bisel e o violoncelo conferem a “The snow must go on” um ambiente de pop de câmara semelhante ao dos Fuchsia (outra banda obscura da folk-gótica-psicadélica inglesa). “Girl in the park” fulge como um cristal cuja melodia os Kinks não desdenhariam, “You can try” poderia trazer a assinatura de Brian Wilson e “St John’s wood affair” é Paul Mccartney a rodar num caleidoscópio, canção-camaleão onde cabe uma mão cheia de viagens de LSD. “The touchables”, por sua vez, é a canção-tema do filme com o mesmo nome realizado por Robert Freeman. E assim sucessivamente, cada canção com a capacidade de prender o ouvido através de um arranjo ou de uma volta especiais, quais mini-sinfonias cuidadosamente esculpidas mas que a cada momento ameaçam levantar voo e desaparecer.
Em comparação com “The Story of Simon Simopath” e “All of Us”, “To Markos III”, gravado quando o desentendimento entre Lyons e Spyropoulos já se fazia sentir muda para um tom que raia o patético em temas como “Aline cherie” e “Love suite”. O equilíbrio das vozes desfaz-se no exagero, caindo no “music hall” e em sugestões de “glam”, sobrando do delicado psicadelismo dos primeiros álbuns apenas “It happened two Sundays ago” e “Christopher Lucifer”.
Consumada a saída do grupo de Spyropoulos, Campbell-Lyosn faria sozinho a transição dos Nirvana para o rock progressivo, em “Local Anaesthetic”, álbum de 1971 composto por apenas dois longos temas (“Modus operandi” e “Home”) para a Vertigo, editora lendária do Progressivo da qual Lyons se tornou um dos principais produtores. Apesar de altamente coleccionável na edição original em vinilo (o CD saiu pela Repertoire) a música alterna boas “jams” progressivas com o horrível. A magia, essa desaparecera nas asas de Simão Simopath.
Nirvana
The Story of Simon Simopath
8/10
All of Us
9/10
To Markos III
6/10
Island, distri. Universal