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O Regresso Dos Clássicos – artigo

Pop Rock

5 JANEIRO 1994
O ANO EM MÚSICA POPROCK PORTUGUESA

O REGRESSO DOS CLÁSSICOS


1111

Em 1992 o ano passado passou a sê-lo menos, na música popular portuguesa. Obras fundamentais de décadas anteriores perderam a poeira, os riscos e a “patine”, para se apresentarem de cara lavada no formato digital. Os novos têm desde agora ao seu dispor compêndios onde podem dar de beber à inspiração. Claro que muito ficou por reeditar, mas o caminho parece estar traçado, sem hipótese de retorno.

Durante os primeiros seis meses foram reeditados em Portugal e em CD algumas obras fundamentais da música de Cabo Verde. Primeiro a rainha da morna, Cesária Évora, com “Destino de Belita”, o menos conseguido, “Mar Azul”, um dos discos mais belos de sempre da música lusófona, e “Miss Perfumado” que, só em França, já vendeu para cima de 50 mil exemplares. No mesmo mês chegou aos escaparates outro nome mítico da música das ilhas, António Vicente Lopes, ou Antoninho Travadinha, com “Travadinha – Le Violin du Cap Vert”.
Junho foi o mês da chegada de mais mornas, desta feita assinadas por B. Leza, na voz de Titina. Vitorino foi o primeiro português a merecer honras de reedição. “Leitaria Garrett”, o já clássico retrato de Lisboa do princípio do século, aí está de novo, liberto de ruídos e preconceitos. Já perto do final do ano, o cantor alentejano viria a reincidir, lançando uma colectânea que inclui as canções por si consideradas “as mais bonitas” da sua carreira. Enquanto isso o seu irmão Janita Salomé soltava o “cante” alentejano e outros ventos ainda mais a sul com “Melro”. Em Setembro Pedro Caldeira Cabral mostrou na guitarra portuguesa as suas fusões com a tradição e a música de câmara em “Pedro Caldeira Cabral” e “Duas Faces”. Em minidisc saíram entretanto “Fados de Coimbra”, Traz Outro Amigo Também” e “Cantigas do Maio”, de José Afonso.
Já em Dezembro chegou a vez das homenagens. Vicente da Câmara, José da Câmara e Nuno da Câmara Pereira evocaram os fados e a música de Maria Teresa de Noronha, falecida este ano, em “Tradição”. Homenagem a Maria Teresa de Noronha”. Na calha estão o disco de homenagem a José Afonso, que levará a assinatura da maior parte dos nomes mais conhecidos da nossa cena musical, e outro em que o homenageado será António Variações, com edição prevista já para este mês.
Quem não esperou pelo novo ano foram os Castro e Barius que em “Tributo” “assassinam” a música de José Afonso, Fausto e Vitorino. José Afonso que, se fosse vivo, teria gostado de ver as reedições em compacto que se fizeram de “Galinhas do Mato” e “Zeca Afonso no Coliseu”.
Com a “Pedra Filosofal” voltou a obra de Manuel Freire. Por cumprir fica a promessa de reedição em caixa da obra completa de Adriano Correia de Oliveira. Outras duas caixas de triplos CD’s, entretanto já lançadas, são: uma de declamação de poesia pelo grande João Villaret, outra com “O Melhor” da fadista castiça Hermínia Silva.
“Cavaquinho”, de Júlio Pereira, encetou entretanto a reedição dos primeiros trabalhos deste artista, na mesma altura em que a Banda do Casaco começava pelo fim, lançando as edições em compacto de “No Jardim da Celeste”, “Também Eu” e “Banda do Casaco com Ti Chitas”, deixando para a próxima os quatro álbuns que faltam. A canção ligeira do final dos anos 60 foi recordada através de “Os Primeiros Êxitos” de Carlos Mendes e Fernando Tordo, os mesmos de Falas Tu ou Falo Eu.
Finalmente, num ano que assistiu ao renascimento do rei do twist Vítor Mendes, não causou surpresa o reaparecimento e recuperação de bandas ié-ié dos 60 como os Sheiks e o Conjunto João Paulo. E porque não começar o novo ano a ouvir “A lenda de el-rei D. Sebastião” e “Balada para D. Inês”, duas canções que puseram o comboio em andamento, incluídas na colectânea “A lenda do Quarteto 1111”?

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Ana Da Silva: Menina Que Estás À Janela

01.10.2004

Néon

Ana da Silva

Menina Que Estás À Janela

Tudo partiu de um sonho e do desejo de fazer algo sozinha depois do fim das Raincoats. Ana da Silva sonhou que andava à deriva no mar, procurando tocar a luz de um farol. Chamou ao seu disco de estreia “Lighthouse”, que sairá em Novembro pela editora das Chicks On Speed.

Um farol brilha na escuridão. Em volta o mar agitado por ondas alterosas envolve-lhe o corpo, aproximando-a e afastando-a, num incessante movimento de fluxo e refluxo, da luz que brilha no cimo da torre de pedra. Ana da Silva, madeirense a viver em Londres e antigo elemento do grupo “indie” The Raincoats, teve este sonho e aproveitou-o para título e mote central do seu álbum de estreia a solo, “The Lighthouse”, a editar em Novembro na editora das Chicks on Speed.
“The Lighthouse” é a torre de orientação. Ana da Silva, ora com os olhos postos no mar ora fixos nos recantos do seu quarto interior, parece uma criança perdida, a correr à chuva atrás de um impossível brinquedo. A música, escrita, arranjada e executada pela própria, é assumidamente simples e introspectiva. O autocolante da capa chama-lhe “electric folk” mas é falso. O universo de faz de conta, a presença dos elementos naturais e uma forte dimensão imagética recordam ocasionalmente os mundos escondidos de Lisa Germano. Mas Ana da Silva não pretende mais do que retratar (ela pinta e faz fotografia como passatempo) estados de espírito provocados por coisas tão humanas como a amizade, o medo e a tentativa de encontrar um sentido para a existência.
O disco foi sendo feito aos poucos. As palavras foram-se juntando, depois vieram os sons, num beijo estreito. Extinto o grupo que tão rasgados elogios recebeu de Kurt Cobain, dos Nirvana (uma digressão conjunta chegou a estar marcada só que entretanto o poeta do “grunge” morreu), Ana da Silva não ficou parada: “Resolvi que havia de fazer qualquer coisa sozinha e comecei lentamente a pensar em como fazer, a escolher umas letras, a mexer um bocadinho na guitarra, até que encontrei uma aparelhagem electrónica que me permitiu fazer tudo eu própria, um pequeno sequenciador com teclado acoplado, uma maquineta Yamaha.” As músicas foram surgindo para acompanhar as letras. “Fui andando, trabalhando sempre, tive que aprender tudo o que tinha a ver com tecnologia MIDI, arranjei um gravador… Antes não percebia nada, fui aprendendo por mim própria…”
Por fim, chegou a um resultado definitivo, pegou na gravação e mostrou-a a Paul Smith, patrão da editora Blast First que já tinha editado um disco das Raincoats. “Para lhe pedir a opinião e conselhos, é uma pessoa muito conhecedora que gosta de coisas diferentes.” Ele gostou e mostrou-a por sua vez às Chicks on Speed, quando estas foram a Londres dar um concerto. A Chicks também gostaram de “The Lighthouse” e ficou decidido que o álbum sairia no selo delas. Pelo meio, um dos temas, “Modinha”, conta com a participação de Stuart Moxham, ex-Young Marble Giants. Um tema de António Carlos Jobim e o único cantado em português. “Esta canção foi feita antes do meu disco e faz parte do projecto de uma editora francesa com versões de músicas do Jobim. O Stuart telefonou-me a perguntar se eu queria cantar uma música do Jobim, eu disse que sim e escolhi esta, que não conhecia.”
Depois há a luz e as sombras que atravessam janelas, várias janelas. A janela de um hospital, diante da qual Ana da Silva passou um dia inteiro, numa visita à mãe internada, agarrada ao seu módulo electrónico – “é uma coisa pequena, com uma ficha para ligar à electricidade e levei uns auscultadores”, que deu origem ao instrumental “Hospital Window”. Ou as janelas sobre as asas do avião em que viajava para a Madeira e onde compôs “Two Windows over the wings”.
“As janelas separam o aqui do resto”, diz. O “aqui” é “The Lighthouse”, o lado de dentro, dos sonhos e das histórias, o “resto” pode ser a passagem do tempo e a observação das coisas. Ou as músicas que ao longo dos últimos anos foi ouvindo, “blues”, Chemical Brothers, Jim White, Miss Kittin. O farol, “uma janela de luzes”, o tal sonho. “Eu estava na água e queria chegar ao farol mas ficava ali, para a frente e para trás, sem o alcançar.” A capa, uma foto tirada por Ana numa praia em Sunderland, ao pé de Newcastle, mostra uma onda. “Estava no cais, quando vinha uma onda havia outra que a empurrava para trás, nunca chegavam a bater, senão tinha morrido” (risos) – “gosto do mar”. E gosta que a sua música crie imagens nas pessoas que a ouvem. “sou uma pessoa bastante visual, sou capaz de estar a ver um filme e estar interessada mais no que estou a ver do que na história. Gosto de olhar para as coisas, de tirar fotografias, de pintar.”
“The Lighthouse” é um disco melancólico mas Ana da Silva recusou a autobiografia explícita. “Senti-me um pouco como uma criança perdida”. “Calhou”, explica, “escrever nos momentos de maior melancolia, quando se está sozinho com os próprios pensamento”. Mas esclarece de seguida: “Mas não sou depressiva! O que eu sempre quis fazer com as minhas músicas é que, apesar de terem melancolia e mostrarem a solidão, apresentam sempre uma nota positiva. Muitas das canções acabam no fim por mostrar uma certa esperança.”

Escrever Cuidadosamente Palavras
Cada canção de “The Lighthouse” traz consigo um pequeno filme, um fragmento de viagem ou de memórias. “Friend” fala da “amizade e da separação, geográfica, ou quando uma das pessoas morre”. “Running in the rain” é um bocado mais complicada, escrita na terceira pessoa. “Às vezes escrevo na primeira pessoa mas nestes casos prefiro que não se saiba, não sou eu que estou a pensar isso, são canções não é uma autobiografia. Esta tem mais pedacinhos, é sobre uma mulher que continua a correr, apesar da chuva, À procura de alguma coisa…” E Ana da Silva, anda à procura de quê? “não sei, ando sempre a tentar descobrir coisas novas.” E como a inspiração vem quando menos se espera, Ana nunca se separa de uma caneta mesmo que esta, na maior parte das vezes, sirva para concretizar gestos tão comezinhos como o “preenchimento de um cheque” ou “apontar um número de telefone”. Em casa escreve e apaga e escreve outra vez cuidadosamente cada palavra, com um lápis e uma borracha.
O fascínio da imagem torna-se ainda mais evidente em “In awe of a painting”. “Vi um filme sobre o pintor Jean-Michel Basquiat, de quem gosto imenso, passa-se em Nova Iorque e senti-me como se estivesse dentro de um filem. Há uma cena que me marcou, onde alguém sente as lágrimas virem aos olhos apenas pela visão de um quadro. Essa capacidade de se ser tocado por uma pintura achei extremamente interessante. ‘In awe’ significa esse estado de espírito entre o espanto e o êxtase.”
“Disco ball” é o aproveitamento de um equívoco. “Há um disco da Madonna em que ela canta ‘I feel I just been born’. Mas a primeira vez em que ouvi essa canção percebi ‘I feel like a disco ball’, percebi mal. Gostei imenso deste novo verso e como ela não o tinha escrito achei que o podia utilizar. O problema estava em escrever o quê sobre alguém que se sente como uma bola de discoteca. A resposta é que ela reflecte o que está em volta. Há coisas que nos fazem brilhar e coisas que nos quebram.” A terminar “Climbing wall” fala do amadurecimento, do que sentimos à medida que a vida vai passando. “Amadurecemos, mas há sempre em nós uma parte, a tal criança perdida. Quando somos novos achamos que as pessoas são o aspecto que têm. Se têm cabelos brancos são velhos, se não têm são novos, as pessoas de meia-idade são outra coisa. Não é assim. Há pouca coisa que muda dentro de nós, aprendemos algumas coisas, ficamos mais ou menos tolerantes. Eu fiquei mais tolerante, entendo que as pessoas são todas diferentes. Somos aquilo que somos por dentro e é difícil fugir a isso. Temos que procurar limar as nossas arestas mais agudas.”

Nick Cave – Nocturnos do Velho Nick

20.02.2004 (tem foto – NickCave2.jpg)

Nocturnos Do Velho Nick

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Não há perdão para os nossos pecados. Deus é o “croupier” de um casino onde se joga a salvação. Quando o navio vai ao fundo os primeiros a abandoná-lo são os ratos. O capitão do navio é um rato. Salve-se quem puder do naufrágio e rezem-se as últimas orações aos santinhos que restam. Nick Cave, que actua por duas noites no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a 24 e 25, já rezou tudo o que tinha a rezar mas está por saber se a sua alma ficou da cor de um lençol ou suja como antes, nos tempos dos Birthday Party e da fase perigosa dos Bad Seeds.
Há quem lhe chame cínico e o ache gasto. Ele está simplesmente mais velho e, provavelmente, farto de pregar no deserto. O seu último álbum, “Nocturama”, tem extremado as opiniões. Nada de novo na capela, viciou-se nos Evangelhos, bradam uns. Está mais depurado e – olhem lá – tão furioso como nunca, garantem outros, agitando a bandeira do último e arrasador tema, “Babe, I´m on Fire”, 15 minutos de incêndio que reduzem o mundo a cinzas.
A verdade, a existir alguma, está, como quase sempre acontece, no meio termo. “From Her To Eternity” leva o seu tempo e o cantor australiano avançou pelo caminho das pedras. Como Diamanda Galas, Cave é um prisioneiro da culpa, que sublima através de uma arte apocalíptica e de uma religiosidade com os contornos da vingança.
O rock não chega para expiar os pecados mas serve para martirizar. Cave e Galas recusam ser mártires e, como tal, optaram por infligir aos outros o martírio – a praga, a peste, a paixão (“Babe, I’m on fire” é a sua mais recente e universalista ferroada) que, de entre as doenças da alma, é mais letal. Por isso recuaram ambos à matriz do “blues” e do “gospel2, só que em vez da auréola dos santos deixaram crescer chifres na cabeça e exalam um hálito a enxofre. O “bom filho” não o é, certamente, de Deus. “And the Ass Saw the Angel”? É bem possível, pois Lúcifer tem esse estatuto.
Musicalmente, Nick Cave roda, sem dúvida, em torno de sonoridades e obsessões que não são novos na sua obra. A entrada de Blixa Bargeld, dos Einstürzende Neubauten, para os Bad Seeds significou o reforço do esqueleto e da musculatura do grupo mas mesmo essa terapia parace já não surtir efeito sobre um “rocker” que, aparentemente, em definitivo deixou de o ser. Porém, a poesia e o terço de “Nocturama” continuam a deixar marca. O hábito pode provocar sintomas semelhantes aos da morfina.
Ou será que “Babe, I´m on Fire” é o primeiro passo do eterno retorno? Nesta litania cujo objectivo é idêntico ao dos Neubauten, isto é, a demolição sistemática das casas (“Home is in my head”, cantava alguém e Cave chamou ao seu primeiro DVD, recentemente editado, “God is in the House”…) que sustentam e abrigam os medos de cada um de nós, e a incineração dos crucifixos na pira da loucura.
Um ex-seminarista, Ernest D. Gengnbach, escreveu, no auge do período do Surrealismo, uma obra intitulada “A Experiência Demoníaca”. Salvou-se ou não, no final, leiam o livro. Nick Cave anda por aí, a desviar-se ou, vá lá saber-se, a dar comida à mão aos seres nocturnos. O branco da capa de “Nocturama” é o da noite.

Nick Cave
LISBOA | grande Auditório do Centro Cultural de Belém
Pç. Império. Dias 24 e 25, às 21h30.
Tel.: 213612444.
Bilhetes entre €50 e €30