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Rabih Abou-Khalil – “Arabian Waltz”

POP ROCK

30 de Outubro de 1996
world

Pesca nova

RABIH ABOU-KHALIL
Arabian Waltz (8)
Enja, distri. Dargil


rak

Como um palimpsesto (manuscrito em pergaminho que os copistas da Idade Média raspavam para sobre ele escreverem outros textos), “Arabian Waltz” é uma construção com vários andares, um livro com várias histórias sobrepostas, uma música cavada em várias músicas. A audição mais imediata dá a perceber o incrível virtuosismo dos executantes: Abou-Khalil, no alaúde árabe; Michel Godard, na tuba e serpentão; Nabil Khaiat, nas percussões de caixa; o quarteto dirigido por Alexander Balanescu, nas cordas.
A escrita acompanha a complexidade de execução, no limite das possibilidades físicas do instrumentista, pondo em prática o conceito de Thelonius Monk, de uma escrita, forma, ideal, independente da capacidade, ou incapacidade, do intérprete em executá-la. Um segundo nível revela a capacidade de diálogo entre os vários músicos envolvidos, sendo, neste aspecto, crucial o processo de intervenção do quarteto de cordas, que funciona como contraponto rítmico e harmónico às improvisações estruturadas dos três solistas, ao invés de ser um embelezamento artificial que servisse de caução a um “classicismo” que a música do alaudista líbio de todo dispensa. É, contudo, possível que a presença do Balanescu Quartet desperte alguns remoques. Alguém poderá mesmo fazer notar uma maior rigidez de construção e menor de liberdade de movimentos, em comparação com os álbuns anteriores. Esses deverão permanecer abraçados ao fabuloso “Tarab”… Ao longo da obra de Abou-Khalil, é visível um percurso que parte da música tradicional, em “Nafas”, para chegar a uma síntese única da escrita ocidental e do “jazz” com o conceito de improvisação (“taqasin”) árabe, na série – luxuosamente embalada a ouro e prata – da Enja, de que fazem parte “Al-Jadida”, “Blue Camel”, “Tarab”, “The Sultan’s Picnic” e esta “Arabian Waltz”. O resultado desta evolução é que a música da Khalil se transformou numa “nova tradição”, sem precedentes. Dois temas do novo álbum, “Dreams of a dying city” e “Ornette never sleeps” ganharam mesmo o estatuto de “standards”, aos quais o seu autor conferiu, em “Arabian Waltz”, uma nova leitura. Mas é em “No Visa” que a música do libanês rompe com as regras que ele própria inventou, fazendo ver a luz de uma vastidão desértica, onde dançam os espíritos enlaçados de Miles Davis, Don Cherry e Jon Hassell. Uma música que parece não ser “tocada” mas “pescada do ar”, como dizia Eric Dolphy. Rabih Abou-Khalil actua depois de amanhã no São Luiz, em Lisboa.



Abdu Dagir – “Malik At-Taqasin” + Elie Achkar – “Moyen Orient – Chants du Qanun” + Marc Loopuyt – “Les Orients du Luth” + Rabih Abou-Khalil – “Tarab”

Pop Rock

3 NOVEMBRO 1993
WORLD

SULTÕES DO “TAQASIN”

A propósito da hipotética visita do líder da Organização de Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat, a Portugal, aproveitamos fazer uma chamada de atenção para a música árabe – clássica, tradicional e de fusão – e para alguns dos seus discos disponíveis no mercado nacional com distribuição Dargil. Aqui ficam eventuais entradas para o reino mágico das mil e uma noites.

ABDU DAGIR
Malik At-Taqasin

Enja


AD

O título significa “o rei do Taqasin”, isto é, da “improvisação instrumental” – a própria essência da música árabe. Abdu Dagir é um violinista egípcio e autodidacta, hoje com 56 anos, que teve de fugir do pai (batia-lhe, queria que o filho fosse advogado…) para poder dedicar-se à sua paixão.
Fiel à tradição musical do vale do Nilo, Abdu Dagir recusou sempre o registo fonográfico da sua música, com o pretexto de que tal acarretaria perder a sua alma. “Malik At-taqasin”, gravado ao vivo na Holanda – com tosses pelo meio e palmas no final – constitui assim uma excepção.
A música é quente e cheia, resultante da combinação violino/violoncelo e da própria afinação do violino, numa escala abaixo do habitual, ao modo “tabaqa”, típica do “rabab”, parente étnico do violino.
A flauta “nay”, as percussões “mazhar”, “riqq” e “bendir”, bem como o “ud” (alaúde árabe), completam o leque instrumental, com a curiosidade de uma composição de Roman Bunka (ex-guitarrista da banda alemã Embryo), “Quarter tone bycicle”, onde ele explora, de acordo com as regras dos “blues”, as possibilidades oferecidas pelas escalas tonais árabes “maqamat” (que, tal como as indianas, transcendem a dicotomia modo maior/menos da música ocidental), escavando tão fundo quanto possível nos intervalos de quarto de tom.
Repare-se que quanto menores forem os intervalos entre duas notas, mais complexa e fluida se torna a música, permitindo ainda uma maior liberdade nas modulações. O que em parte explica a sensualidade (líquida, serpentiforme, sinuosa, intuitiva – atributos da feminilidade) que se desprende da música árabe em geral. (7)

torrent



ELIE ACHKAR
Moyen Orient – Chants du Qanun

Buda


EA

A música árabe, como quem não quer a coisa, vai tomando de assalto os castelos da Europa. E desta vez não há D. Afonso Henriques nem cruzados que lhe valham. Ainda bem. Entremos pois sem preconceitos no jardim das delícias. Ao som do “qanun” ou cítara árabe, afinal uma variante de saltério com a caixa de ressonância em pele.
Em “Chants du qanun” o compositor libanês Elie Achkar apresenta uma antologia dos vários estilos característicos da música árabe erudita, inspirado, como não podia deixar de ser, nas virtualidades concedidas pelos intervalos microtonais das escalas “maqam”. Além do “qanum” podem ouvir-se nesta obra os sons da “kawala” (flauta), do “kaman” (violino), do “reqq” (tambor), da “darbouka” (equivalente da “tabla” indiana) e do já nosso conhecido “ud” (alaúde árabe).
A tónica é dada aos aspectos ritualísticos e iniciáticos da arte musical árabe. Aspecto que, importa salientar, preside ao acto de improvisação no seu sentido mais elevado. Pois que improvisar é actualizar (pôr em acto, enformar) o que está latente e oculto, passar do silêncio à fala, da potência à existência, unir o alto ao baixo.
Através da “taqasin”, palavra árabe que nomeia a improvisação, pretende-se o diaólogo entre o músico e os auditores, o músico e o instrumento, o músico e a música. Para, partindo dos três elementos básicos – melodia, ritmo e harmonia –, se criarem novas tríades e estímulos. Os gregos chamavam “taxis” a este processo. Apanhemos o de Elie Achkar, que está livre. (7)

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MARC LOOPUYT
Les Orients du Luth

Buda


ml

Com Marc Loopuyt chega-se perto do “ud”, do qual Marc Loopuyt usa três variedades: o “kwîtra” marroquino, um modelo arménio do princípio deste século, e outro, mais actual, de fabrico suíço. Acompanham-nos as percussões de Adel Shams El Din: “darbouka”, “daff”, “tbilât” e “riq” (que é diferente de “reqq”…).
Os “Orients” – os quatro pontos cardeais recortados em forma de rosa-dos-ventos sobre a caixa de ressonância (ver foto) – apontam a música da região do Magrebe, mas também da Arábia Saudita e da Turquia. O caminho norteado pela “taqasin”, em redes milimétricas de micro-universos em movimento de colisão. Batalhas interiores cujos ecos se deixam escutar numa noite cheia de estrelas e silêncio. Entre a cal e a areia. Entre um olhar e outro olhar. No espaço que nos ficou por fechar ao sul. Onde nos espera uma moira encantada. (8)



RABIH ABOU-KHALIL
Tarab

Enja


rak

Depois do glorioso “Nafas”, editado na ECM, o mágico do alaúde árabe regressa com novas viagens pelas Arábias e o futuro na palma das mãos. Porque na obra de Rabih Abou-Khalil a tradição não é baú de velharias, mas antes o “hall” de entrada para um mundo onde o Norte, o Sul, o Oeste, e o Este se reúnem e confrontam no florescer de novas formas musicais.
Elementos das culturas tradicionais semita, bizantino-helenística, cristã, persa, visigótica e berbere, contribuíram ao longo dos séculos para o desenvolvimento dos que se convencionou chamar “música árabe”.
Na guerra “santa” que só na música deixou de ser travada entre Ocidente e Oriente, perderam-se as oportunidades para a criação de um mundo novo reunificado. Muito por culpa da estúpida “razão” de que, do lado do sol poente, tanto nos orgulhamos. Foi Hector Berlioz quem afirmou um dia que, “musicalmente, os chineses e os indianos ainda estão nas profundezas da barbárie, perdidos numa inocência quase infantil. Ao que os orientais chamam música chamamos nós miados. Para eles o hediondo é o maravilhoso”. Não é difícil imaginar o que tão distinto compositor chamaria à “música dos mouros”…
Felizmente que músicos como Rabih Abou-Khalil vão aos poucos abolindo fronteiras e destruindo preconceitos. Para ele, tão próximo do passado como do futuro (já tocou com os Kronos Quartet), a música, sem qualquer adjectivo, é um processo sempre inacabado.
“Tarab”, o “arrebatamento da alma”, recupera as vozes dos ancestrais “ud”, “nay” e percussões várias, para as projectar num discurso actual e actuante, em que se percebe finalmente a pouca distância que existe entre o “taqasin” e a improvisação jazzística.
De uma riqueza rítmica imensa, elaborada pelas percussões de Nabil Khaiat e Ramesh Shotham, e o contrabaixo de Glen Moore (dos Oregon), no limite da conflagração cósmica, “Tarab” revela ter um cérebro e um coração. “Chakras” principais de um corpo total que começa numa lamentação gutural no deserto (“Bushman in the desert”) e acaba a voar na centrifugação vertiginosa do “ud”, em “Arabian waltz”. (9)

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