PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 18 JULHO 1990 >> Videodiscos >>Pop
OS DEUSES PODEM ESPERAR
JERRY HARRISON: CASUAL GODS WALK ON WATER
LP, MC e CD: Fontana, distri. Polygram
O maior problema com que se defrontam grande parte dos músicos que integram grupos conhecidos é como mostrar ao mundo, e em separado, as suas capacidades individuais. São génios aprisionados nas respetivas bandas. O pior é que as tentativas solitárias quase sempre fracassam. Ou seja, as partes raramente valem tanto como o todo. Exceção feita àquelas que funcionam como cérebro, centro nevrálgico das atividades do coletivo. É o caso dos Talking Heads, cuja cabeça principal é incontestavelmente a de David Byrne. Os seus discos a solo impõem-se como objetos autónomos, qualitativamente à altura dos melhores da banda. Tina Weymouth diverte-se de vez em quando no seu Tom Tom Club. Chris Frantz deixa-se ficar quietinho no seu canto. Só o teclista Jerry Harrison tem outras ambições. Fundou os seus próprios “Casual Gods”, à espera de milagres. Depois de uma promissora estreia com o álbum do mesmo nome, insistiu, agora pretendendo mesmo caminhar sobre as águas. Em relação ao disco estreia, “Walk on Water” aponta para pistas que, se por um lado são reveladoras da capacidade de Harrison em recriar o som e a temática Talking Heads, por outro lado não conseguem ocultar que o músico está, para já, preso a esses parâmetros. Todo o segundo lado do disco funciona como se fosse um novo dos Talking Heads, ao nível dos arranjos, da complexidade rítmica e até, por vezes, como em “I don’t Mind”, das próprias inflexões vocais de Harrison, em tudo semelhantes às de Byrne. Em contrapartida, nos temas mais afastados da veia T.H., torna-se notória a indefinição estética. Mesmo assim, quando contraposto ao seu antecessor, o novo “Walk on Water” fica a ganhar; no alargamento do leque de referências e num maior apuro instrumental. Para o efeito convocou-se um lote precioso de músicos de estúdio, em que pontificam Chris Spedding e Adrian Belew, dois guitarristas de créditos firmados e o teclista Bernie Worrell. Acrescente-se um punhado de boas canções e estão reunidos os ingredientes para a feitura de um álbum pelo menos razoável que, se não faz esquecer os Talking Heads dos grandes momentos, também não os envergonha. O começo não podia ser pior: “Flying Under Radar”, o inevitável tema de abertura dirigido aos tops, uma mixórdia rock com todos os truques de produção necessários para o impor ao consumo das massas. Passado o equívoco inicial a música vai aos poucos entrando nos eixos. Depois de “Cowboy’s got to go”, que dir-se-ia roubado aos Dire Straits, Jerry Harrison perde o medo, aventurando-se por caminhos desconhecidos, sem nunca perder, no entanto, o fio condutor. “I don’t Mind” tem a cadência balanceada das boas baladas de Byrne. “Sleep Angel” levanta voo nas asas do dito. Em temas como “Kick Start” ou “Confess”, há uma aproximação nítida ao “drive” swingado, característico dos “The The”, que chega ao ponto da própria voz de Harrison se parecer com a de Matt Johnson. “Never let it Sleep” é a típica canção de contornos vagamente “country”, habitual nos Talking Heads.
Harrison, nota-se a cada espira, não é amador nem principiante. Sabe compor boas canções e arranjá-las a preceito. Não terá o génio de Byrne, mas nem só de genialidade se fazem os bons discos. “Walk on Water” deixará satisfeitos os incondicionais fãs dos Heads, agradando certamente a todos aqueles que de rock apenas exigem que seja, pelo menos, agradável. Que não se peçam, pois, a estes “deuses casuais”, grandes milagres.