Lo Jai – “Acrobates Et Musiciens”

pop rock >> quarta-feira >> 21.04.1993
WORLD


HOSANA PELA OCCITÂNIA

LO JAI
Acrobates Et Musiciens
CD Shanachie, distri. MC – Mundo da Canção



Há uma angústia inerente ao acto de escrever sobre discos como este, que provocam no crítico o entusiasmo das obras de excepção. O receio de não conseguir transmitir essa emoção. Porque existe o prazer de partilhar, o prazer de saber que outros se deliciam com a audição.
“Acrobates et Musiciens”, título e reprodução da capa em citação à obra do mesmo nome de Fernad Leger, segue-se a “Musiques Traditionnelles du Limousin” e antecede um álbum novo prestes a editar. Segundo parece, vai ser preciso esperar até meados de Maio pela chegada de nova remessa, já que a primeira esgotou de imediato.
Os Lo Jai incluem-se na categoria de grupos que conseguem extrair a quintessência da música tradicional. Com a força das raízes, a depuração e enriquecimento das melodias, a tradução e o dizer actualizado de uma vivência mítica do mundo, a capacidade de fazer vibrar cada célula do nosso corpo em consonância com o sagrado. Recapitulemos um ano até agora farto de milagres: Noirín Ní Riain e os monges de Glenstal trouxeram o céu para a terra. Os Hedningarna (há um atraso na chegada da encomenda que começa a exasperar) mostram a Escandinávia em delírio, Molloy, Keane e O’Flym são a Irlanda, ponto final. “Acrobates et Musiciens” é algo mais: um som e uma atitude que levam a música de raiz tradicional francesa (neste caso do Limousin, zona integrante da antiga região onde se falava a língua de Oc, daí o nome de Occotânia, que se estende ao longo da faixa sul de França, abrangendo ainda a Gasconha, Provença, Auvergne e Languedoque) aos mais altos cumes a que esta alguma vez subiu. Suspensos na nuvem do lado estão os Perlinpinpin Folc e os Verd e Blu. Nas mesmas altitudes rarefeitas encontram-se também os Mont-Jóia, provençais de boa memória.
Originários do resto do hexágono, são dignos de figurar no panteão os Malicorne (até “Le Bestiaire”) e o grupo de referência, chamemos-lhe assim, Mélusine, de Jean-François Dutertre (impulsionador de um notável projecto ligado ao clube “Le Bourdon”: “Le Galant Noy’e – Ballades et Chansons Traditionnelles Françaises”), de que conhecemos as obras-primas “Voulez-vous que je vous disse…” e o estelar “La treizième heure”.
Eric Montbel, tocador de “cornemuse” (gaita-de-foles, em francês), que antes já havia colaborado com outro gaiteiro de excepção, Jean Blanchard (La Bamboche) no álbum “Cornemuses” e pertencido, com outros membros da banda, aos Le Grand Rouge, é o orientador estético dos Lo Jai. O grupo, além do Limousin, integra no seu reportório temas das zonas de Auvergne, Borgonha, Pirinéus e Gasconha. Os três músicos que compõem a formação são Guy Bertrand (voz, flautas, tambor com cordas, saxofone soprano), Pierre Imbert (sanfonas, percussão, “kalimba”) e Christian Oller (acordeão diatónico, violinos, percussão). Eric Montbel, além de gaita-de-foles, canta e toca teclados e “tin whistle”. A ele se deve ainda a criação, em 1979, da Association des Musiciens Routiniers, da revista “Modal” e uma série de recolhas etnográficas. Mais: Eric Montbel é um grande compositor.
Comecemos por esta última faceta, entre um estendal de prodígios e piruetas com que estes acrobatas da música nos conduzem à bem-aventurança. Grilos, o piar das vaes nocturnas e pingos de piano eléctrico servem de pano de fundo aos sortilégios de uma sanfona enfeitiçada, em “Deux nuits au palais Ideal”, instrumental composto por Montbel que sintetiza na perfeição a estética do grupo: uma combinação feliz de arranjos imbuídos do estilo e da sofisticação da música da Renascença com um som que apenas se pode definir como mágico. “Noels de Limoges” apresenta o diálogo entre as vibrações vítreas de uma “kalimba” e o uníssono sax soprano/gaita-de-foles, com posterior entrada de um órgão que deve ser o mesmo que põe em sintonia as constelações do firmamento. Uma das melodias é decalcada dos sinos da Igreja de Notre-Dame de La Platée, em Castres. A flauta e o acordeão operam prodígios em “Angels/Satins blancs”, escrito por Montbel durante uma digressão dos Lo Jai, entre Los Angeles e São Francisco, imbuído, segundo o autor, do espírito californiano. Eric Montbel, mago de sonhos e imagens. “Borjon, Susato” rege-se pelos cânones da música antiga, em dois “branles de village” extraídos dos documentos “Orchésographie”, de Toinot Arbeu, 1558, e o célebre “Terpsichore” compilado por Michael Pretorius em 1812.
Como se não bastasse, há ainda a presença da voz deslumbrante da cantora convidada, a asturiana Equidad Bares, numa “La Madeleine” de antologia e no tema final “Brava gente de la maion” a concluir “Une nuit de premier Mai”, sobre o ritual pascal de celebração da fertilidade dos homens e da natureza, em que rapazes e raparigas buscam pelos campos ovos escondidos, enquanto vão entoando canções. Seguimos na sua companhia, levados pelos sons da água de regatos murmurantes, de risos juvenis, de sanfonas em louvor ao magistério da Primavera, até à entrada do cântico da mulher-rainha, símbolo do útero da Terra e das forças geradoras do universo, personificada, numa prodigiosa interpretação, por Equidad Bares.
Quem quiser, procure-a entre a escuridão, na faixa “Litania de los sonidos negros”, incluída na colectânea “Chapitre 2”, da Revolum. Ou no seu álbum a solo, “Seule”, gravado na mesma editora. Percam-se neste país de maravilhas como eu me perdi. (10)

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