pop rock >> quarta-feira, 17.03.1993
WORLD
DANÇA DO FOGO
MAT MOLLOY, SEAN KEANE, LIAM O’ FLYNN
The Fire Aflame
CD Claddagh, distri. VGM
O ano editorial promete. “Vox de Nube”, já levou muitos ao céu. “Acrobates et Musiciens”, dos Lo Jai, de Eric Montbel (nos anos 70 ajudou a lapidar uma das jóias da Hexagone, os Le Grand Rouge), apresenta em glória a música da região do Limousin, da Idade Média à Renascença. Há um álbum novo a rebentar. Vindos do frio, os suecos Hedningarna (“Kaksi!”) são apontados como verdadeiros renovadores da música tradicional europeia. Mas por agora concentremo-nos, ainda e sempre, na Irlanda. Confira, por favor, o nome dos músicos, “le crème de la crème”, “Irish coffee” da melhor qualidade: Matt Molloy, é “apenas” o melhor flautista irlandês da actualidade. Dá a ideia que não necessita de respirar, tal a técnica que possui. Passou pela santíssima trindade Planxty / Bothy Band / Chieftains, fazendo parte actualmente desta última banda. O seu bar, em Westport, foi palco da desbunda gravada para a Real World, “Musica t Matt Molloy’s”. Sean Keáne é, desde há anos (melhor dizendo, décadas…), violinista dos Chieftains, depois de integrar as fileiras dos lendários Ceoltóiri Chualann, de Séan Ó Riada. Quem o quiser ouvir meis em particular procure-o no seu álbum a solo “Jig it in Style”. Acreditem que não é só nas jigas que ele tem estilo. Até Ali Farka Toure, imagine-se, o convidou para tocar consigo, em “The River”. Liam O’ Flynn, por seu lado, é um dos mestres actuais das “uillean pipes”. Fez igualmente parte dos Planxty. Habitual solista nas obras orquestrais de Shaun Davey (“The Brendan Voyage”, “The Pilgrim”, “Granuaile”), discípulo dos grandes Leo Rowsome, Wille Clancy e Séamus Ennis, trabalhou com John Cage e a companhia de dança de Merce Cunningham. Arty McGlynn, claro, tinha de estar presente. É o guitarrista dos guitarristas, rei e senhor na arte do contraponto. Felizes dos que o viram e ouviram ao vivo com os De Danann, no Intercéltico do ano passado. Noel Martin, membro da Belfast Baroque Consort, no violoncelo e teclados (aparece em “Lament” – ver crítica nesta página), e Noreen O’ Donoghue, debutante nos Oisin e actualmente nos Bakerswell, em harpa e teclados, completam o lote de participantes. Apenas resta entregarmo-nos às delícias da audição. Os músicos disparam em classe pura até ao coração da Irlanda. Jigs, reels, airs e hornpipes encontram aqui a sua expressão mais elevada. Não é apenas o virtuosismo, nem sequer a energia contagiante desta música que progressivamente se infiltra nos veios invisíveis do mundo, que impressiona. “The Fire Aflame”, como o título deixa entender, é um acto de amor. A síntese de vários talentos individuais acesos numa chama única, capaz de nos conduzir ao centro do sonho, à Irlanda do mito que, rezam as lendas, continua a orradiar de Tir Nan Aog. Não vale a pena racionalizar. Quer queiramos quer não, há uma parte de nós que habita do lado de lá do nevoeiro. No único tema não instrumental, Brian Keenan lê um poema da sua autoria, “Night Fishing”, em cujas letras é possível vislumbrar o lado lunar, espelhado nas águas do inconsciente, desta Ilha unida por um elo secreto a Portugal… Outras histórias… Mas se não quisermos mergulhar nessas águas que tudo religam (e afogam, se o navegante não souber a arte…) e ardermos no fogo que tudo anima, consome e transforma (na Irlanda, acendiam-se e ainda se acendem, no princípio de Maio, os fogos de Beltane, em louvor de Belenos – o Apolo dos celtas – e da terra renascida), resta sempre a dança. Dança do fogo. Que também se aplica às jóias. O diamante lapidado com perfeição decompõe a luz branca nos sete raios coloridos. Assim, de um diamante melhor ou pior lapidado se diz que tem mais ou menos fogo. Matt Molloy, Sean Kean e Liam O’ Flynn são joalheiros exemplares. Mais não posso explicar. (10)