Amália Rodrigues – “De Um Lado, Espadas, Do Outro, O Mar” (artigo)

Pop Rock >> Quarta-Feira, 04.11.1992


“DE UM LADO, ESPADAS, DO OUTRO, O MAR”

“Amália Rodrigues Live in New York City” é o primeiro vídeo longa duração de um concerto ao vivo por um artista português. Registado na noite de 2 de Novembro de 1990, no Town Hall, uma das salas míticas da Broadway. Os norte-americanos vibraram com a voz da diva do fado. Presos num anelo de cumplicidade. Apesar do medo que sempre a invade nestas ocasiões. Fatal como o destino.



Cantar o fado é, para Amália, cantar-se a si própria. Ela ouve-se enquanto canta. E sai de si para se colocar no lugar dos que a ouvem – “Sinto que quando gosto de me ouvir cantar, quando me emociono, as pessoas sentem do mesmo modo. Gostyo de sentir que as pessoas gostaram daquilo de que eu gostei. É um prazer muito grande. Depois são aquelas palmas. Fico durante horas numa euforia.” Prazer que a impele a cantar, sempre, até à descoberta final. Esse, um dos segredos. O desdobramento, a capacidade de se emocionar dentro e fora do corpo.
Uma lucidez que Amália diz estar na ess~encia do fado. Mas pode ser alegria. E pode ser tragédia. Não se foge ao destino. Amália não pode deixar de cantar – “Hoje em dia, cantar é a razão de ser da minha vida. Deixar de cantar é uma morte. Quando chegar a altura vou morrer duas vezes. Ando a atrasar esse dia.”

“Gravaram Outras Coisas Em Cima”

Os Estados Unidos já por várias vezes fizeram parte do roteiro de Amália pelo mundo – “Nos primeiros anos de carreira actuei lá numa “boîte”, chamava-se La Vie En Rose. Depois fui ao Mokambo, em Hollywood, a convite do proprietário, com o Nat King Cole e a Eartha Kitt. Andei a cantar por pátios e pelo Lincoln Center, onde actuei com a Orquestra Filarmónica de Nova Iorque. No Hollywood Bowl fui acompanhada pela Filarmónica de Los Angeles. No Carnegie Hall, metia portugueses, estava lá o Carlos Cruz.”
Por fim, ficaram as imagens gravadas, num testemunho, talvez tardio, da sua arte: “Lembraram-se agora de fazer isto. Devia ter sido um bocadinho antes. O meu caso passou cá despercebido de toda a gente.” Custa a entender, mas Amália garante que muito material seu gravado para a Televisão Portuguesa desapareceu, pura e simplesmente: “Deram cabo de quase tudo. Gravaram outras coisas em cima… Não sei se de propósito ou se era mesmo assim, por não haver mais fita… O que é certo é que fiz programas formidáveis, como uma entrevista que dei no Frente a Frente, com o Mensurado, que desapareceram… Nunca pedi nada à Televisão, pedi agora uma cópia deste vídeo, que não tinha. Outra vez, pedi umas imagens para mandar à televisão italiana, excertos para publicidade minha. Não mas deram.”

Mensagem Em Inglês

“Live in New York City” inclui fados antigos, clássicos como “Maria Lisboa”, “Vou dar de beber à dor”, “Coimbra”, “Lisboa antiga”, “Com que voz”, “Lisboa não sejas francesa”, “Uma casa portuguesa” e o eterno “Povo que lavas no rio” ao lado de “Half as much”, “Fallaste corazon” e “Canzone per te”. “Nova Iorque é uma terra cheia de gente de outros países. Quando entrei em palco cumprimentei, disse obrigado em várias línguas, até em hebreu…”
Hje Amália pode dar-se ao luxo de cantar o que quiser. Mas nem sempre foi assim. “No início não podia cantar ‘Povo que lavas no rio’ – era um fado muito pesado, que as pessoas não percebiam, quase não tem música -, não me deixavam, chateavam-me. Quando o cantava não acontecia nada, só umas palmas… Queriam a ‘Lisboa antiga’, a ‘Mariquinhas’, essas coisas. Cantava marchas, folclore, canções epanholas.” Compreende-se a inclusão de um tema cantado em inglês, “Half as much”, de Curly Williams: “Cantei esse tema pela primeira vez na América quando tinha 30 anos. Queriam que eu lá ficasse. Achavam que eu tinha uma mensagem quando cantava em inglês.” Mas Amália Rodrigues faz questão de frisar um ponto: “Eu não escolhi a minha condição de fadista. Ela aconteceu-me. Estava lá, ao pé da porta.”

Uma Grande Força

Cantadeira de fado, cantora ou, simplesmente, artista – “Lá fora sou uma artista, ninguém me chama fadista” -, de Amália espera-se sempre a transcendência. Canções ligeiras ou fados dos que tecem o destino, sobra sempre a entrega total. E a voz, que, não sendo a mesma, vai buscar energias cada vez mais fundo, cada vez mais longe. “Antigamente divertia-me a ouvir a minha voz, tinha uma maleabilidade extraordinária, era cristalina. Ficava toda contente, como uma miúda nova, era como água que corria e nunca mais parava. Aos 30 anos havia já uma força um bocado maior. Aos 50, 55, foi o auge e o aparecimento de uma grande força. Agora, a voz não está tão boa, mas há uma emoção que antes não existia.”
Ouvimos Amália e escutamos uma Voz para além da voz. Será o destino. Será a saudade. Será o sonho que alguém nos ensinou a sonhar. Será Deus. Amália entrega-se. A nós e a Deus. “A minha entrega a Deus é tão grande… Vou descobrindo coisas que só por Deus. No outro dia andava a dizer que o fado era triste porque era lúcido. A tristeza de termos ficado para aqui muito sozinhos, no fundo da Europa. E não podíamos sair. De um lado, eram as espadas. Do outro era o mar.” E ela? “Eu? Sou tão, tão fado que até me sinto feliz por ser triste.”

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