Frei Hermano Da Câmara – “Frei Hermano Da Câmara Celebra 30 Anos De Carreira – Desafinação Bíblica”

Cultura >> Domingo, 15.03.1992


Frei Hermano Da Câmara Celebra 30 Anos De Carreira
Desafinação Bíblica


Não esteve em forma, o padre-cantor que gosta de fazer de “Nazareno”. Cumpridos 30 anos de carreira, Frei Hermano da Câmara desafinou nos fados e acrescentou ao termo “kitsch” um significado bíblico. Os fiéis deliraram com a dose de religião-espectáculo. Para entrar no céu basta comprar bilhete.



Em entrevista ao PÚBLICO do passado dia 12, frei Hermano da Câmara afirmava a existência de duas vias para se alcançar o Alto: uma activa e outra contemplativa. Na 1ª parte do concerto inaugural no Coliseu dos Recreios em Lisboa em Lisboa (repete dia 21 no Porto), que serviu para comemorar os seus 30 anos de carreira, o sacerdote que “canta a rezar e reza a cantar” optou nitidamente pela via contemplativa, contemplando a audiência com uma desafinação monumental, do tamanho da Bíblia.
Mas se o cantor desafinou, o público desatinou de entusiasmo: a plateia, que enchia a sala de corpos jubilosos e vibrações positivas, vendo nisso uma atitude ascética, quiçá de sacrifício pessoal, aplaudiu extasiada. Frei Hermano da Câmara, vestido de frade, todo de negro, interpretou, entre a paixão interior e a desafinação exterior, uma colectânea dos seus fados mais conhecidos, acompanhado à guitarra e à viola pelos insuspeitos António Chainho, António Nobre da Costa, Pedro Nóbrega e Raul Silva, que fingiram não dar pela constante saída de tom do cantor. Ao fim de 30 anos, e dada a vestimenta, é caso para dizer que esta noite o hábito não fez o monge.

Ritual Litúrgico-Mediático

Na 2ª parte foi diferente. É difícil dizer se para melhor se para pior. Digamos que o aparato visual teve a virtude de distrair os ouvidos agredidos, através de mais uma encenação de episódios da vida de Jesus Cristo transformada em selecção do “Reader’s Digest”. Ao som de uma mistura grandiosa entre a “Guerra das Estrelas”, Dino Meira, Can-Can e música de circo, o pano abriu para revelar uma cenografia que procurava recriar o interior de uma catedral. Ao fundo, um coro majestoso imitava as elevações vocais gregorianas. À frente, uma mesa em volta da qual se dispunham os 12 apóstolos e, claro, o Nazareno. Estava montado o cenário e o ambiente para o ritual litúrgico-mediático que se havia de seguir.
O espectáculo decorreu como se de uma missa se tratasse, entre canções alusivas à vida do Messias e homilias que difundiam, de forma simples e directa, a mensagem do Novo Evangelho. A música não ajudava a encaminhar as almas: Frei Hermano, agora de branco vestido, continuou a desafinar, embora se notasse menos, graças ao auxílio prestado pelo som da orquestra e do coro (composto por elementos dos “apóstolos de Santa Maria” e do “coro do Estoril”) que lhe abafava as fífias. Coro e orquestra que, diga-se de passagem, foram dos poucos elementos que se salvaram na noite de anteontem. Salvaram-se artisticamente falando, entenda-se.
Pelo palco foram passando os convidados que cumpriram de forma profissional as tarefas de que foram incumbidos: as sopranos Hannelore Fisher e Teresa Couto “tremolaram” na pureza dos agudos que se queriam o mais próximo possível do céu, respectivamente nos papéis da Virgem Maria e do anjo, Teresa Tarouca compôs uma Maria Madalena convincente, o tenor João Costa Campos trovejou num Judas em desespero de causa.
Sucederam-se as cenas sagradas e que assim deveriam ter permanecido: a Anunciação, a Última Ceia, a Crucificação e a Ressurreição – transformadas em caricaturas “kitsch” para consumo imediato de quem procura “mensagens” em “self-service”. Fica a imagem tocante de um “Pai-Nosso” entoado com fervor pelos músicos e pela assistência, em uníssono, naquele que constituiu o momento de catarse colectiva mais alto do concerto.
Frei Hermano da Câmara perguntava ao PÚBLICO, dias antes da sua actuação, por que razão um sacerdote não há-de representar a figura de Cristo, da mesma maneira que um actor o pode fazer. Precisamente, padre, porque um sacerdote não é, não pode ser, um actor. Leia-se fundo neste “não pode”. Cumprindo o ritual, saiu-se da sala, de ouvidos feridos e alma aliviada.

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