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Tadao Sawai w/ Sawai Koto Academy – “Degraus De Água Desceram Até Ao Céu” (concerto / institut franco-portugais

Cultura >> Quarta-Feira, 04.11.1992


Degraus De Água Desceram Até Ao Céu



Anunciava o programa para a noite de segunda-feira, no Institut Franco-Portugais, música tradicional japonesa. Tal não aconteceu. Toda a segunda parte foi preenchida por obras contemporâneas da autoria de Tadao Sawai, que tocou acompanhado pelo seu grupo Sawai Koto Academy.
Antes do intervalo o senhor Hideo Takahashi proferiu uma conferência em japonês, subordinada ao tema 2ª cultura musical japonesa e a sua origem”. Partindo do princípio de que alguns elementos do público pudessem não dominar suficientemente a língua japonesa, a organização providenciou a presença de um intérprete. Não era necessário. A musicalidade do japonês tornava a significação das palavras irrisória. O senhor Takahashi falou sobre as boas relações e afinidades culturais existentes entre o Japão, o país mais oriental do Oriente, e Portugal, o país mais ocidental do Ocidente. E do koto, o mais típico instrumento tradicional japonês que esteve sempre no centro das atenções.
Tadao Sawai, envergando o traje samurai, passou à prática, num solo de koto e em duo com Kuniyoshi Sugawara, em shakuhachi, uma flauta vertical de bambú. Quanto ao koto é um instrumento de cordas, de linhas aerodinâmicas, tocado na horizontal, cuja sonoridade oscila entre a harpa, o saltério, a guitarra portuguesa e a “steel guitar”.
Depois do intervalo, o encantamento. Tadao Sawai e os restantes músicos da Koto Academy – Kazuhiro Izeki, Hiroshi Nakasone e Hiraku Sawai – começaram por mostrar as virtualidades deste instrumento ancestral, numa peça minimalista inspirada nas combinações de um caleidoscópio. Vale a pena citar a propósito as palavras do compositor: “… sentia-me como se estivesse a passar por uma espécie de alucinação, à medida que observava as mutações imprevisíveis dos desenhos, um sentimento que provocava em mim uma excitação fascinante. Eram deliciosas as cores que mudavam ao regular a entrada de luz (…) era também um deleite para o ouvido, o som levemente sussurrante que emergia à medida que os pedacinhos de vidro se entrechocavam quando fazíamos rodar o tubo”. Neste texto encontra-se implícito o espírito profundo japonês. A imersão na vibração pura. A intuição do instante. O contacto com a luz. O toque delicado nas texturas da matéria.
Polirritmias e jogos de cristal. Degraus de água descendo em cascata até ao céu. Paradoxos melódicos. Glissandos e ciclos de infinito. Quatro kotos transportaram-nos a dançar para o lugar exacto onde nos encontrávamos. Expandidos pelos quatro cantos do mundo. Impossível não sentir as ondas, a proximidade, a distância.
Seguiram-se três peças interpretadas com o mesmo virtuosismo, sensibilidade e a-tensão. “Ginga”, duo de koto e shamisen (espécie de banjo de três cordas), “Jogen no Kyoku”, para koto e shakuhachi (“a imagem que ocupava o meu espírito”, diz a propósito dela o compositor, “era própria de pessoas que, em tempos recuados contemplavam e confiavam os seus pensamentos à misteriosa lua”) e, finalmente, nova interpretação assombrosa de koto solo, por Tadao Sawai, em “Tsubasa ni notte”.
Público em delírio, o que contrariou um pouco a atmosfera zen do momento, mas enfim, pode-se admitir que o baque das palmas servia de despertador das consciências… – e o pedido, satisfeito, de um “encore” que trouxe consigo a surpresa: um arranjo para quarteto de kotos e shakuhashi das “Quatro Estações”, de Vivaldi, numa leitura subtil da música barroca, aquela que, na ess~encia, mais contraria a natureza íntima do ser japonês. O zen é também este contraste. A ave e o raio.