Ofélia, a mulher-canhão, é uma das personagens do segundo projecto a solo da antiga cantora dos 10.000 Maniacs, depois da estreia com “Tigerlily”. “Ophelia” é um disco e um filme com o mesmo nome, este último realizado por Mark Seliger e Fred Woodward. O filme é um documentário que inclui teatro, música, dança, “design” de roupa e um “script”, em que Merchant desempenha uma série de personagens, cada qual com o seu discurso próprio, que são referidas no título-tema do disco e retratadas na capa: a mulher fatal, a prostituta, a freira, a propagandista partidária e a tal mulher-canhão, entre outras. Natalie Merchant assume-se desta forma como uma contadora de histórias que não correspondem necessariamente a aspectos autobiográficos. Se usa a primeira pessoa do singular nas suas canções, isso deve-se, diz, a que essa é a melhor maneira de poder atingir um certo intimismo.
Em teoria “Ophelia” tinha todas as condições para ser um lugar de cruzamento de emoções equivalentes a diferentes cambiantes musicais. Tal não acontece, porém. Natalie Merchant não é, manifestamente, uma actriz do calibre de uma P.J.-Harvey ou de uma Lisa Germano. O seu mundo é mais restrito, assim como mais reduzidas são as suas ambições musicais.
“Ophelia”, para além de uma tonalidade “retro” simpática, flirta com uma “country” de câmara, intimista como a sua autora pretendia, mas pouco estimulante. Tudo se circunsceve ao mundo de trazer por casa de toda uma geração recente de “singer-songwriters”, neste caso cheirando aos anos 70, com a cantora a passar perfeitamente por uma versão feminina de Don McLean, num tema como “My Skin”, adoçado (como muitos outros, ao longo do disco) por um naipe de cordas, numa sonolência que se confunde com a auto-indulgência. “Onde é que já ouvimos isto antes?” é a pergunta que apetece fazer a propósito de cada canção.
E, no entanto, houve uma produção que não se poupou a esforços para arranjar músicos e colaboradores de gabarito. “Ophelia” contou com Karl Berger – nome grande do jazz – para fazer uns arranjos, pôs uma guitarra acústica nas mãos do zairense Lokua Kanza e outra nas de Daniel Lanois, meditou em conjunto com o cantor tibetano Yungchen Llhamo e com N´dea Davenport (ex-Brand New Heavies), oferecendo até, no último tema, um grupo inteirinho de música antiga, os Fretwork, a Gavin Bryars, para este fazer dele o que quisesse. Fez nove minutos d epura chatice que tornam os também chatos Hope Blister um monumento do barroco. Tudo espremido, porém, o que escorre do cano do canhão é um fio de cançonetas, sem dúvida honestas, mas que acabam por revelar as óbvias limitações de Natalie enquanto compositora. A “Ophelia”, dedicado ao “poeta visionário” Allen Ginsberg, falta precisamente visão.
O disco que vai rebentar mais do que os ouvidos até mesmo com as colunas de som é “Import/Export”, dos Genf, uma orgia de baixas frequências, gravadas nos estúdios dos Can por René Tinner, que empurra a gravidade dos Ui para os patamares inferiores do Inferno. Não há “drum’n’bass” que resista a instintos tão baixos. Quando muito, “bas’n’bass”… (Compost, distri. Megamúsica, 7).
Mark Nelson é um dos elementos dos Labradford que no seu projecto a solo, Pan.American, se demarca da sua banda. “Pan.American” experimenta com subtileza o tecno ambiental e o “trip-hop”, numa base igualmente contemplativa, mas onde latejam sonoridades por vezes próximas dos Biosphere. (Kranky, distri. MVM, 7).
Para os lados do ambientalismo, sinónimo de paisagens inóspitas e de explorações de risco, os Visna Mehedi Ensemble propõem, em “Unintentional Beauty”, a visita a uma galeria de quadros abstractos pintados com a paleta étnica de Robert Musci (um dos elementos do “ensemble2), o cavalete conceptual de John Cage e o pincel acusmático de Jocelyn Robert ou de Steve Moore, com alçapões para o “hip-hop”. (Lowlands, distri. Ananana, 8).
Roberto Musci (será preciso lembrar o trabalho precioso que tem desenvolvido com Giovanni Venosta?) tem a partir de agora disponível o seu trabalho a solo, “The Loa of Music”, de 1983, percursor da obra-prima “Water Messages on Desert Sand”. Inspirado nas máscaras, nas invocações e nos rituais curativos vodu, o álbum, reintitulado “Debris of a Loa”, inclui um tema de homenagem a Harry Partch, fusões de samplers com detritos étnicos de proveniência suspeita e um disco inteiro de bónus, “Umi – The Sea”, gravado entre 1993 e 1997, de parceria com Claudio Gabbiani, guitarrista e manipulador de samplers e fitas magnéticas. (Lowlands, distri. Ananana, 8).
Os amantes da excentricidade têm a partir de agora acesso, embora pela porta de saída, a um dos primeiros discos distribuídos pela Recommended, “The Way Out”, de L. Voag. Voag é um maluco que junta o gosto pela anedota de Ivor Cutler, o ska andróide, a excentricidade electrónica de Ron Geesin, o prazer das construções mongolóides dos Renaldo & The Loaf e o parasitismo jazzístico de David Garland. Um “cocktail” de surpresas que não desagradará a quem se deliciou com a descoberta de Fuschimushi Math-Ice. A par de uma faixa de silêncio, para descansar, há ainda a inclusão do EP “Move”. (Alcohol, distri. Matéria Prima/Ananana, 8).
O rock alemão continua a estender os seus tentáculos. Quando saiu já o novo dos Kreidler, entram em cena os Schlammpeitziger, com “Spacerokkmountainrutschquartier”, uma colecção de referências e citações ao passado. Os Schlammpeitziger refazem a fábrica de brinquedos eléctricos de “Zuckerzeit”, dos Cluster, em temas que parecem ter sido compostos pela dupla germânica, como “Bienenkopfkoobgeflecht” e “Discoboingbeach” andam no carrossel mágico dos Harmonia, numa aproximação mais do que evidente, em “Hokytonkschlickummpittz”, e acompanham a corrida dos Neu!, no título-tema. Como passatempo, descubram onde se encontra escondida a fachada de “New Age of Earth”, de Ashra/Manuel Göttsching… Depois do reagrupamento dos genuínos krautrockers nos La! Neu? e nos Space Explosion, e das ressureições dos Faust e dos Amon Düül II, os Schlammpeitziger são portadores tardios do facho que conseguiram capturar a substância dos mestres e as formas arquetípicas dos anos 70. Não fica mal arrumá-los ao lado dos clássicos. (A-Musik, distri. Matéria Prima/Ananana, 8).
Os F.X. Randomiz, também alemães, logram em “Goflex” fazer a síntese da música programática elevada ao grau lógico mais elevado de uns Oval ou de uns Lan, com o mesmo tipo de humor tecnológico de Chris Burke (de “Idioglossia”9 e um swing eléctrónico que não se encontrava desde os primeiros Yello ou dos… Pyrolator. Se os Tone Rec advogam os prazeres do sado-masoquismo, através da chicotada, os F.X. randomiz cultivam o epicurismo da repetição e o fetichismo dos computadores. (A-Musik, distri. Matéria Prima/Ananana, 8).
Reedição de maior importância é a de “Outside the Dream Syndicate”, de Tony Conrad com três músicos dos Faust, Werner Diermeier, Jean-Hervé Peron e Rudolf Sosna, gravação de 1972, Tony Conrad, compositor e violinista, hoje recuperado pelas falanges do pós-rock, fez parte do “Teatro de Música Eterna” de La Monte Young, mas foi sempre personagem malquista entre os minimalistas. A sua posição, de um anti-academismo ferrenho, a par da rudeza de meios de que sempre deu mostras, chocava com as ambições do grupo. A reedição recente de uma caixa contendo a totalidade das suas composições minimalistas do princípio dos anos 60, voltou a repor algumas interrogações, reposicionando a obra deste americano no seio do movimento. O encontro de Conrad com os Faust, então uma autêntica erupção de novidade nos meios pop vanguardistas da Europa, processou-se por via do produtor e descobridor do grupo, Uwe Nettelbeck, constituindo uma das primeiras edições da editora Caroline, então subsidiária da Virgin. “Outside the Dream Syndicate” está para o minimalismo como “Metal Machine Music”, de Lou Reed, está para o rock. Para muitos a audição das duas faixas que fazem parte da versão original em vinilo, “From the side of man and womankind” e “From the side of the machine”, ra e continua a ser insuportável. São duas procissões intermináveis (26 minutos cada) de uma só nota e uma só batida (imagine-se “It´s a rainy day, sunshine girl”, dos Faust, pasado por um rolo compressor, que procuram desenvolver e transcender o conceito de monotonia, tomando como base notações matemáticas pitagóricas e o transe da música indiana, para chegar a uma inversão da “dream music” profetizada por La Monte Young. Aos dois temas originais, Tony Conrad acrescentou para esta reedição um terceiro, “From the woman and mankind”, como que a estabelecer uma simetria capaz de tornar o seu sonho num “loop” de tortura universal. E, no entanto, ficamospregados a esta medida que faz do nada o infinito. (Table of Elements, import. Virgin, 8).
Há uma música feita de tristeza, que é inseparável da personalidade e dos ideais estéticos de Ivo Watts-Russell, patrão e mentor da 4AD. Três álbuns editados com a chancela dos This Mortal Coil – “It’ll End in Tears”, “Filigree & Shadow” e “Blood” – serviram para impor a marca desse estilo, flutuante entre as margens do gótico, do ambientalismo, da electrónica, do neoclassicismo e da canção pop formatada em versões de originais, compostos por gente alheia ao projecto.
Um estilo e um fogo gelado que nunca se extinguiram e que agora encontraram continuação nestes novos The Hope Blister, sequência lógica dos This Mortal Coil. Contando desta feita com colaboradores como Laurence O´Keefe (Ex-Levitation e Dark Star), Louise Rutkowski (trabalhou com os This Mortal Coil) e Audrey Reilly, responsável pelos arranjos de cordas, Ivo prolonga um pouco mais a sua particular obsessão, insistindo mais do que nunca num trabalho de composição que assenta em versões para, paradoxalmente, fugir ao formato da “pop song” convencional.
São aqui retomadas “Dagger”, de Neil Halstead, dos Mojave 3, “Only Human”, de Heidi Berry, “Outer Skin”, de Chris Knox, dos Tall Dwarfs, “Sweet Unknown”, dos Cranes, “Let the happiness in”, de David Sylvian, “Is Jesus your pal”, dos GusGus, “Spider and I”, de Brian Eno, e “Hanky panky nohow”, de John Cale, todas elas – e apesar da promessa do título do álbum – remetendo para um universo de desesperada contemplação. Com o foco na voz de Louise Rutkowski, tendo à volta uma instrumentação clássica que dispensa quase em absoluto o ritmo, tanto da bateria como das programações. mas é um jardim, melhor, um cemitério, já visitado, e neste passeio entre tumbas e ciprestes reconhecemos a cada passo as inscrições da lage dos This Mortal Coil. “Smile’s OK” ouve-se como um reatamento de quixumes e mágoas de uma paixão que já esfriou. Ivo Watts-Russell te, sem dúvida, uma visão um mapa da noite, mas já não apetece repousar à sombra dos seus sonhos maus. Até porque, à força de conviver com os mesmos fantasmas, acabamos por lhes perder o medo e o respeito.