Carlos Ramos – “O Fado Azul”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 19.08.1992


Carlos Ramos
O FADO AZUL


Cantou para a alta sociedade e para a geral. Teve a ousadia de trazer uma orquestra para o fado. Carlos Ramos, um cantador e guitarrista que quis tirar o fado da sarjeta e acabar de vez com o choradinho. Na Marconi, onde foi radiotelegrafista, costumavam cantar-lhe “Não venhas tarde”. Até um dia…



Podia ter sido médico. Ou violinista clássico. O seu destino acabou por ser o fado. Carlos Ramos nasceu no seio de uma família de músicos. As tias tocavam piano, o pai, trompa. Ele começou a tocar violino aos seis anos de idade. Ainda antes de cantar, foi guitarrista profissional. “Foi acompanhante privativo, durante muitos anos, da grande Ercília Costa” – recorda António Morais, casado com a filha mais nova do fadista, Odete Ramos, recentemente falecida. “Depois do Armandinho, ele foi o maior guitarrista português, durante muito tempo.”

Fado De Orquestra”

A estreia como cantor profissional ocorreu no teatro (antes “ia para o Jardim da Estrela tocar guitarra nos tempos de estudante no Liceu Pedro Nunes”, recorda a filha mais velha, dona Cecília Ramos), mais precisamente no quadro “Malhoa”, de uma revista onde uma noite se viu obrigado pelas circunstâncias a substituir a cantora de serviço. Anos mais tarde, à semelhança de outros fadistas, passou a cantar numa casa própria, no restaurante A Toca.
A Carlos Ramos se devem algumas inovações. Foi o primeiro a cantar o fado acompanhado por uma orquestra. “Na altura, houve muitos artistas do fado que o criticaram violentamente por isso”, lembra António Morais. “Hoje todos os fadistas cantaram, pelo menos uma vez, com orquestra. Naquela altura foi um choque.”
As causas de tal “ousadia” prendem-se com um objectivo determinado: “Ele estava tirando o fado da sarjeta, do choradinho, da desgraça”. Carlos Ramos cantava então textos de Gabriel de Oliveira, Domingos Gonçalves Costa ou Frederico de Brito, entre outros autores, sem esquecer um disco “cujas letras são todas do professor Moniz Pereira, o treinador de atletismo do Sporting”.
Com Carlos Ramos “o fado saiu da vulgaridade e entrou para os salões”. Como diz a letra: “Cantei para princesas, para reis também cantei”. E não se trata apenas de uma figura de estilo. Carlos Ramos, juntamente com Amália Rodrigues, chegou a cantar em privado para a princesa Margarida de Inglaterra.
Aristocrata do fado? Para António Morais, “era uma pessoa que tinha de se diferenciar um bocadinho. Ele tinha uma certa cultura, bom-gosto, muita apresentação, sabia estar”. Saber estar que lhe facultou a entrada nos estratos sociais mais elevados – “ia a casa de toda a alta sociedade do país”, assegura o genro do fadista, frisando que isso não impedia Carlos Ramos de cantar “para o povo”. Costumava dizer que “cantar para a geral é muito importante”.

Todos Do Belenenses

Era uma época entre os anos 40 e o final dos 60, deconvívio entre a gente fadista. “Havia uma ligação entre os fadistas, de homens com história, com valor, casos do Manuel Fernandes, do ‘miúdo da bica’, do Alfredo Marceneiro, do Tony de Matos, do António dos Santos, do Manuel de Almeida, com quem Carlos Ramos teve uma relação bastante forte – trabalharam muitos anos juntos na Tipóia.“ O convívio estendia-se ao futebol. Carlos Ramos era adepto ferrenho do Beleneneses, talvez por ter nascido ali ao pé, em Alcântara. “Não sei se sabe, mas a amioria dos fadistas era do Belenenses”, diz António Morais. Como se vê, até na preferência clubista Carlos Ramos foi azul.
Durante 22 anos, Carlos Ramos foi radiotelegrafista da Marconi. “Um dos melhores”, garante António Morais que, a propósito da profissão de fadista, tem uma história para contar: “Como ele era semiprofissional, deitava-se e levantava-se tarde todos os dias e às vezes chegava atrasado. É claro que tinham de chamá-lo à ordem. Um dia, ele chegou mais atrasado, foi ao vestiário, despiu-se todo, ficou só com os sapatos, meias e gravata e apresentou-se assim ao chefe, dizendo: ‘O meu interesse em chegar cedo foi tão grande que nem perdi tempo a vestir-me!’.” Não se sabe se, depois disso, o chefe alguma vez lhe voltou a cantar o célebre “Não venhas tarde”…

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