Amália Rodrigues – “Amália Rodrigues Cantou Domingo À Noite No Coliseu Dos Recreios – Uma Voz ‘Aflitíssima'” (crítica de concertos)

cultura >> terça-feira >> 13.12.2022


Amália Rodrigues Cantou Domingo À Noite No Coliseu Dos Recreios
Uma Voz “Aflitíssima”


Na noite de Amália houve beijinhos, oferta de flores, momentos de mau-gosto, um travesti, as lágrimas do costume e emoção a transbordar. Só faltou a voz. Amália quer mas já não pode. Saídas de tom, fífias, um esforço inglório para não deixar fugir o passado. Mas Amália não desiste porque vive do calor das palmas. E continua a recebê-las.



A voz de Amália, já se sabe, é uma sombra da que foi durante décadas em que cantou, de forma transcendente, uma maneira de ser que é a dos portugueses. No concerto da noite de domingo no Coliseu dos Recreios em Lisboa, integrado na Lisboa-94, chegou a ser penoso ouvi-la desafinar, a voz perseguindo alturas a que já não consegue chegar, refugiando-se num quase grito, de mágoa e incredulidade, de quem sente que uma parte de si deixou de lhe obedecer. E, apesar de tudo, Amália continua a rir e a brincar, capaz de manter distância de si própria, de ser no fundo a mesma de sempre.
Abriu o concerto com o fado de Lisboa. Mal, bastante mal. Amália desafinou, nada a fazer. “Estou aflitíssima”, confessou, “mas depois vocês começam a bater palmas e eu fico logo melhorzinha”. Assim foi, de facto. O público na maioria não muito jovem que não chegou a encher a renovada sala das Portas de Santo Antão, não regateou aplausos à artista, aplaudindo de pé mal ela abria a boca. Estavam todos lá para lhe render homenagem, como sempre tem acontecido nos últimos espectáculos, para lhe agradecer, talvez pela razão inconfessada de poderem dizer que assistiram ao último concerto de Amália. Um momento, porém, aconteceu, no qual Amália se esqueceu que o tempo deixa marcas, a voz e a alma de súbito coincidentes na interpretação tocante de “Há festa na Mouraria”, um fado imortalizado pela voz de Alfredo Marceneiro. A primeira parte fechou com marchas populares, acompanhadas por uma banda de sopros formada por oito elementos, faceta popularucha que Amália, para mal de muitos, nunca dispensou.
Na segunda parte, acompanhada ao piano por André Dequech, Amália cantou poetas como Camões – “este já toda a gente sabe que escreveu a letra”. Seguiu-se nova sequência de fados. Entre os quais “Lisboa, velha cidade”, completamente assassinado pela voz, e “Que Deus me perdoe”, enobrecido pelas entoações trágicas da fadista. Logo a seguir, um primeiro momento patético: Lola, um travesti imitador da voz e da figura de Amália, sobe ao palco, emocionadíssimo, e declara com a voz embargada: “eu quero morrer antes da senhora Dona Amália!”. Amália, mais inteligente que Lola, desdramatiza e ri-se. “isso é o que dizem todos, mas quando chega a hora da verdade…”. “Povo que lavas no rio”, apresentada pela fadista com um “pff” de enfado, arrancou da assistência uma onda de delírio. A interpretação afundou-se com a voz, mas que importância tinha isso? Depois flores, muitas flores, que Amália adora receber, e o “Fado de Amália”, a tal que “chora a cantar”, com versos da sua autoria mas que mesmo assim ela não conseguiu recordar. “Esta agora! Até me esqueço de mim própria!”.
Entre improvisos desafinações, o descontrole instalou-se, numa sucessão de fados pedidos, monólogos – “não tenho orgulho nem pena de ser do povo, aconteceu” – e desatenções e esquecimentos constantes das letras. “Lágrimas” antecedeu os horríveis “Caracóis”. “Rua do Capelão” teve direito ao tradicional derrame de lágrimas (cuidadosamente teatralizadas nos gestos largos da artista, a limpar os olhos com a mão e a secá-las no vestido) e a tossidelas pelo meio. A tragicomédia à portuguesa atingiu o auge quando alguém numa intervenção desvairada, anunciou com a gravidade do profeta: “Portugal ofereceu ao mundo duas grandes senhoras, Nossa Senhora de Fátima e a senhora dona Amália”. Amália, alheia a tanto disparate, ainda cantou “Malhão de S. Simão” – “sem partes gagas” -, não satisfez quem lhe pedia “Barco negro” – “esse já não posso” – e deu mais um festival de desafinação em “Quando eu era pequenino”. A finalizar voltou a enganar-se em “Lisboa não sejas francesa” para finalmente regressar no único “encore”, com “Foi Deus”.
Amália foi igual a si própria em tudo menos na voz. Ela vai continuar, até que a voz lhe doa, como diz. Assim se cumprirá o seu destino. O nosso coração aguenta e perdoa. Mas, como diria mais ou menos António Variações, “o ouvido é que paga”.

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