Vários – “Noches Gitanas En Lebrija”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 10.06.1992


AO REDOR DAS CHAMAS

VÁRIOS
Noches Gitanas En Lebrija
4xCD, EPM, distri. Dargil


Os vários em questão são na realidade um agregado familiar à volta do guitarrista Pedro Bacan, que convocou para estas noites de flamenco o pai, Bastian Bacan, a tia-avó, Luisa Pena, a irmã Ines Bacan e um punhado de primos, Pepa de Benito, Manuel de la Costa, Diego El Daito, Concha del Lagana, La Morena, La Perrenga e Diego Vargas. Os nomes não serão conhecidos da maioria. É a família dos Bacan como poderia ser a dos Silvas. Mas que ninguém se iluda: a verdade da música flamenca está toda aqui. Na guitarra e, sobretudo, no canto que vibra, vive e sangra naquilo que o flamenco tem de mais profundo e genuíno. Noites ciganas, entre o fogo e as estrelas, registadas ao vivo em quatro volumes correspondentes a outros tantos títulos temáticos: “Fiesta”, “Luna”, “Solera e “Al Alba”. Quanto ao aglutinador do projecto, Pedro Bacan, foi-lhe atribuída pela Fundação Machado o prémio para o melhor espectáculo apresentado na Bienal de Flamenco de Sevilha, em 1990: “Nuestra Historia al Sul”.
Da “Fiesta” à volta da fogueira até à primeira luz da madrugada, é toda a história de um povo que se desenrola no espaço de uma noite mítica e por todos os cambiantes que pode assumir a alma cigana enquanto caminha. Nesse caminhar que é a sua própria essência. A noite é então o espaço, físico e poético, onde cabem, paredes meias, a celebração e o sofrimento, ao mesmo tempo que uma metáfora sobre a condição existencial de uma raça em busca de um centro.
Nos quatro álbuns é a voz que conta a história. Vozes masculinas, de luta, sol, vinho e suor, e vozes femininas, de lua, sangue, terra e pranto. Há um mistério neste canto e nestas vozes que se soltam para o negrume do céu, envoltas pelas chamas. Há quem diga que esta música se situa para além de toda a estética e que se confunde com a própria vida. Silverio Franconetti, estudioso da cultura do “povo descendente do faraó” e considerado o primeiro divulgador da sua música no exterior, julgou encontrar o segredo dos ciganos cantores, ou “flamencos”, numa sílaba que em si condensa e concentra a existência e o mundo “ay” – a chave de dentro e de fora, do sentimento e das formas de que se revestem as típicas vocalizações ciganas, feitas de espasmos, suspiros, gritos, cortes, modulações e ornamentações, que se diriam arrancadas à própria carne, movimento perpétuo, a um tempo infinito e fugaz, como uma chama – fogo e chamada.
No ciclo destas noites de Lebrija, encontram-se ainda outras chaves que dão acesso ao interior do continente (ou será ilha?) cigano. A principal abre o portão da comunicabilidade, do contacto directo entre os entes, sejam eles divinos ou humanos, e aqui reside mais um ponto essencial. O canto “flamenco” exprime uma ligação real e por isso se pode considerar sagrado. Ligação entre os vários elementos da família, entre os apaixonados, entre o homem e a terra, o homem e o céu, o homem, a sua alegria e a sua dor. Enquanto canta, o cigano transforma-se, concentra-se, encontra o seu lugar no universo. E perde-se, porque se abre, se deixa percorrer pelas correntes que através de si fluem, telúricas e celestes. Um cigano é como uma árvore a que só o canto permite criar raízes. Um cigano é a personificação do destino. Inevitável e incerto. Uma dança sem fim. Bulerias, fandangos, siguiryas, soleás… Mas atenção: para fruirmos a noite e aluz ciganas é preciso que também nós saibamos acender a fogueira. Porque a luz da Lua enlouquece. (9)

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