12.02.1999
Krautrock
Gille Lettmann, Sand, Cluster, Roedelius
Viagens Da Rapariga Das Estrelas Pelo Cosmos
Rolf Ulrich-Kaiser, patrão da editora Ohr, como Julian Cope diz no seu livro “Krautrocksampler”, “tinha uma visão”: a criação, na sua editora, de uma música absolutamente fora deste mundo, a própria essência da “kosmische music”. Entre os vários projectos que organizou com este fim, todos derivados de desvairadas sessões de estúdio alimentadas a ácido, contam-se a fase inicial dos Ash Ra Tempel, “Tarot”, do cigano pintor e místico Walter Wegmüller, “Lord Krishna Von Goloka”, do poeta suiço Sergius Golowin e o naipe de discos dos Cosmic Jokers, montados pelo próprio Kaiser a partir da colagem de excertos das ditas sessões de estúdio, com participações da nata dos auto-designados “cosmic courriers”. Gille Lettmann era a mulher de Rolf-Ulrich Kaiser e musa inspiradora de todo o movimento. “Gilles Zeitschiff”, de 1974, assinado com o seu nome, reúne um punhado de alucinações sónicas recortadas de sessões de estúdio dos “cosmic courriers”, posteriormente manipuladas por Kaiser e realizadas pelos “suspeitos” do costume: Manuel Göttsching e Hartmut Enke (dois Ash Ra Tempel), Klaus Schulze, Jurgen Dollase e Harald Grosskopf (ambos dos Wallenstein) e Walter Westrupp, além de Wegmüller, Golowin e Timothy Leary, o papa do LSD (que a “troupe” cósmica encontrou na Suiça, quando o professor andava fugido da polícia). Leary que funcionou como motor de arranque de vários produtos dos “cosmic courriers”, entre os quais este “Gilles Zeitschiff”, um manifesto psicadélico sobre a percepção do tempo sob o efeito das drogas psicotrópicas. “O Tempo é a nova dimensão que alimenta a música cósmica. O Tempo contém três grandes experiências que nos fazem voar em direcção à rainha do sol. O amor está no Tempo. Voem com alegria”, exclama Gilles no cume do seu transe. Sobre um fundo de “acid jams” cósmicas, a “sternenmadchen”, a “rapariga das estrelas”, como era conhecida, faz flutuar a sua voz de virgem-bruxa (antecipando um papel semelhante assumido por Gilly Smyth nos Gong) em declamações espaciais e comentários sobre os seus amigos cósmicos (incluindo a apologia de Leary), retalhados por efeitos de estúdio, que apenas fazem sentido no contexto do ácido. É um dos melhores exemplos do espírito então reinante no seio da comunidade cósmica, dominado pelos sintetizadores de Klaus Schulze, superior em estranheza e em poder de síntese da simbiose ácido-música, a qualquer dos álbuns dos Cosmic Jokers. Depois, é deveras interessante verificar como soa um “blues” executado em plena “trip”, como em “Downtown”, na linha dos “blues” cósmicos dos Ash Ra Tempel. (Spalax, import. Lojas Valentim de Carvalho, 8).
Outro objecto valiosos do psicadelismo germânico, também de 1974, chega ao compacto por uma via algo bizarra: “Golem”, disco único dos Sand, um trio originário de Bodenwerder, na Saxónia, liderado por Johannes Vester, reeditado por Steve Stapleton, mago dos Nurse With Wound e admirador de longa data do “krautrock” em geral e dos Sand em particular. Reintitulado “Ultrasonic Seraphim”, o disco aparece aumentado para CD duplo, incluindo quatro baladas psicadélicas de um disco a solo de Vester, “Born at Dawn”, e um segundo disco composto por uma releitura da música dos Sand pelos Nurse With Wound. Influenciados pelos Pink Floyd mais planantes, os Sand criaram em “Golem” mantras de sintetizadores animados por pulsações animalescas numa espécie de variante cósmica de “Ummagumma”. Faixas como “Helicopter” (longa e assustadora alucinação electrónico-psicadélica), as personificações, por Johannes Vester, de Syd Barrett, em “Old loggerhead” e “On the corner” (não estaria descabida em “The Piper At Gates Of Dawn”), a balada semi-acústica “My Rain” (entre os Faust e os Eagles…) ou a viagem cavernosa pelos meandros da psique de uma tal “Sarah”, em dois movimentos que vão dos sepulcros estelares de “Atem”, dos Tangerine Dream aos Cluster industriais de “Cluster II”, constituem uma das experiências mais marginais de todo o “krautrock”. (United Durtro, distri. Symbiose, 8)
Finalmente, os Cluster regressam com uma nova reedição na Sky, desta feita “Curiosum”, de 1981, um dos discos da obra da dupla Moebius-Roedelius, posteriores a “Sowiesoso”, preferidos por Julian Cope. Abstracto, maquinal e minimalista, por vezes próxima de “Ralf & Florian”, dos Kraftwerk (“Tristan in der bar”), a “Curiosum2 faltará apenas o humor e o tom de realejo da obra-prima “Zuckerzeit”, numa música cuja arquitectura concilia o sentimento e a matemática. Indispensável para os incondicionais do grupo, “Curiosum” prenuncia ainda trabalhos mais recentes como “Apropos Cluster” ou a sessão do super-grupo Space Explosion. (Sky, import. Lojas Valentim de Carvalho, 8).
Elemento romântico dos Cluster, Hans-Joachim Roedelius gravou “Jardin Au Fou” em 1978, um dos seus melhores e mais diversificados trabalhos dos anos 70. Aqui, a vertente clássica e pianística (presente em temas como “Toujours” ou “Balsam”) característica de grande parte da sua discografia a solo, escapa por completo ao teor “new age” que enferma álbuns como “Momenti Felicci”, num saudável convívio com o experimentalismo electrónico e um lado concretista que o músico apenas viria a retomar nos recentes (e magníficos), “Sinfonia Contempora No.1” e “La Nordica”. “Cafe Central” apresenta a sonoridade e uma construção melódica típica de Michael Rother, “Le Jardin” é uma aguarela matutina de sol e chilrear de pássaros com a mesma serenidade zen dos Popol Vuh, enquanto a valsa de marionetas “Rue Fortune” constitui um delicioso exemplo da arte de Roedelius, no difícil equilíbrio entre o sério e o pueril. (Captain Trip, import. FNAC, 8).