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Leonard Cohen – “Cohen Live”

pop rock >> quarta-feira >> 13.07.1994
ÁLBUNS POP ROCK


Leonard Cohen
Cohen Live
Columbia, distri. Sony Music



Em 26 anos de carreira, este é o Segundo álbum ao vivo, depois de “Live Songs”, do lendário cantor canadiano que foi recentemente alvo de homenagem em “I’m your man”, cujo segundo volume está já em preparação. Percebe-se que o trovador prefere mostrar-se ao abrigo de um estúdio. Se agora Cohen resolveu apresentar excertos das suas digressões realizadas em 1988 e no ano passado, tal deve-se, como o próprio explicou em entrevista ao PÚBLICO, a uma espécie de desejo de confrontação consigo mesmo, em termos de qualidade técnica, ao mesmo tempo que a uma tentativa de arquivar o ambiente de euforia e comunhão dionisíaca que caracterizam os espectáculos actuais deste compositor-intérprete.
“Cohen Live” é, em termos de qualidade, muito superior ao que é habitual em registos ao vivo. O som é ao mesmo tempo detalhado e caloroso, permitindo comparar a evolução da voz de Cohen no tempo que mediou entre as duas digressões. Mais directa há seis anos (ainda) mais profunda e aveludada nos concertos do ano passado. Não podendo de modo algum considerar-se um “best of”, até porque isso não seria possível num único disco, é em “Cohen Live” contudo possível rever e revisitar sob uma nova luz clássicos como “Dance me to the end of love”, “Bird on a wire”, “Joan of Arc”, “Sisters of mercy”, “Hallelujah”, “I’m your man” e “Suzanne”, num total de treze canções presentes na forma original nos álbuns “The Songs of Leonard Cohen”, “Songs of Love and Hate”, “New Skin for the Old Ceremony”, “Various Positions” e “I’m your Man”. Um Cohen que, como o vinho do Porto, tem sabido envelhecer. (7)

Leonard Cohen – “À Beira De Um Colapso Nervoso” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 29.06.1994


À Beira De Um Colapso Nervoso



Leonard Cohen acabou de lançar o álbum “Cohen Live”, o segundo ao vivo da sua carreira. Perfeccionista, praticante de zen, amigo dos amigos e do vinho, o veterano cantor canadiano continua a dizer com a mesma voz suave de sempre: “Estamos à beira de um colapso nervoso.” Hoje há menos gente a chamar-lhe “louco”. Das preocupações iniciais do jornalista até às relacionadas com a forma manifestada no novo disco ao vivo, Leonard Cohen é cima de tudo um poeta atento às mutações do mundo e de si próprio. O fim dos tempos aproxima-se, disse ele ao PÚBLICO, em Madrid, onde o fomos entrevistar. O diabo anda à solta, a cultura perdeu-se, Júlio Iglésias é maravilhoso. Não digam que ele não avisou.



PÚBLICO – Antes de se dedicar à música fez jornalismo…
LEONARD COHEN – Fiz algumas entrevistas, com pouco sucesso. Procurei ser um entrevistador de televisão, porém não tinha jeito. Tentei uma vez entrevistar Glenn Gould, mas sem êxito. Acabei por desistir. Sempre gostei do espírito de iniciativa do jornalismo. Ao longo da minha carreira, os jornalistas foram sempre importantes, no sentido em que contribuíram para me manter activo.
P. – Que motivos o levaram a gravar este seu segundo disco ao vivo? Apenas “show time” ou algo mais essencial?
R. – Queria ter uma ideia exacta do que estava a fazer em termos de “performances”. Há, sem dúvida, o lado do espectáculo, mas também pretendi verificar de que maneira a minha voz evoluíra.
P. – Mas há um intervalo de cinco anos entre as duas digressões, 1988 e 1993, aproveitadas para o disco.
R. – Quis escolher entre o máximo de material possível. E além disso mostrar novas e diferentes maneiras de abordar canções antigas. Houve mudanças radicais. Por exemplo, começo sempre cada concerto com “Dance me too the end of love”, por isso iniciei o álbum com ela. É sempre diferente da versão original de estúdio. Não havia à partida uma grande estratégia para este disco. Tinha feito duas digressões, duas centenas de espectáculos, bebi muito nessa época. Houve algo nessas digressões muito importante para mim: a camaradagem com os outros músicos, a sua excelência musical. Quis preservar isso.
P. – Mas porquê estas canções e não outras quaisquer? Foi uma escolha aleatória?
R. – Muito instintiva. Primeiro que tudo, elas tinham que atingir um determinado nível de qualidade técnica. Não gosto de ouvir discos ao vivo porque não têm, na generalidade, boa qualidade de som. Não se trata de querer a perfeição, mas pelo menos que os outros músicos não se queixassem de que não conseguiam ouvir a minha voz…
P. – As pessoas, mais do que a música, querem ouvir as suas palavras…
R. – Sim, mas quando se tem algo de importante para dizer, convém dizê-lo da forma mais correcta. Preocupo-me muito com a forma. Em termos literários, mas também tecnológicos.
P. – Desde a era “hippy” até hoje, continua a cantar o amor. Só que antes fazia-o de uma forma positiva, enquanto agora carrega na ironia e nada parece ser tão evidente e claro como dantes…
R. – Tento apenas manifestar a realidade dessa experiência.
P. – Mas não acha que houve uma inversão, no sentido em que as pessoas, sobretudo os políticos, dizem hoje uma coisa querendo significar precisamente o oposto?
R. – É verdade. Há uma espécie de conversa com duplo sentido [“double-talk”], de fala secreta. As pessoas são manipuladas, mesmo aquelas que pensam ser as manipuladoras. Manipuladas pelo espírito da época. Ninguém pode escapar a este espírito.
P. – Que espírito é esse?
R. – É diabólico. As pessoas estão a sofrer bastante com essa manifestação do lado escuro. Elas precisam d equilíbrio. Embora pense que devemos estar gratos a esse lado escuro da mesma maneira que devemos agradecer ao lado luminoso, só que hoje tudo pende apenas para o primeiro. Está a ficar um cheiro a enxofre no ar…

“O Dilúvio É Uma Catástrofe Interior”



P. – Quando fala em equilíbrio, recordo-me de já uma vez se referiu à santidade. O santo é o homem que encontrou, ou reencontrou, o equilíbrio?
R. – Até certo ponto, comparo-o a um esquiador. Ele apenas se adapta e desliza sobre os contornos da paisagem. Não se trata de uma reacção agressiva ou beligerante e certamente não não tem nada a ver com as leis. O santo não põe o mundo em ordem. É mais uma reconciliação com a situação presente, com o momento. A capacidade de perdoar, de mudar perdoando. Por outras palavras, compreender o poder do amor e do perdão.
P. – Numa canção como “The future”, a sua visão é bastante mais escura e pessimista…
R. – Complexa. Se apenas considerarmos a letra, é irónica, divertida, escura. A música, por seu lado, é bastante ligeira. O casamento entre ambas faz com que se dissolvam reciprocamente, criando uma espécie de ar fresco. Evidentemente que é chocante dizer coisas como “dêem-me ‘crack’ e sexo anal”, mas são coisas que as pessoas dizem na realidade. É o que existe por baixo, quando se retira a última faixa protectora – a cultura. Já deixei de brincar. Não acredito que haja sequer uma cultura ou que valha a pena salvá-la. Ela está a desaparecer como as árvores e os rios. A poluição é interior. Não vale a pena fingir que vale a pena protege-la, porque ela, já não existe de facto.
P. – Trata-se então do apocalipse?
R. – Já ando a dizer isso há uma quantidade de tempo, mas as pessoas acusam-me de ter uma neurose qualquer. Quando falava no assunto há 20 anos, as pessoas diziam-me: “Porquê essa melancolia? Tens dinheiro, tens mulheres, tens fama, de que é que te estás sempre a queixar?” Achavam o meu trabalho neurótico e que eu era um burguês individualista, dependendo do ponto de vista da crítica, por exemplo sob uma perspectiva freudiana. Em suma, a acusação principal é que eu era doentio. Tudo porque dizia que tinham chegado os dias do dilúvio. Mas o dilúvio é uma catástrofe interior. Era o que eu dizia em “Avalanche”. Ou em “The gipsy’s wife”, onde cantava: “Estes são os dias finais, esta é a escuridão, este é o dilúvio.” Evidentemente, toda a gente concordava que a família estava a desagregar-se, que a estabilidade desparecera, mas ninguém previa que isso iria provocar o tal colapso.
P. Considera-se uma pessoa religiosa?
R. – Não sei. Tenho consciência de que é importante cultivar o espírito. Acredito que, se não cultivarmos uma coisa, ela apodrece. Não gosto da religião porque ela apresenta um deus objectivo, concreto. Quando se afirma um deus concreto, surgem os problemas, a desordem.
P. – Há pouco mencionou o diabo…
R. – Acredito em ambos mas não que existem no exterior. São aspectos de uma realidade sem desejos. Não precisamos de ser governados por um desejo ou uma vontade. Deus é espontâneo: manifestação e criação.
P. – É a sua costela zen a falar…
R. Vivo num mosteiro zen, na Califórnia. Não é bem um mosteiro, mais um centro zen. Num mosteiro não há espaço privado. É um velho edifício de madeira, a 1800 metros de altitude. Tem um bom Inverno.
P. – É lá que compõe?
R. – Sim, escrevi aí muitas canções, ao longo dos anos. Antes passava aí alguns meses do ano, mas agora vivo mesmo lá, desde a minha última digressão, no Outono do ano passado. Claro que tenho coisas para fazer no exterior, no entanto isso não constitui problema, uma vez que fica apenas a duas horas de Los Angeles.
P. – Há uma continuidade entre a atitude “hippy” dos anos 60 e o zen?
R. – Há provavelmente uma ligação. O que aprecio no zen é a prática, o regime. Gosto de me levantar cedo (às vezes não tanto…). Há em mim um lado profundo que me faz gostar de levantar cedo, vestir as minhas roupas negras, caminhar através da neve até à sala de meditação, ao lado de outras pessoas doidas. Sentamo-nos ao frio durante duas horas antes do pequeno-almoço. Faço isto todos os dias. Há algo nesta disciplina que aprecio. O meu pai havia de compreender. Antes de morrer, queria mandar-me para uma academia militar.

Móveis Mentais

P. – Na sua obra verifica-se uma quase oposição entre a complexidade dos textos e a simplicidade da música. Será para fazer chegar a mensagem às pessoas mais facilmente?
R. – Desenvolvi ao longo dos anos uma estratégia de choque que me pareceu um casamento apropriado entre os textos e a música. A música é muito importante, não é acidental. Em especial nos meus dois últimos álbuns, penso ter conseguido obter o equilíbrio desejado, nos termos de que falava há pouco.
P. – “The Future”, em particular, é muito modernista…
R. – Penso prosseguir na mesma direcção no próximo álbum… É do que gosto, fazer canções como “The future”, em que a música, como há pouco fez notar, é irónica, um pouco mecânica, um pouco convulsiva.
P. – Pensa que o público capta com facilidade essa ironia?
R. – Um número suficiente de pessoas, sim. Não sei até que ponto elas recebem as coisas de forma consciente ou se não são antes tocadas de outra forma. Nem sequer sei até que ponto as pessoas levam hoje a sério seja o que for. Se as pessoas conseguem ter esse luxo. A vida interior é actualmente como que uma provação. Há tanto sofrimento nas pessoas que encontro… Chega a ser heróico tentar penetrar nelas. A maior parte das pessoas vive agarrada a um pequeno pedaço de mobília mental, um fragmento de uma mesa ou de um móvel qualquer. É esta a imagem que tenho andado a mostrar nos últimos 20 anos. Devo dizer que é hoje bastante melhor aceite do que há 20 anos. Estamos a viver o dilúvio. Qual será então o comportamento mais indicado a adoptar num dilúvio? O que devemos fazer quando vemos as pessoas a ser arrastadas, agarradas a um bocado de uma mesa ou de uma porta? Devemos declarar-nos conservadores ou liberais? De esquerda ou de direita? Homem ou mulher? Branco ou negro? Todas estas categorias tornam-se completamente irrelevantes, dada a natureza e a premência da catástrofe.
P. – Como é o quadro visto de cima, ou seja, da perspectiva do anjo?
R. – Vê-se ao mesmo tempo que as coisas estão OK, exactamente como deveriam estar.
P. Aceitaria participar em grandes festivais de beneficência, em defesa de uma causa?
R. – Nunca fui convidado para nenhum. E, se fosse, não aceitaria. Para mim não significam nada. As pessoas acham importante ter uma forma de exprimir a sua boa vontade. É como um cartão de Natal que se envia uma vez por ano…
P. – Afinal de contas actua para audiências ao vivo apenas por questões materiais?
R. – É certamente uma questão que não posso ignorar. Tenho responsabilidades na medida em que muitas pessoas dependem de mim. Não é só a minha família. Sou feliz por poder ganhar dinheiro de maneira a responder a essas responsabilidades. Mas, para além disso, há algo na vida na estrada de que gosto: a camaradagem entre os músicos, os técnicos. E o aspecto da bebedeira. Bebo muito. Gosto de beber e cantar. E de manifestar o espírito da embriaguez.
P. – Não há uma contradição entre a disciplina zen que diz professar, e essa prática dionisíaca do prazer do vinho?
R. – Toda a minha vida tem sido uma contradição. Depois de um dia inteiro no centro zen a meditar – há uma semana por mês em que se chega a estar por dia 17 horas sentado a meditar – gosto de beber durante algumas horas: Depois deito-me e durmo mais umas horas, para me levantar e começar tudo de novo.
P. – Os restantes membros da comunidade aceitam bem esse seu comportamento?
R. – Não há nenhum ponto de vista moralista no zen. Não é propriamente uma religião. Não há nenhum deus nem nenhuma adoração. É apenas uma situação em que se proporciona às pessoas a possibilidade de poderem estar sozinhas consigo mesmas. Se há alguém que quer estar sozinho consigo mesmo bêbedo, tudo bem! E, se quiser fazê-lo sóbrio, na mesma tudo bem. Em geral, ninguém gosta de estar só consigo mesmo. Eu gosto. Às vezes.
P. – E drogas?
R. – Não gosto de usar drogas. Passei imenso tempo a recuperar delas. Descobri que as drogas me punham o espírito doente. O álcool é diferente. Nas digressões gosto de beber, com os outros músicos. Não só para aliviar a pressão – a vida “on the road” é dura, fazemos cinco concertos e viajamos durante toda a semana. Não actuamos em estádios, apenas em auditórios de concerto, temos que ser económicos -, mas sobretudo como um sacramento. Juntamo-nos todos para beber, para sentir a luz do sol, a força, o espírito das canções, para celebrar em conjunto com a assistência. Para nos rendermos a ela e celebrar o sacrifício, num bom, num grande concerto. O vinho ajuda a entregarmo-nos ao momento.

Beber Para A Música

P. – Os outros músicos também pensam que é doido?
R. – Sim. Adoro-os e eles adoram-me. Embora haja alturas em que as coisas não correm bem.
P. – Que alturas?
R. – Sou muito exigente nos aspectos técnicos. E penso que toda a gente devia dar o máximo de si em cada concerto.
P. – Como define um bom concerto?
R. – A um nível básico, é aquele em que as pessoas deram por bem gasto o seu dinheiro. A outro nível, aquele em que as pessoas sentiram que fizeram parte de um acontecimento importante.
P. – O seu modo de cantar é invariavelmente sereno. Nunca a fúria ou a violência assomam de forma explícita no seu estilo, mesmo quando canta as coisas mais terríveis…
R. – Eu dizia o mesmo do Júlio Iglésias. É um cantor muito subestimado. As pessoas pensam que é um cantor barato. Para mim não é. Andei a estudá-lo ultimamente. É maravilhoso. Tem um centro. Muito calmo, muito seguro sobre o amor, muita experiência do sofrimento. As primeiras vezes que o vi era mais novo, procurava dar a imagem do romântico, do “gigolo”. Mas agora vi-o na televisão e achei-o maravilhoso.
P. – Nunca teve a tentação de usar o seu poder em proveito próprio, no sentido de manipulação, de posse?
R. – O poder é uma carga pesada. Como uma possessão, uma grande casa, um iate ou automóveis caros. Quando se tem poder, gasta-se o tempo todo com ele. Sou demasiado preguiçoso para ter poder. Para se ser poderoso é preciso seduzir as pessoas. Sou demasiado preguiçoso para isso…
P. – Assume-se como um profeta?
R. – Não sei se sou um profeta, mas escrevi coisas que se desenrolaram depois de as ter escrito. A visão original sobre o tal colapso nervoso é a única coisa relevante que disse, a minha única contribuição. Não se tratava apenas de dizer que as coisas eram nojentas, horríveis ou que a vida se estava a destroçar. Tudo isto é verdade, mas o importante é saber quais as consequências. Estamos à beira de um colapso nervoso. Vamos confessar-nos uns aos outros.
P. – O que pensa fazer no dia seguinte ao dilúvio?
R. – Espero beber uma boa chávena de café.

Leonard Cohen – O Homem, A Banana E Os Fãs

Pop Rock

 

25 SETEMBRO 1991

 

O HOMEM, A BANANA E OS FÃS

 

Em 1988, Leonard Cohen, ilustre representante da ala romântico-depressiva da década anterior, gravou um disco intitulado “I’m Your Man”. Na capa aparece a segurar uma banana. Passados três anos, a Columbia, em colaboração com a revista francesa “Les Inrockuptibles”, reúne 18 artistas, entre desconhecidos e consagrados, para homenagear em vida o autor de “Songs from a Room”, no projecto colectivo “I’m Your Fan”.

 

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A ideia de reunir vários nomes para interpretar a obra de um autor específico, tem precedentes. Recorde-se, entre outros, as produções de Hal Winner sobre a música de Nino Rotta (“Amarcord”, com Carla Bley, o pianista Jaki Byard, Chris Stein e Deborrah Harry, etc.), ou de Kurt Weill (“Lost in the Stars”, com Marianne Faithfull, Lou Reed, Kronos Quartet, John Zorn, Tom Waits, de novo Carla Bley, Richard Butler, etc.), ou de trabalhos dedicados à recriação da música dos Beatles, Velvet Underground, Beach Boys e Neil Young.

No caso do disco agora editado, trata-se, segundo a entidade promotora, de um tributo a Leonard Cohen visando “captar a atenção da juventude para o poeta-compositor-cantor” e ao mesmo tempo “anunciar a edição, em Janeiro de 1992, do novo álbum” do artista canadiano.

Artistas como John Cale, Nick Cave, Bill Pritchard, os Pixies ou os R. E. M., para além de assinar as respectivas versões, deixam-se fotografar com a banana. A partir de agora a juventude deixa de ter desculpas para ignorar a obra do mestre.

 

 

O homem

 

Nasceu em Montreal, Canadá, a 21 de Setembro de 1934. Começou por integrar a banda “country” The Buckskin Boys, aos 20 anos de idade, enveredando depois por uma carreira a solo que lhe viria a granjear a reputação de poeta e compositor depositário dos despojos amorosos e dos sonhos africanos de toda uma geração a quem custou a transição entre duas décadas.

Gravou o primeiro álbum em 1968, “Songs of Leonard Cohen” que incluía o clássico “Suzanne”. O Canadá encontrava um bom equivalente para Dylan, na pele do visionário, místico e incorrigível apaixonado que, álbum após álbum, viria a construir um dos pilares mais sólidos da tradição dos trovadores deste século. Possuidor de uma veia poética quase sempre pessimista, disseminada por dez livros e outros tantos discos – escreveu um dia: “Às vezes consigo experimentar a doçura da morte.” –, construiu uma religião pessoal, baseada na redenção pela dor e pela solidão, ás quais as sucessivas desilusões amorosas acrescentam uma carga de maior negritude. “Avalanche”, “The partizan”, “Joan of Arc”, “So long, Marianne” são algumas das canções para sempre imortalizadas nas palavras e na voz enigmáticas de um dos compositores-autores mais negligenciados de sempre. O disco de homenagem vem de algum modo repor a justiça e relançar a carreira de alguém contra quem o tempo nada pode, desde que haja uma princesa e um castelo a conquistar.

 

DISCOGRAFIA DE ÁLBUNS

 

Songs of Leonard Cohen (1968) – faixas A2, A4, B1 e B2 de “I’m Your Fan”

Songs from a Room (1968) – A5

Songs of Love and Hate (1970) – B3

Live Songs (1973)

New Skin for the Old Ceremony (1974) – A1, C2, C4 e D2

Death of a Ladies’ Man (1978) – B4 e C5

Recent Songs (1979)

Various Positions (1984) – D4

I’m Your Man (1988) – A3, C1, C3, D1 e D3

 

 

A banana

 

Fruto tropical (do género bacáceo), muito nutritivo e apreciado, produzido pelas bananeiras (in “Dicionário da Língua Portuguesa”, Porto Editora, 1989). Ainda segundo a mesma obra, pode significar uma “ficha eléctrica individual” ou uma “pessoa sem energia, indolente, palerma”. Observando as fotografias, fica-se com a ideia que o termo se aplica aqui na primeira acepção.

Em música, a banana tem sido várias vezes utilizada, em diferentes ocasiões e contextos, acrescentando um sabor exótico e uma imagem geralmente picante à arte dos sons. A sua forma peculiar presta-se, com alguma frequência, a piadas de carácter erótico ou a interpretações mais ou menos dúbias sobre as intenções dos seus utilizadores. Citando alguns casos, logo ocorre a figura inconfundível de Carmen Miranda, que, entre outros frutos e legumes, recorria à banana como enfeite ou como chapéu. Também Josephine Baker costumava usar um cinto com bananas, penduradas à volta da cintura. É célebre a obsessão do excêntrico Kevin Ayers por este fruto: dois dos seus álbuns têm como título “Bananamour” e “Yes, we Have Mananas, so get your Mananas Today”; costumava além disso jogar xadrez com bananas em vez das peças habituais. Os Velvet Underground não hesitaram, por seu lado, em ilustrar a sua obra-prima “Velvet Underground & Nico” com a famosa hiper-realista de Andy Warhol na capa. Inúmeras letras mencionam a banana. Mencione-se ao acaso a enigmática asserção dos Faust, em “So Far”: “Daddy take a banana, tomorrow is sunday.” O assunto não é pacífico. Se a oportunidade surgir, trataremos dele de forma mais pormenorizada, se possível com fotografias detalhadas.

 

 

Os fãs, faixa a faixa

 

The House of Love

“Who by fire”

Aproximação convincente ao tom habitual de Cohen, recriando no acompanhamento da guitarra acústica, o insustentável peso da dor e a questão metafísica essencial de “saber quem”. A própria voz de Guy Chadwick imita com bastante credibilidade a do canadiano. Como se a paisagem toda pudesse ser reproduzida num postal.

 

Ian McCulloch

“Hey, that’s no way to say goodbye”

A mesma despedida angustiada (tema omnipresente na obra de Cohen). Suave e interiorizada na versão original. Electrificada e arranhada na do vocalista dos Echo and the Bunnymen, que optou pela táctica fácil da transposição, através do decalque nota a nota da melodia, com a tónica no trio convencional guitarra-baixo-bateria. O efeito é eficaz, mas pouco criativo. Há porventura outras formas de dizer adeus.

 

Pixies

“I can’t forget”

Reconciliação bem sucedida entre os intimismos de outrora com a descoberta da tecnologia digital. Os sintetizadores tomam conta das operações sem que a electricidade consiga destruir a magia de antanho. Curiosa a inflexão dos Pixies que, ao invés, procuraram na acidez das guitarras o registo adequado para descrever as imagens de uma América mítica, sempre em fuga, a correr contra o Futuro.

 

That Petrol Emotion

“Stories of the street”

Um dos grandes temas de Leonard Cohen. Sobre a arte do equilíbrio no fio da navalha. Entre o suicídio e o amor. Passagem da ponte entre duas épocas, entre o céu e o abismo. Passagem de nível. Passagem de testemunho. O fim do sonho americano. A rosa esmagada na vertigem da auto-estrada. E um homem do tamanho de uma estrela, perdido no labirinto do “metro”, à procura de um olhar. Os That Petrol Emotion respeitam essa angústia, como se seu fosse também o dia derradeiro.

 

The Lilac Time

de “Songs from a room”

Ainda uma canção sobre a dilaceração, dos temas preferidos do autor. Os Lilac Time acentuam o ambiente litúrgico, substituindo a profundidade trágica do violoncelo, no original, por uma abertura espacial fabricada no estúdio, que consegue trazer para o tema alguma claridade. A tortura interior tornada veículo privilegiado ao serviço da pop melancólica.

 

Geoffrey Oryema

“Suzanne”

Quem nunca trauteou, ao menos uma vez na vida, a melodia simples e linear de “Suzanne”? Ou com “ela” aprendeu os primeiros acordes na guitarra? Canção de entrega, de corpos tocados pelo sopro do espírito, de luzes doiradas reflectidas no espelho de rios infinitos, como eram todos os rios no sonho colectivo dos 60. Oryema acrescentou-lhe a materialidade de um baixo pneumático, desceu a altura da voz até quase ao gutural e fez, como um feiticeiro, que tudo soasse como se fosse a primeira vez. Sub-repticiamente, a África irrompe nos últimos segundos, subvertendo ainda mais as reverberações etéreas do original.

 

James

“So long, Marianne”

Das canções mais conhecidas e divulgadas do compositor, sobre o tema eterno do amor. No caso de Cohen, quase sempre infeliz. Mas, como em literatura, o amor feliz não tem história. Pessimista por natureza, lá vai dizendo que por causa dela até se esqueceu de rezar aos anjos e que por isso (e por tantas outras incontáveis desditas) se sente frio “como uma lâmina de barbear”. O banjo, a percussão martelada e o violino marcam a cadência da viagem. Interminável. Tornada irrisória pelos James que lhe subtraem a energia, descartando-se da tarefa com a solicitude competente de um funcionário público.

 

Jean-Louis Murat

“Avalanche IV”

O poema fala de qualquer coisa sentida como monstruosa. De ser humano, nos maus dias. Metáfora sobre a demanda do bem, da ideia platónica de “bem”, da luz oculta nas trevas, do amor incrustado na pedra do orgulho. Leonard Cohen canta o impossível super-homem que se ergue acima das leis dos outros homens, para finalmente tombar do pedestal, também ele sensível ao frémito provocado pelo confronto com o arquétipo feminino. Enfim, mesmo os deuses não conseguem resistir a um rabo de saias, Jean-Louis Murat passa o mito para francês (sempre dá um ar mais intelectual), junta-lhe um ritmo de pavoroso mau gosto, do tipo banda de arraial e apresenta, orgulhoso, o resultado, ao júri da Eurovisão. Cohen a metro, não.

 

David McComb & Adam Peters

“Don’t go home with your hard-on”

Uma fraqueza estimulante. Espécie de “Ob-la-di ob-la-da” com caução cultural, com direito a fanfarra e serviço de bufete. O tema fala de coisas de superfície, de “salões de beleza”, de “eye-lid”, de máscaras de baile que encobrem a carne. No disco em que Cohen troca os lamentos soluçados pela varinha mágica dos arranjos rítmicos de Phil Spector, sabe bem escutar a sua voz liberta do divã do psiquiatra. Quanto aos discípulos, trocam a fanfarra por sininhos de Natal e por acessos de acne electrónico em que cabe o catálogo inteiro de efeitos vocais. Como se aos meninos tivesse sido dado o estúdio de presente.

 

  1. E. M.

“First we take Manhattan”

Por incrível que pareça, Leonard Cohen soa aqui como os Yello. Escute-se a maneira como canta “Firts we take Manhattan, than we take Berlin” ou “you loved me as a loser”. Repare-se como as caixas de ritmo fazem a festa, com a pista de dança no horizonte. Uma salada exótico-electrónica, cheia de corantes. Para os incondicionais da primeira fase, é uma tragédia. Talvez uma traição. Quem não tem culpa nenhuma são os R. E. M. que, como acontece em tudo o que tocam, alcançam a perfeição. Michael Stipe e companheiros restituem ao tema a dignidade perdida. Não se trata aqui tanto de uma versão, mas da apropriação total, e uma assimilação completa do essencial, reposto de forma gloriosa num outro universo.

 

Lloyd Cole

“Chelsea hotel”

Vintage Lloyd Cole, demasiado aprisionado ao que dele se esperaria. As típicas sinuosidades vocais não disfarçam a falta de imaginação. Entre a homenagem de Cohen a Janis Joplin e o “pastiche” de Dylan, resta a história que só alguns viveram mas muitos procuram contar.

 

Robert Forster (ex-Go Betweens)

“Tower of song”

Muito estranho, o original. Fantasmagórico. A voz do trovador a 16 r.p.m. Uma pianola desafinada no quarto dos brinquedos. Um balanço dolente com referências a Hank Williams e ao “voodoo”. Magia a que Forster retira a negritude, prescindindo dos mistérios e filtrando a melodia por um “country blues” escorreito e poderoso. A virtude reside neste caso na tradução radical de um tema fechado sobre si mesmo. E na diferente valorização de um texto impermeável a leituras redutoras.

 

Peter Astor (ex-Weather Prophets)

“Take this longing”

Clonagem razoável da voz de Leonard Cohen. À volta tudo é mais gelado, com guitarras milimétricas soltas na imensidão reverberada do arcanjo, penetrada, ao longe, pelos acentos e acenos de Heidi Berry. Importante: o espírito não é atraiçoado. Mesmo que os ritmos automáticos desempenhem metade da tarefa.

 

Dead Famous People

“True love leave no traces”

Anos 50 revisitados. Memórias de um tempo de beijos roubados ao crepúsculo. De brilhantina, tranças atrevidas e saias de euforia. De automóveis berrantes e pranchas de “surf” quando o rock’n’roll não se envergonhava de ser meloso. De namoros iguais a Hollywood. De dias mais felizes. Um Cohen optimista numa história cujo “happy end” os Dead Famous People confundem com lantejoulas de casino. O órgão de coro e as vozes femininas não escondem os seus amores pelas praias cinzentas de Isabel Antenna. Inofensivo.

 

Bill Pritchard

“I’m your man”

Parece Lou Reed mas não é. Bill Pritchard, então, como de costume, exagera. Swing arrastado, com simulação de violino e trompete “mariachi” sintetizados. Em todo o caso, um arranjo brilhante. Como se Pritchard se tivesse infiltrado no organismo de Cohen para melhor lhe sugar a alma e o sangue. Elegia do “crooner” imortal, requintado, inteligente e eternamente sedutor. Afinal a mesma, outra, história de amor sempre por reinventar.

 

Fatima Mansions

“A singer must die”

Inusitada a forma como os Fatima Mansions, fazendo jus à designação que ostentam, retiram todo o peso à canção, atirada para o alto por um vibrafone em levitação, enquanto a manivela do realejo acompanha cada volta da noite. Umas das surpresas agradáveis do disco que deixa antever as salas mais escuras das “mansões de Fátima”.

 

Nick Cave and the Bad Seeds

“Tower song”

Peixe abissal habituado à escuridão das profundidades (recorde-se a anterior versão de um tema de Cohen, “Avalanche”), Nick Cave faz o que quer da canção, massacrando-a até ao limite do suportável e obrigando-a a respirar ao seu próprio ritmo. Entre o grotesco e o sublime. Para Nick Cave, a música é sinónimo de carnificina e a tragédia carnaval. Rock’n’roll descarnado, em chaga. Tal como Foetus. Ou Jim Morrison, com quem Cave aqui por vezes parece confundir-se num perturbante fenómeno de mimetismo. Sobretudo nos interlúdios declamados a fazerem lembrar a litania trágica de “The end”. Regressão luxuriante à matriz do rock, deixando um rasto de destruição pelo caminho (incluindo a do ícone Presley, uma pouco à maneira paródica dos Dread Zeppelin). A harmonia da demência.

 

John Cale

“Hallelujah”

Almas gémeas, Cohen e Cale partilham as regiões do despojamento e da desolação. No fim, falam com Deus. O “espiritual” salmódico do primeiro descarna-se ainda mais, até nada restar, no segundo, senão o piano, a voz e a fé, nas palavras e na devoção ao “Lord of song” a que os versos aludem. Cale fez o mais simples e o difícil. Como diz a letra: “Não podia sentir, por isso tentei tocar.” Tocou no âmago. Onde floresce a rosa, no centro da cruz.

songs from a room – aqui