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June Tabor – “An Echo Of Hooves”

02.01.2004

June Tabor
An Echo Of Hooves
Topic, distri. Megamúsica
8/10

June Tabor – Sonhos De Uma Noite De Inverno

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Mais embrenhada na folk do que nunca, June Tabor adapta em An Echo of Hooves a tradição lírica dos cancioneiros inglês e escocês à sua própria personalidade de diva da noite.

Com a passagem dos anos, o rosto foi-se tornando mais sereno ao mesmo tempo que uma luz difusa se desprende da expressão. June Tabor não receia expor as mudanças do corpo – deixando-se, mais uma vez, fotografar em grande plano para a capa do novo álbum, “An Echo of Hooves” – porque estas não são mais do que a medida, a forma extrerior de um brilho e de uma voz que, cada vez com maior intensidade, vão lavrando uma obra ímpar na música popular dos nossos tempos.
June Tabor tornou-se a cantora folk que transcendeu as geografias da tradição. E, no entanto, “An Echo of Hooves” parte das canções e do imaginário folk das Ilhas Britânicas, como se estes se confundissem com os caminhos da sua própria alma. “As baladas em língua inglesa e escocesa representam a ‘story telling’ na sua expressão mais pura e premente. Quando as estiverem a ouvir – porque estas são canções em que a letra e a música são igualmente importantes – sintam o vento e a chuva, contemplem o nascer da lua e captem ‘an echo of hooves’ no ar da noite”, escreve na contracapa do disco. Palavras cuja poesia é, de certa forma, traída quando o dicionário propõe como única tradução para “hooves”: “meteorismo, doença do gado com dilatação do estômago provocado por gases”. Tratar-se-á de meteoritos cheirosos que ao deflagrarem emitem os característicos, mas tão bucólicos, odores da bosta de boi, metáfora poética para o excesso de beleza (a “dilatação do estômago”…) e as virtudes da vida no campo? Seja como for, abandonemos este momento de enlevo e penetremos no âmago da coisa, que é como quem diz, na música. Que é como quem diz, num sonho. Que é como quem diz, na voz de June, uma voz que, como os raios da lua, provoca esse efeito de abrir uma fenda na realidade para dar passagem a uma dimensão onde tudo está suspenso. A música tradicional, na sua vertente mágica e onírica, respeita e diz respeito, precisamente, a esta condição.
“An Echo of Hooves” reúne onze temas tradicionais, incluindo “Lord Maxwell’s Last Goodnight”, que June Tabor já seleccionara para “Ashes and Diamonds”, de 1977, e, a fechar, “Sir Patrick Spens”, que não escutávamos desde o clássico “Full House”, dos Fairport Convention. Ausência total de originais numa imersão a cem por cento no cancioneiro. Na lista de acompanhantes, a par dos habituais Huw Warren (piano, violoncelo, acordeão), Mark Emerson (violino, viola, piano) e Tim Harries (contrabaixo), estão também Martin Simpson (guitarra), 23 anos depois do seu dueto com a cantora em “Cut Above” (1980), e, maior e mais agradável surpresa, Kathryn Tickell, nas “Northumbrian Pipes”.
Para trás ficaram heterodoxias como o punk-folk enfiado num blusão de cabedal de “Freedom and Rain”, com os Oyster Band, colecção de “standards” “Some Other Time” (onde é possível saborear a inolvidável experiência que é escutar June a cantar “All tomorrow’s parties”, dos Velvet Underground) ou, em menor grau, as cintilações estelares de “Aqaba”, “Angel Tiger”, “Against the streams”, “Aleyn” ou “A Quiet eye”. June Tabor fez a viagem interior para emergir, mais bela, centrada e lúcida do que nunca, ao ar livre da vida, num retorno (que a cada novo álbum parece tornar-se irreversível) às raízes profundas do seu canto, a música tradicional.
June Tabor está, de certa forma, só nesta viagem. Do outro lado do horizonte apenas se vislumbra Norma Waterson. São elas as sobreviventes de uma devoção e integridade sem limites. Shirley Collins desapareceu perdida num medo de papões e infortúnio que alguns “homens de negro”, como David Tibet ou Steven Stapleton, procuram congelar como emanação de um outro tipo de magia… Maddy Prior diverte-se com os mitos e constrói uma “new age folk” porventura chocante pelo excesso de colorido. Outras, como Linda Thompson, Jacqui McShee ou Mandy Morton perduram como fogos-fátuos cuja lembrança continuamos a estimar.
June, não. June permanecerá até ao fim na senda da noite que conduz ao silêncio. Silêncio que impregna cada nota, cada inflexão, cada pausa, cada acentuação, cada ornamentação da voz em “An Echo of Hooves”.
“The Battle of Otterburn” e “Hughie Graeme” destacam-se pela simples razão de neles se fazerem ouvir a “erotic pipes” de Kathryn Tickell – a sereia. “Bonnie James Campbell” é outra inflexão no génio de “Ashes and Diamonds” com o piano de Huw Warren a emprestar-lhe as cores do impressionismo. Para quem se quiser ficar nos arranjos “folky” com o selo dos anos 70 há “The duke of Atholl’s nurse” e “Young Johnstone”, ambas com a guitarra de Simpson. O momento de canto “a capella” acontece em “Bare Willie”, enquanto a continuação do processo de interiorização e renovação encetado com “Aqaba” chega com “The cruel mother”. Por fim, não vale a pena tentar encontrar semelhanças entre “Sir Patrick Spens” dos Fairport Convention de 1970 e o mesmo tema vocalizado por June Tabor. O que naqueles era profusão de vestes e ambiente medievais em June é drama, tempestade e morte. “for I saw the old moon late last night/ With the new moon in her arms/ Oh master dear if you set to sea/ I fear you’ll come to harm”. A velha lua morreu ontem com a nova nos braços. June Tabor traz a eternidade no seu canto. Curioso: A sua voz soa em “An Echo of Hooves” menos grave. Como se tivesse subido um degrau das escadarias que conduzem ao céu.

June Tabor – Aleyn

12.09.1997
FOLK
A Noite
June Tabor
Aleyn (8)
Topic, distri. Megamúsica

junetabor_aleyn

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Philémon, herói de banda desenhada, penetra nas várias letras que compõem a palavra Oceano Atlântico, aí se desenrolando as suas aventuras. June Tabor há muitos anos que faz o título dos seus álbuns começarem pela letra “A”. “Airs & Graces”, “Ashes & Diamnonds”, “Abyssians”, “A Cut Above”, “Aqaba”, “Angel Tiger”, “Against the Streams” e agora “Aleyn”. “Aleyn” significa “só” ou “solitária”, em língua “Yiddish”. E solitário e cada vez mais despojado (na foto da capa, enverga trajes monásticos…) é como se apresenta o mundo desta cantora que soube reservar para si um nicho particular na música inglesa de raiz folk das últimas duas décadas.
Em “Aleyn” estão expostos alguns aspectos que já se adivinhavam nos anteriores trabalhos, os magníficos “Angel Tiger” e “Against The Streams”. A saber, que, cada vez mais, a pureza de um estilo único e inconfundível em toda a música inglesa, converge numa depuração formal que aqui chega a confundir-se com algum academismo. Um estilo caracterizado pelas típicas ornamentações vocais que eram timbre dos primeiros álbuns, marcadamente “folk”, e agora cristalizaram numa teatralização emocional encenada sílaba a sílaba, nota a nota. Por outro lado, a produção, da responsabilidade de John Ravenhall, usou e abusou da reverberação, omnipresente, de modo a dilatar a espacialidade do som até criar a ilusão (?) de uma voz, a voz “solitária”, reinando num lugar de absoluta interiorização e sem vizinhança à vista.
Mas isso que em “Aqaba”, “Angel Tiger” e “Against The Streams” representava ainda a fronteira de uma solidão, sem dúvida, mas partilhada num registo de intimismo que exigia a participação afectiva do ouvinte, em “Aleyn”, pelo contrário, convida à distanciação e a uma contemplação iminentemente estética.
Claro que é impossível ficar indiferente a esta beleza gelada, com a perfeição de uma alma esculpida com o detalhe de uma estátua clássica. O tom, de grandeza e distância quase sobrenaturais, é dado logo de início, numa versão arrepiante de “The Great Valerio”, de Richard Thompson, uma das canções da obra-prima “I Want To See The Bright Lights Tonight” que o ex- Fairport Convention gravou com a então sua mulher, Linda. “I Wonder What´s Keeping My True Love Tonight” é o primeiro dos oito tradicionais de “Aleyn”, aos quais se podem acrescentar outras duas composições, uma de Ralph McTell (“Bentley and Craig”), outra de Maggie Holland (“a Proper Sort of Gardener”), qualquer destes compositores ligado umbilicalmente À música tradicional inglesa. “No Good At Love” insere-se no mesmo universo da canção de cabaré passadista, de Mathilde Santing, no qual a própria June Tabor já se aventurara no álbum “Some Other Time”. “Bantley and Craig” narra uma história verídica de crime e tragédia, onde um inocente é condenado à forca e um assassino menor posto em liberdade. A belíssima prestação vocal de Tabor dispensava a redundância patética do saxofone de Mark Lockart. Presença mais indispensável do que nunca na fase mais recente da cantora é o piano de Huw Warren, parceiro privilegiado nesta viagem rumo aos glaciares. Sem a humanidade da sua melodia um tema como “The Fiddler”, sobre um episódio do afundamento do paquete “HMS”, em Maio de 1941, no qual pereceram 1300 vidas, a sensação de terror e abandono seriam insuportáveis. Não é, por certo, coincidência, que “Aleyn” não inclua qualquer vocalização “a capella”, facto obrigatório ao longo de toda a produção prévia de June Tabor. Aqueçamo-nos então ao som, este sim caloroso, do acordeão de Andy Cutting (ex-Blowzabella), no tradicional “April Morning”, antes da noite tombar com violência em “Di nakht” (“A Noite”), o tal tema cantado em “Yiddish”, escrito em Nova-Iorque em 1929 por dois emigrantes dos países do Leste – sobre o isolamento da comunidade europeia judaica radicada naquela cidade – e transmitida a June Tabor por um sobrevivente de Auschwitz. “Não há ninguém a meu lado na noite / Só a noite está comigo”. Ninguém parece estar ao lado de June Tabor nesta sua passagem pelo escuro. Uma grande composição, exponenciada por uma vocalização sublime. Inevitavelmente, por uma questão de sobrevivência, segue-se outro tradicional, “The Fair of Islington / Under the Greenwood Tree”, como “Glory of the West”, recolhido do incontornável cancioneiro publicado pela primeira vez em 1679, “English Dancing Master” (olá Ashley Hutchings…) onde prevalece a naturalidade da June Tabor do circuito “folk” (julgamos mesmo que este tema figura, com um título diferente, num dos seus primeiros trabalhos) a mostrar que nem tudo é tão negro como aparenta ser em “Aleyn”.
“Go From My Window” soa igualmente familiar, respirando aquele tipo de tristíssima melodia embalada pelo piano, com que Tabor nos familiarizou a partir de “Aqaba” e a que é difícil resistir. Até ao final predomina a June Tabor “folky”, com a reverberação a ceder à convicção de uma voz que sabe pisar orgulhosamente este terreno. É esta suspensão que permite a “Aleyn” explodir num momento de gloriosa ascenção, em “Johnny o’Bredislee / Glory of the West”, cujos arranjo e interpretação são dignos de figurar em qualquer antologia da “folk” britânica. Apetece pedir a June Tabor que saia do templo de amargura em que a sua solidão criativa a encerrou, e volte a provar a luz do dia.

June Tabor – “A Quiet Eye” + Steeleye Span – “The Journey” + Carnival Band – “Hoi Polloi” (conj.)

28.01.2000
World


Luar de Junho Sobre o Carnaval

“A Quiet Eye” ficou de fora da lista dos melhores do ano passado (o disco chegou tardiamente Às nossas mãos). Paciência. June Tabor, a voz da noite, continua a gravar álbuns com títulos que começam pela letra “A” e imagens do seu gato na capa. Sente-se, disco após disco, que um manto de névoa luminosa se adensa sobre esta voz, cada vez mais grave e depurada, de uma das maiores cantoras inglesas vivas. “A Quiet Life é um disco folk de uma solidão tranquila (em vez de “A Quiet Eye” poderia chamar-se “A Quiet I”) composto na maioria por temas tradicionais, incluindo a “contemporary folk” de Maggie Holland (“A Place called England”), Richard Thompson (“Waltzing’s for dreamers” e “Pharaoh”), Bill Caddick (“The Writing of Tipperary”) e Ewan McColl (“The first time ever I saw your face”), diferindo neste aspecto de anteriores trabalhos, como “Some other time” e “Angel Tiger”, que abrangem um reportório mais geral. Com o “pormenor” de June Tabor tornar cada balada, por mais próxima que esteja das raízes ancestrais, num “standard” para a eternidade. Destaque, ao nível dos arranjos, para o habitual piano de Huw Warren e para o bom gosto evidenciado na maneira como é utilizado um naipe de metais que mais do que seguir a linha “morris épica” dos Brass Monkey opta ora pela melancolia majestosa que Shirley e Dolly Collins aprimoram na obra-prima “Anthems in Eden”, ora por um diletantismo “jazzy” sabiamente doseado.
Se, ao falarmos das quatro grandes damas da folk britânica actual, Shirley Collins é a riqueza do timbre, Maddy Prior a arte da ornamentação e Norma Waterson – rainha incontestada – a emoção em estado puro, June Tabor á a beleza formal, a lua que À distância contempla o mundo que se escapa para além do horizonte.
“A Quiet Eye” é uma viagem entre a world music exótica de “Pharaoh” e o “tour de force” “folky” “The Writing of Tipperary/It´s a long way to Tipperary”, em que June recupera deforma admirável alguns dos ambientes do fabuloso “Ashes and Diamonds”. Nove minutos de história sagrada e de demanda, em múltiplas etapas, do amor – como já não ouvíamos desde que Bob Pegg, um dos inventores do folk rock; escreveu com os Mr. Fox a litania “The Gipsy” – que por si sós justificam a aquisição urgente deste disco (Topic, distri. Megamúsica, 8/10).

steeleyspan_thejourney

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Em tempo de merecida festa estão os Steeleye Span, outra instituição da folk britânica que, à sua conta, já levam 30 anos de existência, só sendo batidos, em matéria de longevidade, na Irlanda, pelos decanos Chieftains e Dubliners e, em Inglaterra, pelos “rivais” de sempre, Fairport Convention. Recuperados de um período de decadência que ameaçava transformar o grupo numa caricatura grotesca do passado, com o mais do que interessante “Time”, de 1996, os Steeleye Span regressam ao activo com um duplo CD, “Journey” (na foto), gravado ao vivo em Londres, em que fazem um resumo musical de toda a sua carreira e para o qual convidaram todos os músicos que, em diferentes fases, fizeram parte do grupo. “Journey” evolui desta forma por oredem cronológica, apresentando uma sucessão de formações em rotatividade por onde passaram, além de Gay Woods, segunda voz feminina dos Steeleye na sua fase inicial, Martin Carthy, Ashley Hutchings e John Kickpatrick, qualquer deles uma instituição da folk inglesa. “Journey” vale essencialmente por esse desfile de memórias, já que nalguns casos as interpretações ao vivo deixam algo a desejar, não fazendo esquecer a excelência de toda a obra de estúdio do grupo, ao todo nove álbuns compreendidos entre “Hark!” The Village Waits”, de 1970 e “Rocket Cottage”, de 1976 (Park, distri. Megamúsica, 7/10)

Com Maddy Prior estiveram, em álbuns como “A Tapestry of Carols”, “Carols and Capers” e “Hang up Sorriw and Care”, os Carnival Band, que durante esse period forma considerados uma espécie de banda de acompanhamento da cantora dos Steeleye Span, numa vertente quase exclusivamente vocacionada para a música antiga. Mas Maddy saiu e os Carnival Band emanciparam-se, podendo finalmente mostra que são muito mais do que uma simples banda de apoio. Em “Hoi Polloi” dão mostras ainda por cima de uma dose de loucura e de versatilidade que não se adivinhava nos tempos em que emprestavam os seus “shawns”, flautas de bisel, “curtals” e gaitas-de-foles às pavanas, “bransles”, “estampies” e sarabandas da Idade Média e do Renascimento. Em “Hoi Polloi” a música antiga (do “Terpsichore”, de M. Praetorius, uma das bíblias do género) relida em modos semelhantes aos dos Blowzabella ou, mais recentemente, de Philip Pickett, convive com tradicionais da Macedónia, Ucrânia e Sudão, uma desbunda para bater o pé no estrado com base num tema dos Dixie Dregs, uma balada, “marta” (dedicada à cantora húngara Márta Sebestyen?), com uma parte de violino no estilo “ceguinho” à esquina a pedir esmola”, passando por um delicioso momento de “ragtime”. Uma saudável irreverência que faz jus ao nome “Banda de Carnaval”… (Park, distri. Megamúsica, 8/10)