Arquivo mensal: Fevereiro 2019

John Surman – “Free And Equal” + John Taylor, Marc Johnson, Joey Baron – “Rosslyn” + Tord Gustavsen Trio – “Changing Places” + Christian Wallumred Ensemble – “Sofienberg Variations”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 21 Junho 2003

A liberdade e a igualdade entre os homens, segundo John Surman, estendem-se ao jazz que se faz hoje na Europa. Da Inglaterra à Escandinávia, mudam-se os sons e troca-se de lugares.


O inglês romântico

JOHN SURMAN
Free and Equal
8 | 10

JOHN TAYLOR, MARC JOHNSON, JOEY BARON
Rosslyn
8 | 10

TORD GUSTAVSEN TRIO
Changing Places
7 | 10

CHRISTIAN WALLUMRED ENSEMBLE
Sofienberg Variations
7 | 10

Todos ECM, distri. Dargil



Começou por ser um dos avatares do novo jazz inglês dos anos 60/70, como elemento dos revolucionáros Trio e, a solo, assinando clássicos como “How Many Clouds Can you See?”, “Tales of the Algonquin” e “Westering Home” (fusão pioneira com ambiências célticas). A entrada para a ECM assinalou o início de um percurso que fazia a síntese entre a escola minimalista, a eletrónica e o jazz ambiental, numa série extensa de obras entre as quais se incluem “Upon Reflection”, “The Amazing Adventures of Simon Simon”, “Such Winters of Memory”, “Witholding Pattern”, “Private City” e “Road to St. Ives”.
Coincidindo com o abandono do sintetizador, instrumento que de início funcionou como principal elemento estruturador das sequências repetitivas mas que, progressivamente, se veio a revelar limitador de um discurso mais amplo, Surman encetou um percurso de regresso a um jazz, se não mais standardizado, pelo menos adequado a formatos instrumentais mais clássicos, fase de que é exemplar o álbum “Adventure Playground”, já dos anos 90.
Através da criação do coletivo The Brass Project (com John Warren) assiste-se a uma consequente ênfase numa escrita mais vasta, para big band, de que “Proverbs and Songs” e “Coruscating” tinham constituído já magnífica amostra. O novo “Free and Equal”, inspirado na Declaração dos Direitos Humanos, decretada pelas Nações Unidas em 1948, e gravado ao vivo no Queen Elizabeth Hall, em Londres, no concerto de abertura do Festival de Meltdown (de que Robert Wyatt foi o programador), reúne Surman (nos habituais saxofones soprano e barítono e clarinete baixo), Jack DeJohnette (bateria e piano) e a orquestra de metais London Brass, reatando-se deste modo uma colaboração entre estes dois músicos que remontava, no contexto da música de câmara, a um trabalho conjunto com os Balanescu Quartet.
“Free and Equal” alterna sequências instrumentais majestosas – por vezes timbricamente próximas das conceções de Carla Bley e Michael Mantler (“Groundwork”, “Sea change”), também de Michael Gibbs, ou completamente imbuídas do espírito do barroco e do pré-barroco (sendo que o reportório da London Brass tem em Gabrielli um dos seus compositores emblemáticos), como “Back and Forth”, onde também afloram as frases melódicas e o romantismo característicos de Surman, bem como o espírito de um Michael Nyman, em qualquer caso em sintonia com uma inequívoca “britishness” – e secções improvisadas. O equilíbrio ou, parafraseando o título, a liberdade e igualdade de direitos, entre ambas as vertentes é perfeito. Da escrita e texturas de banda larga com os diálogos mais soltos entre os dois solistas. Entre Surman, o melodista inesgotável (“Debased line” não é uma linha, é uma estrela), e DeJohnette, o “cantor” de ritmos. Notável.
Recolhamo-nos agora ao mais clássico dos clássicos formatos do jazz, o trio piano/contrabaixo/bateria, com John Taylor (piano), Marc Johnson (contrabaixo, o homem dos Bass Desires), Joey Baron (bateria, Mr. Downtown), em “Rosslyn”. Companheiro de Surman nos anos de descoberta e aventura da “free music” inglesa, no fantástico “Pause, and Think again”, fundador dos Azimuth, Taylor possui a introspeção de Paul Bley, a intuição melódica de Jarrett e uma parte da alma moldada por Bill Evans. “Rosslyn” oferece, em conformidade, o tom contemplativo e a nostalgia mas também a firmeza. E o impressionismo em desenho “new age” (não é um disco da Windham Hill mas quase parece…), no dulcíssimo título-tema.
Periodicamente o jazz escandinavo marca presença na ECM, desta feita ainda sob a égide do trio piano/contrabaixo/bateria, respetivamente às ordens de Tord Gustavsen, Harald Johnsen e Jarle Vespestad. “Changing Places” reforça a tecla Bill Evans de “Rosslyn”. São jardins e salões abandonados no fim das férias de Verão. Lembranças gravadas na areia que a maré apaga. O tempo e paixões esvaídas no eco de palavras imprecisas. Fica-se em silêncio, a escutar “Changing Places”, em lugares que geralmente associamos a canções.
Outra das marcas inconfundíveis da editora de Manfred Eicher, evidenciada sobretudo ao longo da última década, é uma abordagem classizante, mais ou menos regada por elementos étnicos, estética que, vinda destas latitudes, teve em Jan Garbarek e Edward Vesala os precursores. As “Sofienberg Variations” do Christian Wallumred Ensemble – Christian Wallumred (piano e “harmonium”), Nils Økland (violino, “hardanger fiddle”), Arve Henriksen (trompete) e Per Oddvar Johansen (bateria), com o convidado Trygve Seim (saxofone tenor) – representam a variante mais académica e sisuda do género, sem a luminosidade de um Terje Rypdal nem o humor de um Vesala, o que pode significar algum aborrecimento. Formalmente interessantes, falta fulgor a estas sarabandas, “small pictures” e uma “liturgia” com algo de messiaenico… Está certo que deve haver respeito quando se reza e estas “Sofienberg Variations” até conseguem fazer-nos ajoelhar quando o seu ofício verdadeiramente se aproxima do arrepio do Sagrado, como em “Psalm”, algures já no território sacro de uns Hilliard Ensemble. Mas manter a concentração e a elevação não significa esquecer o deslumbramento, o espanto e o riso que o contacto com transcendência também provoca. Aspeto em que estas variações variam pouco.

Chick Corea – “Now He Sings, Now He Sobs” + Chick Corea – “The Complete ‘Is’ Sessions”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 14 Junho 2003

Na antecâmara do “jazz rock”, Chick Corea montou um jogo de ilusões onde a realidade do jazz não é o que parece. E afirmou e estendeu os seus limites quando toda uma geração se ligava à eletricidade.


CHICK COREA
Now He Sings, Now He Sobs
8 | 10
The Complete “Is” Sessions
2xCD
9 | 10
Blue Note, distri. EMI-VC


Chick na Matrix


Pianista de múltiplas facetas — do “latin jazz” ao free jazz, do “cool” ao “hard bop”, da música brasileira e das espanholadas ao jazz rock, passando pelo tecido impressionista e a improvisação, Chick Corea tem sido uma espécie de “rival” de Keith Jarrett, inclusive no bigode.
O homem que em meados dos anos 60 substituiu Horace Silver no quinteto de Blue Mitchell, no Verão do Amor de 1967 marcou presença no quarteto de Stan Getz e, dois anos mais tarde, entrou para o quadro de honra de “In a Silent way”, de Miles Davis (tirando o lugar a Herbie Hancock), é o mesmo homem que, já na década de 70, cedeu ao sol e aos aromas de maresia da música brasileira (com os Return to Forever), cometeu o pecado do funk e da fusão (se “Romantic Warrior” e “The Leprechaun” são queridos mesmo dos apreciadores de rock progressivo, já coisas como “My Spanish Heart” e “Music Magic” são pastilhadas dificilmente tragáveis…) e, finalmente, sacudiu o rock do capote, redescobrindo na ECM e na GRP a luz e os prazeres do jazz.
Mas, em 1968, o jazz corria ainda como jazz, embora as correntes de energia do rock estivessem prestes a infiltrar-se. “Now He Sings, Now he Sobs”, lançado nesse ano pelo pianista em trio com Miroslav Vitous, no baixo, e Roy Haynes, na bateria, é um clássico coreano. Ao contrário do vinilo, com selo Solid State, com apenas cinco faixas, a presente reedição em CD reúne a totalidade dos 13 temas da sessão original. Em remasterização de 24-bits.
Percetível o gosto do pianista pelas ornamentações impressionistas e um fraseado onde a extrema precisão do “touching” se alia a um timbre cristalino. “The law of falling and catching up” prima pelo experimentalismo, com Corea a percutir as cordas do piano e Vitous e Haynes a pulverizarem o tempo, dando sequência a um fabuloso “Samba yantra”, onde o “hard” serve tanto o brasileirismo já latente nas suas conceções como um misticismo recorrente (outro ponto em comum com Jarrett…). “Fragments”, em regime “free”, joga com a aceleração, os círculos, a secura e um fantástico trabalho de pontuação de Haynes, enquanto “Windows” regressa à pura sedução da melodia e às tonalidades “cool”. Um original de Monk, “Pannonica”, e “My
one and only love” permitem vislumbrar por detrás da cortina os olhares de Bud Powell, Bill Evans, Hancock e McCoy Tyner, sublimados por uma síntese visionária.



“Now He Sings, Now he Sobs”, no seu movimento dialético de aproximação e distanciamento da Beleza (“Clinging to beauty; clinging to ugliness”), apresenta ainda um curioso toque de profetismo, na faixa “Matrix”. “O vento sopra sobre o lago/E agita a superfície da água/Assim se manifestando os efeitos visíveis do invisível”, pode ler-se no emblema zen da capa. Ocultação/desocultação, realidade e aparência. Como é a própria estrutura, toda ela ilusória de “Now He Sings, Now He Sobs” (o disco foi montado a partir de fragmentos sabiamante colados e improvisações estruturadas “a posteriori”). “Matrix” que, de entre todos os temas onde o jazz se torna realidade a partir de jogos, é o único tema composto de forma tradicional. Corea, 30 anos antes de Neo, penetrara já no programa de “Matrix”.
Igualmente disponíveis em reedição remasterizada da Blue Note estão “The Complete ‘Is’ Sessions”, gravadas em 1969 em Nova Iorque, por Corea, Woody Shaw (trompete), Hubert Laws (flauta, “piccolo”), Bennie Maupin (saxofone tenor), Dave Holland (baixo), Jack DeJohnette (bateria) e Horace Arnold (bateria e percussão).
Corea integrava então o grupo que gravou com Miles Davis o álbum “Filles de Kilimanjaro”, com DeJohnette e Dave Holland. Período de excitação e descobertas. “Estávamos constantemente a forçar, a tocar de uma maneira completamente livre, à espera que Miles nos dissesse alguma coisa. Como não dizia nada, forçávamos ainda mais.” “The Complete ‘Is’ Sessions” reflete esta liberdade, constituindo um complemento perfeito para a música da fase elétrica do trompetista. Woody Shaw já inoculara no pianista a adrenalina e o veneno da fusão. Maupin delira no “free”. Laws confere lirismo e floreados progressivos. Corea passa grande parte do tempo agarrado ao piano elétrico, continuando as explorações encetadas com Miles, a abrir caminho para a entrada em cena de grupos como os Soft Machine e Nucleus (“Sundance” antecipa obras como “Third”, “42 e 5”, dos Softs, ou “Elastic Rock”, da banda do trompetista Ian Carr). Miles preparava a ogiva nuclear “Bitches Brew”. Os Lifetime de Tony Williams abriam trincheiras com arame farpado. John McLaughlin recebia instruções do seu guru para formar a Mahavishnu Orchestra. Wayne Shorter e Joe Zawinul tinham aprendido, ainda com Miles, os fundamentos que dariam origem aos Weather Report. Na época em que o “jazz rock” se preparava para virar o jazz do avesso, tudo se movia e transformava. Corea, curiosamente, relia os manuais do “hard bop” e do “free”, firme no meio da confusão e excitação que se instalara. Quando o “jazz rock” o agarrou, por fim, o tempo das descobertas, o seu tempo, tinha passado. “Is” é, paradoxalmente, a afirmação da tradição levada ao paroxismo e às fronteiras de um futuro que se revelaria glorioso ou letal para todos os “jazzmen” que ousaram dar o passo em frente.

Gold Sparkle Trio – “Thunder Reminded Me” + Gerry Hemingway Quartet – “Devils Paradise” + Kevin Norton’s Metaphor Quartet – “Not Only In That Golden Tree…” + Ethan Winogrand – “Made In Brooklyn”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 07 Junho 2003


Alimentação a baterias

GOLD SPARKLE TRIO
Thunder Reminded me
8 | 10



O som é cru, direto, musculado. O som dos Goldsparkle Trio: Andrew Barker (bateria), Adam Roberts (contrabaixo) e Charles Waters (saxofone alto e clarinete). Gravado ao vivo em 2001 numa antiga sala de escritório da Knitting Factory, “Thunder Reminded Me” está entre o free jazz e o free rock, a “downtown” e Ornette Coleman. Barker bate forte e feio. O seu solo em “For Billy Higgins”, homenagem a este baterista que integrou os quartetos de Ornette Coleman entre 1959 e 1961, é para castigar. Waters é magnífico no sax alto. Rude e altivo. Ornettiano, pois. Como no título-tema. A tirar melodias do vórtice para logo as despedaçar numa angústia que é também afirmação de vida. No mesmo tema, Roberts dá boa conta de si, num solo com a clareza e o “punch” de um William Parker. E se o mote do grupo passa pela “reconciliação de visões de um ‘jazz future past’”, então “Coronation blues for the Memory Theatre West Coast”, périplo com origem nos “blues”, e “Williamsburg Concerto #1.2”, uma piada ao Concerto de Brandemburgo de Bach, justificam-no plenamente. Ou como eles dizem: “Não fazemos prisioneiros!”

GERRY HEMINGWAY QUARTET
Devils Paradise
9 | 10


Conhecido pela sua participação, nos anos 80 e 90, no quarteto de Anthony Braxton, o baterista Gerry Hemingway formou em 1997 o atual quarteto com Ray Anderson (trombone), Ellery Eskelin (saxofone tenor) e Mark Dresser (bateria). Coloca-se a dúvida: Como pode o diabo habitar no paraíso? Encare-se a questão do seguinte modo: O que Hemingway e os seus companheiros fazem é simultaneamente uma revolta e uma libertação das linguagens tradicionais do jazz, através de uma reconversão que devolve o prazer sob novas formas. Improvisador nato, o baterista mantém latente um estado de tensão que Eskelin estica até aos limites e Ray Anderson, pelo contrário, contraria, distendendo e embalando a música com um gozo infantil, de marchas, “gospel” e “Dixieland”. Entre as várias paisagens diabolicamente paradisíacas, retenha-se, para bem dos nossos pecados, sobretudo o da luxúria auditiva, o diálogo entre o trombone e o sax tenor em “Back again some time” e o extraordinário “swing” que dele emana.


KEVIN NORTON’S METAPHOR QUARTET
Not only in that Golden Tree…
8 | 10



Formado no Inverno de 2000, o grupo Metaphor integra, além de Kevin Norton (bateria, parceiro musical de Braxton, Dresser, Fred Frith e Eugene Chadbourne, entre outros), Masahiko Kono (trombone e eletrónica), Hitomi Tono’oka (vibrafone) e Wilber Morris (contrabaixo). Juntar a revolta de um Cecil Taylor com o lirismo de um Paul Bley, como se diz algures, é uma pista ténue para permitir a navegação num mar de margens bem mais largas. Os dezanove minutos de “Missed you in Coutances, babe” e os dezoito de “It must be” (de novo com o trombone a funcionar como turbina e um vibrafone com sapatilhas de dança e punhais – lembrámo-nos de Stomu Yamashta – num quadro geral que sugere os Spring Heel Jack sem ficha de ligação à terra), tal como os restantes temas, gravados sem ensaios em na Knitting Factory, aconselham ao ouvinte o uso de bússola e lanterna. “Free free music”, delírios eletro-acústicos e uma fúria criativa que parece desprender-se das paredes da Knitting Factory para se colar aos músicos, que finalmente nos deixam, como diz o título de um dos temas, “not drunk, but stunned”, não bêbedos, mas perplexos.

ETHAN WINOGRAND
Made in Brooklyn
7 | 10



Por aqui anda-se mais a direito, sem receio de esbarrar numa esquina traiçoeira ou de tombar num poço dissimulado. “Made in Brooklyn” dança-se de ouvido, ao ritmo de um jazz jovial e do recorrente traço “downtown”, presente principalmente nos saxofones tenor e soprano de Donny McCaslin. Já agora, os outros músicos são o líder Ethan (outra vez um baterista!), Ross Bonadonna (guitarra, baixo, saxofone barítono, piano e sons) e Eric Mingus (contrabaixo elétrico). “Downtown” que, feita neste caso em Brooklyn, tanto pode passar pelo “fake jazz” dos Lounge Lizards (“Skip to my blues”, “Which Congo way”) como pelo conceptualismo de Bobby Previte ou pela eletrónica desfocada de Wayne Horvitz (a influência destes dois mistura-se num tema como “Pepper and thing”). O jazz jorra, certamente, mas por leitos já abertos e um pouco gastos.

Todos Clean Feed, distri. Trem Azul