06.08.1999
Portugueses
Silêncio Do Fundo
Sei Miguel
Token (8)
Ed. e distri. Ananana
Ernesto Rodrigues e Jorge Valente
Self Eater And Drinker (6)
Ed. e distri. Audeo
“Token” e “Self Eater And Drinker” são dois álbuns arrumados na gaveta larga das “novas músicas”. Dos dois, “Self Eater and Drinker” é o que, de modo inequívoco, se situa no epicentro da música improvisada. Estruturado como uma “suite em oito partes”, “Self Eater” vive, como Rui Eduardo Paes cita nas excelentes notas de capa, da “dinâmica criativa dialéctica” e da exploração sistemática do instantes” entre o violino, quase sempre traficado electronicamente, de Ernesto Rodrigues, nos últimos anos acompanhante regular de Jorge Palma, e a parafernália electrónica de Jorge Valente, conotado com projectos de natureza mais esotérica, como os Trioto Flêumico e Fromage Digital.
O problema com que “Self Eater” se debate é, por natureza, irresolúvel. É que, se a “exploração sistemática do instante” pode representar a expressão mais verdadeira do acto de criação musical, a mesma deixa, contudo, de fazer sentido quando “enclausurada” no suporte discográfico. Que sentido faz falar do “instante”, quando o auditor pode avançar ou recuar, seleccionar, repetir ou truncar, sempre que quiser, a música contida no CD? Rui Eduardo Paes diz que, para os dois executantes, “o acto musical é mais importante do que aquilo que dele resulta”, o que aproxima “Self Eater and Drinker” menos das teorias integracionistas de John Cage e mais das tomadas de posição de Derek Bailey sobre o primado do processo sobre o produto final. Mas o problema mantém-se e o que dele resulta em “Self Eater” é uma massa, por vezes impenetrável, por vezes atraente, de estímulos e texturas electrónicos supersaturados em que os programas “composicionais” do computador de Jorge Valente fazem valer os seus direitos sobre a respiração mais visceral (mas não menos abstracta) de Ernesto Rodrigues.
Sei Miguel soube ultrapassar este dilema. Não sem alguma surpresa, atendendo a que, num passado não muito distante, o seu trompete amiúde se escudou num discurso demasiado fechado sobre si mesmo. “Token” (sinal, símbolo), pelo contrário, foi assumido como objecto “estético”, não redutível aos processos da sua elaboração. Mesmo que uma lógica secreta se esconda por detrás, como sugere um dos títulos: “Cube magic (visible sides)”.
“Token é um álbum de composições, grande parte delas sem a presença do trompetista. A improvisação aconteceu, sem dúvida, mas Sei Miguel desatou o nó que Ernesto Rodrigues e Jorge Valente não suberam, ou não quiseram, desatar. Seja ou não fruto do momento, nada em “token” parece resultar do acaso ou da espontaneidade. Nesta medida, é menos um trabalho sobre o “eterno presente” da improvisação do que a congelação de formas que, paradoxalmente, nascem do jazz. Dos blues ao free, passando pelo bebop. “Token” não transcende o tempo, mas tira-lhe as medidas.
Electrónico, nas texturas saborosas que lhe emprestam as intervenções parasitárias de Rafael Toral ou as percussões sintéticas de Luís Desirat, ou no free tropical de “Twilight”, ou com a secura de uma miragem do deserto projectada pelo saxofone barítono de Rodrigo Amado, “Token” leva o archote às profundezas nos 31 minutos de violoncelo solo, por Rute Praça, em “The Ring – for one mixed cello”. Um tema sobre naufrágio e afundamento, como “The Sinking of Titanic”, de Gavin Bryars. E sobre o silêncio do fundo.