Márta Sebestyen – “Kismet”

Pop Rock

14 de Fevereiro de 1996
Álbuns world

Márta Sebestyen
Kismet
HANNIBAL, DISTRI. MVM


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No passado Márta “My dear” Sebestyen habituou-nos a que a identificássemos com os Muzsikas, doutores que não gostam de brincar com as coisas antigas. Ou com os Ökros Ensemble, que ainda gostam menos. Mas a “voz “ da Hungria já nos tinha avisado de que a sua inquietação teria que levá-la inevitavelmente para outro tipo de paragens, menos condicionadas pelos dogmas. “Apocrypha”, conjunto de versões de temas tradicionais reinseridos num contexto de pop electrónica, e a participação no pesadelo industrial dos Towering Inferno constituíram dois avisos sérios. “Kismet”, sem chegar a tais extremos, fica-se por uma passagem dos olhos e do canto, por vezes algo estremunhados, pelas vizinhanças da Europa e pela Índia. Márta Sebestyen resolveu experimentar-se nas tradições irlandesa, grega, bósnia, indiana, búlgara e romena. Acolhemos de braços abertos uma Márta convincentemente irlandesa, em “Leaving Derry quaye”, e a maneira airosa como dessa canção, que lhe foi transmitida por Dolores Keane, saltou para um tradicional grego. Sente-se, porém, a ausência de terreno sólido. A ponte que permitiu a abolição das fronteiras revela-se frágil a uma percepção mais profunda, ou simplesmente atenta. “Kismet” dá, em grande parte dos temas, a sensação de um disco de variedades, onde a voz, por si só, não chega para disfarçar, pelo menos para já, uma abordagem superficial e não poucas vezes musicalmente pobre das diversas tradições nele perspectivadas. Embrulhado numa apresentação politicamente correcta e de inegável bom gosto, “Kismet” deverá trazer um grupo novo de adeptos para a cantora húngara, mesmo que o preço a pagar seja o de ser arrumado ao lado de senhoras como Talitha McKenzie, Loreena McKennit ou Sheila Sandra. (7)



Istanbul Oriental Ensemble – “Gypsy Run”

Pop Rock

17 de Janeiro de 1996
Álbuns world

Istanbul Oriental Ensemble
Gypsy Run
NETWORK, DISTRI. MEGAMÚSICA


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Olhamos hoje para a Europa com outros olhos. Postos no Oriente, ensombrados pela estranheza e com algum receio à mistura. Como se ainda tivéssemos dificuldade em integrar uma extensão psíquica que também é nossa e teima em escapar à racionalidade frígida com que nos ensinaram a deambular pela vida como abutres do Ser. Da Turquia, a invasão é a da música. Neste caso, dos ciganos dos séculos XVIII e XIX, de Istambul e da Trácia, segundo uma tradição que remonta ao século X, formada na intersecção das culturas cigana, grega e judaica. É sobre esta tradição que incide e se desenvolve a música do Intanbul Oriental Ensemble, com a tradicional instrumentação darbouka/ qanun (saltério) / ud (alaúde)/ clarinete/ violino “kemam” e direcção do percussionista Burhan Öçal. Se é sensível uma leitura contemporânea, acentuada por uma produção sofisticada, sobretudo nas improvisações (“taqsim”) sobre os diversos modos (“maqam”) tradicionais, não significa de modo algum um afastamento em relação à essência da música cigana desta região circundada pela Bulgária, a Grécia e o Mar Negro. Possuída pelo virtuosismo, nunca em nome do mero exibicionismo, mas, pelo contrário, obrigada a tal pela riqueza de estímulos envolvida, incluindo a de elementos retirados da música clássica turca, esta é uma música onde a exaltação dos sentidos coincide com a contemplação do Espírito. Visualize-se um jardim e a figura, envolvida em véus, da moira encantada. Ou o céu, do alto de um minarete. (9)



Música Folk / World – Artigo de Opinião – “Estado de Fusão Ou As Virtudes Do Martelo”

Pop Rock

31 de Janeiro de 1996

Estado de fusão ou as virtudes do martelo

“Se houve alguma tendência este ano que me irritou, foi a de transformar os mais diversos estilos de música étnica num papa doce e sintética. Um número infindável de patetices cheias de ‘samples’ ‘étnicos’, textos balofos e autoconvencidos, ‘muzak’ vegetariano, abafadas por caixas de ritmo. Acreditem nas minhas palavras, em cada minuto que passa, pinga um compacto no capacho de entrada com o rótulo ‘Celtic tribal trance’. Garanto-vos que vou pegar num martelo muito grande e desfazer cada um desses objectos degenerados em fragmentos pequeninos…”
Ian Anderson, director da revista “Folkroots”, no seu editorial de Dezembro do ano passado.


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O editorial de Ian Anderson, uma das figuras mais prestigiadas da cena folk internacional, do qual transcrevemos a parte final, saiu no mesmo número que um artigo intitulado “Celtic muzak”, assinado por Colin Irwin, outra das lendas da escrita folk, desde os anos 70 quando ainda integrava a equipa do “Melody Maker”. Colin Irwin tomou como ponto de partida a edição recente do álbum “Riverdance”, de Bill Whelan, já recenseado nestas páginas. Um dos bons exemplos de fusão sobre elementos “célticos”, representativo de uma das tendências actuais mais fortes, no mercado deste género de música. “Riverdance” foi apresentado no Festival da Eurovisão de 1981, na Irlanda, com pompa e circunstância, constituindo a prova real das potencialidades, enquanto objecto rendível, deste tipo de música na balança das exportações.
Enquanto obra de arte, “Riverdance” tem as suas virtudes e os seus defeitos, sendo que a principal das primeiras se traduz sinteticamente na velha, mas sempre actual, questão, já por nós várias vezes abordada, de, seja qual for o trabalho cirúrgico levado a cabo, não perder de vista as origens.
O problema que levou Ian Anderson a pegar no martelo só se colocou a partir do momento em que a folk saiu do gueto onde esteve confinada durante anos, para ganhar peso na indústria discográfica. Se a revolução dos anos 70, personificda por grupos como os Bothy Band, Planxty ou De Danann, foi em primeiro lugar de ordem artística, arrancando a folk do regionalismo de grupos como os Dubliners ou os primeiros Chieftains, para o estatuto de fenómeno urbano, de características universais com repercussões não só nas Ilhas Britânicas como no resto da Europa, a revolução encetada ao longo da presente década deve ser lida a outro nível.
Começa por ser uma evolução natural. Se “da Irlanda para a Europa” era o mote dos anos 70, nos anos 90 é “da Europa para o mundo”. Ao longo deste processo, as questões de produção e de distribuição ganharam preponderância sobre as estéticas.
Sabe-se como estas coisas funcionam. É difícil, à indústria, controlar uma música que desconhece e que, ainda por cima, na origem, corresponde a manifestações de minorias, étnicas, culturais e políticas. A estratégia está então em submetê-la ao crivo da mediatização, vesti-la, adaptá-la a esquemas e fórmulas de produção massificantes e, desta forma, passíveis de ser controladas por fora. Normalizar, adaptar, em última análise, vulgarizar. Dois tipos de músicos vão na onda. Os que não fazem a mínima ideia dos materiais de base com que trabalham e apenas pretendem apanhar o comboio, e os que, com conhecimento de causa e responsabilidades, decidiram entregar a alma ao diabo.
É sob esta luz que se deve avaliar a vaga actual de “fusões”, que começam na embalagem e no “marketing” e terminam, regra geral, na descaracterização e no esvaziamento prematuro até serem devoradas pela vaga seguinte.
A questão do purismo contra o modernismo é uma falsa questão. O Grupo de Cantares do Manhouce não é melhor nem pior do que os Gaiteiros de Lisboa. As Irmãs Goadec não são melhores nem piores do que os Hedningarna. A pureza absoluta de uns não se opõe ao radicalismo formal dos outros. Estão do mesmo lado da barricada. É que, também já o escrevemos, tudo parte do mesmo. Perdida a essência, perde-se a bússola. Encontrado o norte, é permitida a heresia que força as portas do futuro.
Alguém capaz de compreender onde está o nó do problema perceberá de imediato o que distingue um bom disco de fusão dos Hedningarna ou dos Barabàn de um mau disco de fusão dos Deep Forest ou dos Enigma.
É aqui que entra o “celtismo” e todos os crimes que em seu nome têm sido cometidos – com o mercado a saltar de contente com as façanhas dos seus acólitos mais queridos e a indiferença e alguma revolta dos que recusam ceder. A Europa, ávida de avós que dêem sentido ao seu vazio, agarrou-se com unhas e dentes à “inocência” dos sons étnicos. Os oportunistas, caridosos, dão-lhe o placebo em pastilhas coloridas. Quando regressarem os sintomas, já o comboio andará por outras estações. Felizmente, o martelo de Ian Anderson estará sempre disponível.
Nestas páginas traçamos a divisória, no actual estado de coisas (estado de sítio), entre fusões e confusões, em vários territórios da Europa onde a folk fervilha.

COM FUSOS E FUNDOS

Portugal

Não estamos mal. Ou estamos melhor. Né Ladeiras, Brigada Victor Jara e Gaiteiros de Lisboa, mesmo os Romanças, mostraram nos últimos tempos como se funde sem derreter o coração. “Traz os Montes”, “Danças e Folias” e “Invasões Bárbaras” aprenderam a lição antiga dada pela Banda do Casaco. Do lado da chacha, temos ou tivemos os Navegante, Maio Moço, coisas assim.

Espanha

Principalmente a Galiza, aqui mesmo ao lado. Já andou desnorteada, entre o que poderia ter sido, mas não foi, a música dos Armeguin (perdida na “new age”), Matto Congrio (perdida no “reggae”), Brath (perdida numa bateria rock) e Emilio Cão (perdida em fungadelas e numa produção mais berrante que uma gravata). Uxia, surpresa ou não, acendeu uma lanterna e “esta vivindo no ceo”. Os Na Lua ficaram para trás. Perto do Mediterrâneo, não há quem bata os Radio Tarifa.

Ilhas Britânicas

Têm gente para tudo e ainda sobra. Na Irlanda, Shaun Davey ameaça regularmente com as suas sinfonias. Na Escócia, a William Jackson, na mesma moeda, falta sobretudo pulmão. Heréticos de há muito são, em Inglaterra, Ashley Hutchings e a Albion Band. Ou Andrew Cronshaw. Hoje o primeiro continua a dar cartas. Arriscaram muito os Blowzabella. Aos irlandeses (e aqui, cuidado, há que distinguir entre “fusão” e releituras actualizadas da tradição, que é o que fazem ou fizeram os maiores: Planxty, Bothy Band, De Danann, Déanta ou Dervish…), perde-se-lhes a conta. “Fundem” bem Bill Whelan, Four Men & A Dog e Sharon Shannon. “Fundem” mal os Nightnoise (dos manos Ní Dhomnaill, quem diria?), numa “new age” com flores, os Orion, Rare Air (não são bem irlandeses), Celtic Thunder, os actuais Capercaillie, os actuais Clannad, a actual (choque!) Dolores Keane e o Davy Spillane de sempre, a não ser quando tocou música búlgara com Andy Irvine, em “East Wind”. Na Escócia, palmas para Savourna Stevenson e para os House Band. Menos para os Ceolbeg. Na Inglaterra, assobios de vergonha para os actuais fantasmas, Fairport Convention, Pentangle e Steeleye Span, a catarem no caixote dos restos.

França

Na Bretanha gostam muito de “jazz”. Que o digam os Bleizi Ruz, Dédale, Obsession, Ti Jaz ou Une Anche Passe. Os Gwendal também gostavam, mas a partir de “Glen River” foram trucidados por uma caixa-de-ritmos. Erik Marchand faz maravilhas com a música indiana, os Barzaz com a “new age” e os Kemia com um piano romântico. Mais para sul, continuam inclassificáveis os Verd e Blu. Gabriel Yacoub, recuperado do monumental espalhanço “Elemental Level of Faith”, voltou a erguer-se no belíssimo “Bel” e num “Quattre” esotérico. Levam com o martelo Deep Forest, le Gop, Groupe sans Gain, e, com toda a força possível, Alan Stivell e Dan Ar Brás, os dois maiores vendidos à “música gorda”, mais o seu filhote legítimo, o recente “supergrupo” Kadwaladyr, de “The Last Hero”.

Itália

Bons ventos, soprados pelos Ciapa Rusa, Barabàn, Elenna Ledda (Sardenha) e Riccardo Tesi. Não se conhecem maus exemplos. Eros Ramazzoti?

Hungria e Bulgária

No passado, Kolinda e Vizönto. Hoje, Zsaratnók e Vasmalom. Uma grande senhora, a mais tradicional (com os Ökros Ensemble) e a mais moderna, no electrónico “Apocrypha”. Sem contar que esteve no meio dos Towering Inferno, na ópera de pesadelo “Kaddish”. Um grande senhor, búlgaro: Ivo papasov, mestre dos sopros e do “swing” em 13/8. Há uns detestáveis Slobo Horo. Às vozes que falam com Deus e a todos os pecados cometidos em seu nome, vamos perdoar-lhes.

Escandinávia

Podem fazer tudo, que tudo lhes sai bem. Compensam o frio acendendo fogueiras que queimam até à ponta do continente. O filão dos filões. Hedningarna, Garmarna, Hoven Droven, Ottopasuuna, Filarfolket, Den Fule, Värttina, Mari Boine Persen, Mari Kalaniemi, Lena Willemark.