Benny Carter – “Morreu Benny Carter, O Rei Do ‘Swing'” (jazz / obituário)

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terça-feira, 15 Julho 2003


Morreu Benny Carter, o rei do “swing”

AOS 95 ANOS

Benny Carter, saxofonista e compositor e um dos reis do “swing”, morreu. Deixou uma obra vasta e a reputação de subtil inovador

Carter foi um dos primeiros músicos negros a participar nas grandes produções de Hollywood


Benny Carter, saxofonista alto, trompetista, clarinetista, vocalista, arranjador e chefe de orquestra americano, um dos sobreviventes da era do “swing”, morreu no domingo, no hospital Cedars Sinai, em Los Angeles, onde se encontrava internado há cerca de duas semanas, devido a problemas respiratórios e fadiga. Tinha 95 anos e deixou impressas no capítulo correspondente ao jazz clássico, ou “middle jazz”, da “Enciclopédia da Grande Música Negra”, algumas das suas páginas douradas.
Verdadeiro “gentleman”, no estilo elegante que caracterizava o seu modo de tocar, Carter contribuiu com os seus arranjos, as suas composições e os seus ensinamentos, para a formação de músicos de gerações posteriores, como Quincy Jones, seu amigo de sempre, ao mesmo tempo que enriqueceu as “big bands” por onde passou, como as de Fletcher Henderson, Chick Webb (a quem apresentou a cantora Ella Fitzgerald, permitindo à diva do jazz iniciar uma carreira que se viria a revelar brilhante) e Duke Ellington.
A partir de 1950, Carter orientou o seu trabalho para o cinema e a televisão, sendo um dos primeiros músicos negros a participar nas grandes produções de Hollywood.
Formou a sua própria orquestra em 1928, em Nova Iorque, tornando-se mais tarde diretor musical dos McKinney’s Cotton Pickers e dos Chocolate Dandies. Escreveu arranjos para Charlie Johnson, Duke Ellington, Teddy Hill, Count Basie e Benny Goodman. Em 1935 emigrou para a Europa, onde gravou com Django Reinhardt e Coleman Hawkins, entre outros, regressando aos EUA três anos mais tarde, para tocar com Dizzy Gillespie, Max Roach, Dexter Gordon, J.J. Johnson, Don Byas e Roy Eldridge, instalando-se finalmente na Costa Oeste, Los Angeles, na Casa Manana de Hollywood, para dar início à fase “cinematográfica” da sua carreira, colocando o seu nome nas fichas técnicas de filmes como “Um Americano em Paris”, de Vincente Minnelli (1951), “Clash by Night”, de Fritz Lang (1952), “The Snow of Kilimanjaro”, de Henry King (1952) e “Too Late Blues”, de John Cassavettes (1961). O sexteto que formou em 1941, data do nascimento “oficial” do be-bop, integrava um dos seus pioneiros, o trompetista Dizzy Gillespie.
Entre as principais obras discográficas como líder do autor de “Blues in my heart” e “When lights are low” contam-se os álbuns “I’m in the Mood for Swing” (1938), “Cocktail for Two” (1940), “Alone Together” (1952), “Jazz Giant” (com Ben Webster, 1958), “Additions to Further Definitions” (com Bud Shank, Phil Woods, Buddy Colette, Coleman Hawkins, Barney Kessel, Ray Brown, Jimmy Garrison…, 1966), “The King” (com Milt Jackson, Joe Pass e Tommy Flannagan, 1976) e “Wonderland” (com Eddie “Lockjaw” Davis e Ray Bryant, 1976).
A sua reputação entre os músicos de jazz era enorme, clara pelos comentários feitos ao longo da sua vida. “É difícil expressar a importância tremenda do contributo de Benny Carter para a música popular, de tal forma ele era um músico fabuloso”, disse Duke Ellington. “Há Duke Ellington, Count Basie, Earl Hines, certo? Pois bem, coloquem Benny ao lado destes. Qualquer pessoa que o conheça chama-lhe ‘rei’. Ele é um rei”, disse Louis Armstrong. “Toda a gente devia ouvir Benny, ele é um curso de educação musical inteiro”, disse Miles Davis. “É tudo o que um músico deveria ser”, disse Ella Fitzgerald.
O antigo Presidente dos EUA Bill Clinton declarou por sua vez em 1996: “Dos clubes pequenos do Harlem, onde começou a tocar saxofone, às grandes digressões mundiais com as maiores ‘big bands’, Benny Carter redefiniu o jazz americano. Desde o início os seus colegas músicos afirmaram que a sua maneira de tocar era extraordinária (‘amazing’). Disseram o mesmo de mim, embora certamente não estivessem a pensar na mesma coisa.”
E Quincy Jones, lapidar: “Passámos pela porta às suas cavalitas. Se Benny não estivesse lá, nós não estaríamos aqui.”

Wayne Shorter Quartet – “Wayne Shorter Em Luta Com O Piano” (concertos / festivais / jazz)

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terça-feira, 15 Julho 2003


Wayne Shorter em luta com o piano

Wayne Shorter Quartet
ESTORIL Auditório do Parque Palmela, às 21h30
Lotação esgotada


Sábado, em mais um concerto do festival Estoril Jazz/Jazz num Dia de Verão, Wayne Shorter e o seu quarteto tiveram o tempo do seu lado, mas o grande jazz nem por isso. O auditório ao ar livre do Parque de Palmela, no Estoril, estava à pinha, esgotando por completo a lotação, algo que, segundo a organização, não acontecia desde o mítico concerto de Count Basie neste mesmo festival. A chuva ameaçou, ameaçou, mas conteve-se. O mesmo aconteceu com o quarteto. Ameaçou com grandes feitos, mas acabou por quedar-se por um jazz eclético e sofisticado, alimentado por longas improvisações e reconhecida competência, mas longe de se lançar à conquista daqueles momentos únicos que fazem a história dos grandes concertos.
Shorter rolou com força no saxofone tenor, explorando timbres e respirações, mas travou-se de razões com o soprano – aquele que lhe granjeou merecida fama – passando largos minutos, a meio de um tema, a procurar o ajustamento certo da palheta, experimentando e voltando a experimentar a afinação, enquanto os outros três músicos se entretinham a soltar metros de música de fundo, à espera que o seu líder se decidisse a fornecer as coordenadas. Nos momentos, porém, em que a música se libertou do preciosismo técnico, o saxofonista mostrou todas suas capacidades, ora em “stacattos” que parecia implorar pela loucura (que não veio…), ora desenrolando dilúvios de notas alinhadas com a elegância de uma dança.
Danilo Perez mostrou ser um pianista fora do vulgar. Harmonicamente dotado, embora sem rasgos de virtuosismo, mostrou preferência por fraseados classizantes, outras vezes encostando-se ao exotismo “world” proporcionado pela sua ascendência (nasceu no Panamá), ocasionalmente monkiano, foi ainda, surpreendentemente e decerto que por acaso, progrocker dos quatro costados, ao repetir, numa quase citação, as notas de um dos movimentos de “Tarkus”, dos Emerson, Lake and Palmer (!).
John Patitucci é o típico baixista jazzrock. De uma concisão extrema, usou e abusou das vibrações da corda solta, mantendo-se quase sempre nos tempos rápidos e em boa sintonia com a rítmica fornecida por Brian Blade, na bateria, operário razoavelmente imaginativo na forma como acentuou e ornamentou os tempos fracos.
Isento, à justa, do tormento da chuva, o público aplaudiu de forma civilizada (raramente o fez a premiar este ou aquele solo) e pediu um “encore”, provavelmente a pensar já na forma como, já na próxima sexta-feira, receberá outra figura lendária do jazz contemporâneo, o contrabaixista Dave Holland, a liderar uma “big band”, no CCB, em Lisboa, no que será o concerto de encerramento desta edição número 22 do Estoril Jazz/Jazz num Dia de Verão.

Wayne Shorter – “Wayne Shorter Segue As Pegadas Da Alegria” (jazz num dia de verão / concertos/ festivais)

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sábado, 12 Julho 2003


Wayne Shorter segue as pegadas da alegria

JAZZ NUM DIA DE VERÃO

Wayne Shorter, “hardbopper” nos Jazz Messengers, pioneiro da música de fusão com Miles Davis e nos Weather Report, atua hoje no Estoril. Com a marca de álbuns como “Footprints Live!” e do novo “Alegria”


Wayne Shorter no saxofone tenor, em 1991, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa


Prestes a completar 70 anos, Wayne Shorter é um daqueles saxofonistas cuja sonoridade, feita de múltiplos sabores, apetece mastigar. Quem quiser, pode fazê-lo hoje mesmo, no concerto que encerra mais um módulo do festival Estoril Jazz/Jazz num Dia de Verão.
Wayne Shorter tocará no Estoril saxofones tenor e soprano, a liderar um quarteto formado por Danilo Perez (piano), John Patitucci (contrabaixo) e Brian Blade (bateria). Grande música em perspetiva. Jazz puro prazer do ato de tocar e de criar.
Equilibrado entre a tradição do “bop” e a improvisação mais livre, Wayne Shorter evoluiu do fraseado longo, no limite da obsessão, característico de John Coltrane, para modulações mais “redondas”, de acordo com uma sensibilidade que, tendo passado e marcado indelevelmente o “jazzrock” e a música de fusão, através dos Weather Report (provavelmente o grupo que melhor assimilou e transformou as heterodoxias arremessadas pelo Miles Davis elétrico), soube contornar a inércia e o cliché.
No ano passado, e ultrapassadas algumas vicissitudes que, inclusive, obrigaram a uma paragem de uma década numa carreira brilhante, a edição de “Footprints Live!” (depois disso já gravou “Alegria”), nomeado para um Grammy na categoria de “melhor álbum de jazz instrumental”, repôs o seu nome no lugar a que tem direito: dos mestres.
Embora seja sobretudo conhecido pela sua participação nos Weather Report, grupo com o qual gravou, nos anos 70, obras seminais da música de fusão como “I Sing the Body Electric”, “Sweetnighter” e “Mysterious Traveller”, a par dos mais comerciais “Black market”, “Heavy Weather”, “Mr. Gone” e “Night Passage”, Shorter desempenhara já um papel fulcral na ortodoxia do jazz.
Depois de ensaios prévios ao lado do pianista “hard” Horace Silver, frequentou duas das escolas que mais alunos diplomados com distinção forneceu ao jazz moderno: os Jazz Messengers, de Art Blakey (tocou nos clássicos “Mosaic” e “Free for all”), oficina oficial do “hard bop”, e a máquina de Miles Davis, com quem partilhou os louros de álbuns quintessenciais na obra deste trompetista como “E.S.P.”, “Miles Smiles”, “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, tendo, inclusive, composto temas que viriam a tornar-se “standards”, tais como “Footprints” e “Nefertiti”.
No decorrer de uma das décadas mais produtivas da sua carreira, os anos 60, já a solo, assinou trabalhos que se tornariam referência para as gerações vindouras: “Juju”, “Speak no Evil”, “The Soothsayer” e “Adam’s Apple”, entre outros, indiciadores da direção que a sua música viria a tomar na década seguinte, com os Weather Report (que deram um espantoso concerto dado em Portugal por este grupo na década de 80, no pavilhão da FIL, em Lisboa). Com eles, e ao lado de “fusionistas” de classe incontestável como Joe Zawinul, Miroslav Vitous, Airto Moreira, Tony Williams, Peter Erskine e Mino Cenelu, desenvolveu um estilo e fraseado particulares, nomeadamente no saxofone soprano, por vezes adaptado a “gadgets” eletrónicos ou prolongando-se no Lyricon, instrumento de sopro inteiramente eletrónico que pode ser manipulado através de tecnologia MIDI.
O público e a crítica, seduzidos pela simbiose entre o jazz e o rock, rendeu-se a Wayne Shorter e a revista “Downbeat” distinguiu-o ao longo de 15 anos consecutivos como melhor saxofonista soprano.
Paralelamente aos Weather Report, Shorter integrou os V.S.O.P., superbanda dirigida por Herbie Hancock (espécie de parente espiritual seu e igualmente um dos gurus do jazzrock) onde pontificavam Freddie Hubbard, Eddie Henderson, Julian Priester, Bennie Maupin, Ron Carter e Tony Williams.
Finalmente, o rock, de tanto conviver com o jazz, pedindo-lhe conselhos mas também tentando enriquecê-lo através de um processo de polinização, atraiu Wayne Shorter para o estúdio para gravar com Joni Mitchell e os Steely Dan, o mesmo acontecendo com o brasileiro Milton Nascimento e o cantor italiano Pino Danielle.
“Footprints Live!”, primeiro álbum ao vivo da sua discografia, repôs as coisas no lugar certo, devolvendo o saxofonista aos capítulos nobres da Grande História do Jazz. Nem “in”, nem “out of the tradition”, mas inserido num lugar próprio, onde a música nasce sem fronteiras, com as cores vivas do mundo que a cada instante nasce e se renova.
Em “Alegria”, lançado já este ano, a música de Wayne Shorter estende-se a um tradicional céltico, a uma obra do compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, inspirada em Bach, e a um tema de música popular espanhola, procurando satisfazer a necessidade, diz, de prosseguir “um processo de aprendizagem continua” que lhe permita “libertar-se” dos lugares-comuns de uma linguagem estereotipada, ao mesmo tempo que se propõe “expressar a eternidade nas suas composições”.

Wayne Shorter Quartet
ESTORIL Auditório do Parque Palmela
Às 21h30. Bilhetes de 15 a 20 euros